Golpe de estado anti-constitucional
A Constituição, a que devem obediência todos os
órgãos de soberania (Assembleia da República, Presidente
da República, Governo, Tribunais), bem como todas as entidades e todos
os cidadãos, está, desde há muito, submetida a concertado
desrespeito: violação reiterada, interpretação
capciosa, revisão
de jure
e de facto imposta por negociantes da
polis
e potências externas. Por outro lado, os órgãos de poder,
recobrindo-se com a legalidade eleitoral, manejam os múltiplos sentidos
e subentendidos do voto, pressupondo que lhes confere o direito de iludir e
trair o eleitorado e reconfigurar o regime, postando-se em rota de
colisão com a Lei Fundamental. Ora, se nos detivermos nos processos de
sufrágio, nenhum se revestiu de similar importância nem
alcançou idêntica participação e consenso como as
eleições da Assembleia Constituinte em 1975 e a
aprovação da Constituição da República
Portuguesa (CRP) em 1976.
[1]
Marco jurisprudencial e de exemplaridade cívica, deveria ser alvo de
retoques e não cortes, cautos aperfeiçoamentos e não
rebuscados desvirtuamentos e primários incumprimentos. O rol das
perversões, distorções e compressões do texto
fundador aponta para um golpe de estado anti-constitucional de longo curso.
REPÚBLICA PORTUGUESA
Artigo 1.º
Portugal é uma República soberana
empenhada na
construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Numerosos eleitos e nomeados da República desbarataram os recursos
materiais, minaram a soberania e acentuaram a desconstrução da
sociedade: está cada vez menos livre, menos justa e menos
solidária.
Artigo 2.º
Estado de direito democrático
visando a realização da
democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia
participativa.
O que se tem visado é consolidar uma oligarquia
económico-financeira, contendo o protagonismo da sociedade,
desinvestindo na educação e na cultura, desconsiderando as
reivindicações profissionais e os movimentos de base.
Artigo 3.º 2.
O Estado subordina-se à Constituição.
3.
A validade das leis e dos demais actos do Estado
depende da sua
conformidade com a Constituição.
De facto, o Estado subordina a Constituição e o Estado
subordina-se ao poder económico-financeiro e a validade das leis e dos
actos é conceptualizada por consultores e clientes do Estado e
revalidada pela jurisprudência de turno.
Artigo 7.º 1.
Relações internacionais. Portugal rege-se pelos princípios
da independência nacional
da solução pacífica
dos conflitos internacionais, não ingerência
2.
Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e
de quaisquer outras formas de agressão
bem como o desarmamento
geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos
político-militares.
O quadro não poderia ser mais contraditório com a letra e o
espírito da Constituição: Portugal mantém um
parceirato de subalternidade e assumiu a agenda militar do imperialismo e do
neo-colonialismo, integrando missões de ocupação sob
pretextos humanitários, desvalorizando a diplomacia da paz e da
não-ingerência, apoiando a expansão da NATO em
território nacional e a sua geo-estratégia, ignorando a
dissolução dos blocos. Os ministérios dos Negócios
Estrangeiros e da Defesa são escritórios de interesses da Casa
Branca e do Pentágono.
Artigo 9.º
Tarefas fundamentais do Estado.
a)
Garantir a independência nacional e criar condições
políticas, sociais e culturais que a promovam;
d)
Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os
portugueses, bem como a efectivação dos direitos
económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a
transformação e modernização das estruturas
económicas e sociais.
A grande tarefa dos que se apoderaram da máquina do Estado tem sido
garantir a nossa dependência através da subserviência em vez
de assegurar a nossa independência na interdependência. Foram
menosprezados valores de primeira linha, desde logo negligenciando o ensino do
Português em Portugal e no seio das comunidades emigrantes e nos
leitorados, centros de saber, onde se processa o diálogo de
civilizações. O presente Estado deixou de desfraldar a bandeira
da Língua e não lançou, no ciclo pródigo de fundos
estruturais, um programa de reabilitação e
refuncionalização do património histórico,
convocando o papel da memória num desígnio de modernidade. Quanto
à promoção da
qualidade de vida e da igualdade real entre os portugueses
o gráfico é do Terceiro Mundo: mais de dois milhões
de
pobres e mais dois milhões a rondar a pobreza e um dos países com
maior desigualdade na OCDE.
Artigo 13.º
Princípio da igualdade.
2.
Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, privado de qualquer direito
ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo,
raça, língua, território de origem, religião,
convicções políticas ou ideológicas,
instrução, situação económica,
condição social ou orientação sexual.
Mesmo descontando a herança da diferenciação negativa e
sabendo-se da complexidade na ultrapassagem de estatutos de sangue e de classe,
de condição e de género, é evidente que o Estado e
a rede de instituições, que deveriam conformar o espaço
cívico para a igualdade e a dignidade, não têm encarado
afincadamente (com dispositivos e objectivos no terreno) o
ninguém pode.
Assiste-se até, com o aprofundar das desigualdades económicas,
do alastrar do desemprego e da precariedade, do vincar das rupturas sociais,
familiares e regionais, do avolumar de tensões nas bolsas de
desintegrados e nos bairros periféricos, à emergência de
novas castas de
privilegiados e beneficiados
e à irrupção de velhos estigmas e preconceitos.
Estão em baixa os procedimentos e sentimentos de igualdade. Elevaram-se
os padrões de contraste e competição, os indicadores
recessivos e depressivos da
situação económica
e da
condição social
e de selectividade de classe na
instrução.
Artigo 20.º
A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais.
Eis um
a todos
só para alguns. O poder legislativo e o poder executivo trataram de
erguer um edifício judiciário pleno de entradas abstractas e
saídas condicionadas. No concreto, fixou-se uma justiça para os
fracos e uma justiça para os fortes. Os poderosos do dinheiro e da
política normalmente fazem abortar a investigação ou
encontram escapatórias, montando entraves ao andamento dos processos
até à prescrição. A morosidade faz parte do
potencial de sabotagem. Os grandes litigantes apostam na fadiga processual. Os
casos estão à vista. Para além da generosidade do
legislador a oferecer expedientes, o executivo carrega nas custas e os
advogados carregam nos custos, não se consentindo aos pobres e
remediados real e cabal
acesso ao direito e aos tribunais.
Temendo a independência dos investigadores, o executivo exerce o seu
controlo através da administração dos meios financeiros,
técnicos e humanos e da definição das prioridades e o
bloco central do regime posiciona os seus representantes na Procuradoria-Geral
da República, no Conselho Superior da Magistratura, no Tribunal
Constitucional. A este complexo fortificado somam-se corredores opacos, desde
Serviços de Inteligência da República, nem sempre ao lado
da causa e da coisa pública, a sociedades fraternais (lojas laicas e
confessionais,
famiglias
empresarias e clubísticas), que lidam com outros códigos, para
além dos penais, civis e administrativos. Nada disto tem a ver com
milhares de operadores judiciários, em geral, constitucionalizados,
competentes e honestos, mas postos a pagar o
mau nome
da Justiça. O bloqueio central é obra de infiltrados e de
telecomandos.
Artigo 21.º
Direito de resistência. Todos têm o direito de resistir a qualquer
ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela
força qualquer agressão, quando não seja possível
recorrer à autoridade pública.
Este direito não coloca o poder público (administrativo,
político, policial ou militar) fora da órbita de
resistência e repelência. É claro que o poder (em especial o
representado pelas altas hierarquias) está secularmente impregnado de
vocação taxativa e autoritária, supondo-se a única
sede tipificadora das ofensas e ponderadora do uso da força. A
Constituição, porém, quis acautelar um reduto de
resistência cívica (individual e grupal). Em momentos de
desestabilização económica e financeira, de cólera
social e de impulsos cerceadores de
direitos, liberdades e garantias,
este direito integrará o dicionário da crise: nas
acções de rua, nos diferendos empresariais e institucionais, como
réplica e auto-defesa constitucional.
Artigo 37.º
Liberdade de expressão e informação.
1.
Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu
pensamento
de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem
discriminações.
Esta abertura à liberdade de expressão, divulgação
e informação foi sendo regulada de acordo com a
evolução política e a correlação de
forças (colectivas-privadas, laborais-patronais). A capacidade de
exprimir e divulgar posições e concepções e de
auferir e contribuir para uma informação de largo espectro
inverteu-se. Os grandes actores e as problemáticas de fundo foram
mudando com a deslocação do eixo
político-económico. A agenda passou a omitir ou a deturpar ou a
menorizar factos e problematizações que perturbem a nova ordem.
Não há maneira de garantir o direito de expressão e
informação, no interesse das maiorias e de um consumidor
advertido, numa lógica de grupos mediáticos, voltados para o
discurso sistémico e o alinhamento com as centrais internacionais e
não para a informação sem receio do intelectualmente e
politicamente incorrecto. Na generalidade, os jornalistas estão cativos.
Na generalidade, os consumidores estão passivos. Não basta ter
órgãos de comunicação social. É essencial
ter órgãos de intercomunicação social.
Todos têm direito
Em Portugal, pouco lugar é consentido ao contraditório: o
artigo
37.º foi apropriado por uma elite neoliberal, colaboracionista e mercantil.
Artigo 38.º
Liberdade de imprensa e meios de comunicação social.
4.
O Estado assegura a liberdade e a independência dos órgãos
de comunicação social perante o poder político e o poder
económico
A intervenção do Estado tem sido pactuar com a marcha do processo
mediático: a concentração de meios e o afunilamento
da
liberdade. Começou por alterar a Lei de Imprensa, retirando aos
Conselhos de Redacção o voto vinculativo (entregando
redacções castradas nas privatizações), prosseguiu
agravando o quadro penal para delitos de Imprensa (protegendo as elites do
Estado e da Economia). O Regulador da área tem um papel mitigado e pouco
convicto, como têm outros reguladores: Banco de Portugal,
Comissão
de Valores Mobiliários, Energia, Telecomunicações. De
resto, desde que o poder económico-financeiro (por
vocação, não democrático) capturou o poder
político, este compõe leis e actua em consonância com a
sujeição real e não com a tutela constitucional.
Artigo 45.º
Direito de reunião e manifestação.
1.
Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas,
mesmo em lugares abertos aos público, sem necessidade de qualquer
autorização.
2.
A todos os cidadãos é reconhecido o direito de
manifestação.
Até agora, no regime democrático, têm sido pontuais os
incidentes de sangue e as proibições explícitas, havendo
alguns casos transitado nos tribunais, quase sempre a bem da democracia. No
entanto, o poder político e o poder económico têm elevado o
tom da campanha contra o
direito de reunião e manifestação,
através do aparato policial armado, da identificação de
presenças, do desvio de percursos, do clima de
intimidação, da retórica criminalizadora da
contestação. O artigo 45.º está sob vigilância
ilegal e acosso ilegítimo.
Artigo 53.º
Segurança no emprego. É garantido aos trabalhadores a
segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa
causa
O poder político e o poder económico garantem a
insegurança no emprego. O conceito de
justa causa
tem sido flexibilizado de modo a caber qualquer causa na justa:
rescisão amigável, processos disciplinares, desterros de
prateleira, interposição de seguranças,
inadaptação tecnológica, deslocalização da
empresa ou do serviço, mobilidade especial, recibos verdes,
lay-off,
precariedade sistémica, congelamento de carreiras, salários em
atraso. Recorrendo ao despedimento negociado ou abrupto, indirecto ou directo,
imediato ou a prazo, fomentando um clima de marcação e de quebra
contratual, o empregador tornou-se hábil a perverter e violar o artigo
53.º
Artigo 58.º
Direito ao trabalho.
1.
Todos têm direito ao trabalho.
2.
Incumbe ao Estado promover:
a)
A execução de políticas de pleno emprego
O direito é cada vez mais de alguns. O Estado promove o pleno
desemprego. Em breve, teremos 1 milhão de desempregados a perguntar onde
estão os partidos do arco constitucional que, em 1976, aprovaram o
direito ao trabalho
e, no Governo, passaram a garantir o direito ao desemprego e ao subemprego,
só garantindo pleno emprego à corte da alternância.
Artigo 63.º
Segurança social e solidariedade.
1.
Todos têm direito à segurança social.
A tendência tem sido a de descapitalizar a segurança social e
conferir-lhe uma imagem de insustentabilidade e um horizonte de incerteza. O
programa de erosão tem em vista transformar as
contribuições em capital de risco, fazer entrar no cofre das
pensões o negócio privado, reservando para os mais débeis
uma fatia de solidariedade do bolo da segurança. O caminho de
fragilização do sistema comporta um cadastro e tem
responsáveis pela não cobrança de milhares de
milhões de euros de dívidas, a não
introdução no sistema de milhares de assalariados clandestinos, o
temerário desvio na aplicação de fundos na roleta
internacional, as retiradas para outros ministérios, a não
efectivação de dotações previstas em
Orçamentos de Estado.
Artigo 64.º
Saúde.
1.
Todos têm direito à protecção da saúde
a)
Através de um serviço nacional de saúde universal e
geral
tendencialmente gratuito.
Ambição encoberta:
todos têm direito à protecção da saúde
se tiverem possibilidades financeiras. O SNS está a ser desestruturado
e subfinanciado, tornando-se tendencialmente pago. A catástrofe das
parcerias público-privadas, o acumular de dívidas, o encerramento
de unidades hospitalares, maternidades, centros de saúde e
urgências, a escassez de médicos, enfermeiros e pessoal
administrativo, os exasperantes tempos de espera, o agravamento das taxas
moderadoras, a redução das comparticipações nos
medicamentos eis alguns indicadores do plano de
desqualificação da assistência e de desmontagem do SNS.
Artigo 72.º
Terceira idade.
1.
As pessoas idosas têm direito à segurança
económica
A maioria da população idosa vive no patamar mínimo do
rendimento e no limiar do provimento das necessidades. Há
desnutrição e fome em segmentos da terceira idade. Há
muitos milhares a residir em espaços exíguos e degradados.
Há muitos milhares com deficientes cuidados de saúde e higiene.
Há muitos milhares sem disponibilidades para passear, recrear-se,
participar em actos de diversão e cultura. Há muitos milhares a
apodrecer em vez de envelhecer. São portugueses. Na prática, dos
mais inseguros. Em teoria, dos mais amparados pela CRP.
Artigo 73.º
Educação, cultura e ciência.
1.
Todos têm direito à educação e à cultura.
Bastará comparar as verbas do Orçamento de Estado destinadas a
estas rubricas, tendo como referentes o PIB e o painel da UE/OCDE:
Portugal,
exceptuada a fase das estruturas básicas e da
democratização do acesso, ressalvadas intervenções
específicas, não apostou com músculo na trilogia,
pressuposto de uma verdadeira política de modernidade. Governantes houve
a proclamar paixão pela educação, amor pela cultura,
estima pela ciência, mas não fizeram prova dos sentimentos. A
educação, sector estratégico para a
qualificação do desenvolvimento e a auto-estima de um povo,
é o caso de estudo mais ilustrativo. Desde há anos que a escola
pública se debate com o desinvestimento, mergulhada em carências
de toda a ordem, desemprego crónico e emprego instável de dezenas
de milhares de docentes, elitização estudantil através do
acréscimo das propinas, da redução das bolsas e dos seus
valores, do encarecimento das cantinas e dos arrendamentos de
habitação, da inutilidade de muitos diplomas perante o mercado. A
conflitualidade com o poder central instalou-se como consequência do
alijamento do Estado das suas responsabilidades imperativas (políticas,
sociais e constitucionais). A ofensiva contra a escola pública e o
tratamento de rendimento mínimo na cultura e na ciência
resultarão, se não for travada, num factor de
desqualificação produtiva e administrativa, numa regressão
civilizacional e num estigma geracional.
Artigo 74.º
Ensino.
1.
Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de
oportunidades de acesso e êxito escolar.
Todos? O Orçamento do Estado não o garante. O orçamento
das famílias depende das posses. A maioria depara com a desigualdade no
acesso e o êxito escolar, muitas vezes, repousa na nota e não nas
habilitações. As autoridades impõem expedientes de
passagem e números de sucesso para compor
rankings
e aliviar o sistema de repetentes, a fim de embaratecer o ensino. A
solução seria adequar os equipamentos, conformar o perfil das
turmas, optimizar a formação docente, elevar a exigência
discente. O futuro pagará o desinvestimento, o laxismo, a
segregação, a desmotivação. A ignorância e a
impreparação custam mais do que a aprendizagem. Adiar a
competência implica adiar as soluções. O ensino não
pode ser um produto de luxo nem um desperdício. É um artigo de
primeira necessidade nacional e pessoal. É igualmente um escudo
identitário e uma lança competitiva na
globalização. O não cumprimento do artigo 74.º
sairá caro ao país, às regiões, às
localidades, às instituições, às empresas,
às famílias.
Artigo 80.º
Princípios fundamentais.
a)
Subordinação do poder económico ao poder político
democrático;
e)
Planeamento democrático do desenvolvimento económico e
social
Entramos no núcleo mais moldante do regime, nos
princípios fundamentais
da Lei Fundamental: a
subordinação do poder económico,
por natureza não democrático,
ao poder político democrático.
Não foi por acaso que as primeiras grandes pressões de
revisão constitucional incidiram na
matéria económica.
O poder político ligado às corporações logrou
reverter a ordenação dos sectores: do público,
cooperativo
e privado, passou-se, com os pacotes de privatizações, a
licenciosidade dos fundos comunitários e a falta de escrúpulo dos
financiamentos, as facilidades jurídicas e fiscais e uma política
de vendas nos olhos da Justiça, ao reino tentacular do privado. Do
privado com escala e escola. Na segunda vaga, o primado do financeiro superou o
privado económico. Em 25 anos, o poder democrático acabou
capturado e manietado, trabalhando muitos membros e ex-membros do Governo,
autarcas e ex-autarcas e muitos decisores da Administração
Pública como se houvessem sido destacados em comissão de
serviço pelos capitães da grande indústria, do grande
comércio e da grande finança. Desrespeitando a
sinalização do artigo 80º, emergiu uma casta de eleitos e
titulares de cargos públicos, pilotando empresas de sucesso garantido e
dando sinais exteriores de riqueza após exibirem sinais exteriores de
pobreza. Casta nascida e crescida nos meandros dos favores e da
delapidação da coisa pública, avultando, na galeria dos
notáveis, elementos que pedem meças ao
crime organizado.
Subordinaram o
poder político democrático
a interesses opostos ao
interesse nacional
(frequentemente, a grupos de assalto do Orçamento do Estado e do
Património Colectivo) e receberam as distinções e as
compensações de eficientes cumpridores e
leais servidores.
O poder económico lançou também uma OPA sobre os
partidos da alternância, acorrentando-os com donativos legais e ocultos,
sugerindo-lhe ministeriáveis e formação de quadros. O
princípio do
planeamento democrático do desenvolvimento
degenerou em planeamento corporativo e conspirativo. O regime está cada
vez mais confrontado com o princípio da subjugação:
poderes não eleitos controlam os eleitos do poder. A
sujeição está à vista dos eleitores: o
Governo tem
poupado o grande capital no pagamento da crise gerada pelo grande capital.
Mais: tem socorrido e prendado o infractor, desprovendo o Serviço
Nacional de Saúde, a Escola Pública, a Segurança Social, a
Defesa Nacional, os incentivos à produção e ao emprego,
esvaziando a fazenda pública e o bolso de contribuintes e consumidores,
de funcionários públicos e pensionistas, de militares e agentes
de segurança, de pequenos e médios empresários e
proprietários. Comprovativo documentado da subordinação da
democracia política à ditadura económica. O Governo
prefere afrontar o conjunto da população a meter na ordem
constitucional e a incluir nas medidas de austeridade os senhores do regime.
Artigo 81.º
Incumbências prioritárias do Estado.
b)
Promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e
operar as necessárias correcções das desigualdades na
distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente
através da política fiscal.
c)
Assegurar a plena utilização das forças produtivas,
designadamente zelando pela eficiência do sector público.
Não seria fácil sintetizar tão telegraficamente o
contraste com a realidade: bastará colocar um não nas
incumbências prioritárias do Estado:
não promover, não assegurar, não operar, não
zelar. A linha tendencial é a demissão do Estado, no fundamental
e decisivo, entregue à lei do mais forte. Portugal é uma marca da
desigualdade social, da incorrecção dos rendimentos e da
não equidade fiscal. Portugal é um ponto do mapa europeu onde o
Estado estimulou a não produção, a
desertificação, a desindustrialização. Portugal tem
sido um laboratório do neoliberalismo provinciano, onde vingaram as
teses do abandono da produção e da produtividade, da
gestão clientelar, da incompetência dourada, da negociata do
sector público. A quem competirá a
incumbência
de julgar os protagonistas do desastre da modernidade portuguesa?
Artigo 93.º
Objectivos da política agrícola.
a)
Aumentar a produção e a produtividade da agricultura
Resultado destes
objectivos
: incentivos à não produção, fuga em massa das
populações do interior, desguarnecimento da coesão social
do território. Os governantes ufanavam-se de Portugal ser
bom aluno
da Europa e de integrar o
pelotão da frente.
Um ministro comparou Portugal a um
oásis
no desolado panorama mundial. Em 1986, Portugal importava 40% do que comia. Em
2011, importa 80%. Um dos
objectivos
de qualquer país que tenha, como nós, potencial agrícola
e piscatório, é a questão da soberania alimentar. Por
razões óbvias: económicas, financeiras, sociais,
políticas, de defesa nacional. Em situações de
emergência, ficaremos expostos às vicissitudes de mercado, de
transporte, de chantagem. Que poderão ser dramáticas. Daí
que a não autonomia alimentar, em tempos de normalidade, acarrete uma
factura negativa na balança de transacções, e em tempos
inesperados, agudize a subsistência e vulnerabilize a
independência.
Artigo 100.º
Objectivos da política industrial.
a)
O aumento da produção industrial
c)
O apoio às pequenas e médias empresas.
Conquistaram-se algumas unidades de componentes e montagem e de mais-valor
tecnológico, pesem os fracassos de monta nesta área, mas
não se deitou mão, com coerência, aos
objectivos
do preceito 10.º. Perdemos parte substancial da indústria pesada e
da indústria mecânica, desmantelou-se a indústria naval,
nuns casos, devido a política comunitária de abate, a
privatizações e a deslocalizações, noutros casos,
por inépcia de gestão e cedência à ideologia de um
país de serviços e betão. Relativamente ao
apoio,
não obstante as pequenas e médias empresas representaram 95% do
tecido empresarial e empregador, o Estado e a Banca drenaram o grosso dos
recursos para as corporações com poder de manobra institucional e
posições cruzadas nas fontes creditícias.
Artigo 101.º
Sistema financeiro. O sistema financeiro é estruturado por lei, de modo
a garantir a formação, captação e a
segurança das poupanças, bem como a aplicação dos
meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e
social.
Eis-nos diante de um dos principais agentes da desconstrução
constitucional, um paradigma de impunidade e ineficácia da
regulação.
O sistema financeiro
não é estruturado por lei: molda a lei à sua
medida.
O sistema financeiro
não garante as poupanças: atente-se na conduta do BPN/BPP
e nas
técnicas persuasórias na atracção e direccionamento
de poupanças.
O sistema financeiro
tem jogado com os meios sem preocupação com o
desenvolvimento económico e social:
especulação bolsista e imobiliária, fundos de
pensões, refúgios fiscais, crédito ao consumo em vez de
crédito
à produção, informação privilegiada nos
negócios, regabofe nas remunerações, prémios e
pensões vitalícias dos ungidos da banca. E no que toca ao
financiamento para o desenvolvimento? O caudal mais volumoso é
canalizado para as empresas corporativas e as grandes obras estatais, na
maioria, sem retorno de valor. De acordo com a letra e o espírito da CRP
e a racionalidade do
desenvolvimento económico e social,
a banca deveria estar ao serviço da economia e da sociedade, mas a
economia e a sociedade é que estão ao serviço da banca.
Mais grave: estão prisioneiras e sufocadas. Portugal tinha o
problema
resolvido: a banca nacionalizada. Então nacionalizava os lucros.
Agora
nacionaliza os prejuízos. O Estado abdicou de um instrumento de
auto-determinação financeira para um desenvolvimento planificado
e sustentado. O Estado caiu e deixou cair a Economia e a Sociedade na vertigem
dos mercados. Parece que só há massa falida: a do Estado, a
dos
bancos, a das empresas, a dos particulares. Enquanto grandes evasores e
amontoadores de barras de ouro e cabazes de divisas se resguardam, a grande
maioria encontra-se no olho do furação do
sistema financeiro.
A dívida da banca aos credores internacionais supera a do Estado, mas
é o Estado que emite garantias e acorre a recapitalizar o
sistema financeiro.
A banca bem pode ufanar-se:
L`État c`est moi.
A bancocracia sequestrou a democracia.
Estruturação
?
Segurança
?
Aplicação dos meios
? Há uma chave para sair do labirinto e uma escada para sair do
buraco:
a Constituição da República Portuguesa.
Artigo 108.º
Titularidade e exercício do poder. O poder político pertence ao
povo e é exercido nos termos da Constituição
O povo não sente que o poder lhe pertence, porque não é
exercido nos termos da Constituição. Começa a
esboçar-se um alargamento da geografia da consciência e a
delinear-se um reforço da resistência. Os sinais são
múltiplos e planetários. A socióloga Saskia Sassen
situa-os na movimentação da
cidade global: Os sem poder estão a fazer História.
Artigo 117.º
Estatuto dos titulares de cargos políticos.
1.
Os titulares de cargos políticos respondem civil e criminalmente pelas
acções e omissões que pratiquem no exercício das
suas funções
Em geral, vigora o estatuto da impunidade e o expediente da
prescrição dos processos. Inúmeras acções
delituosas ficam no segredo dos gabinetes e dos encontros furtivos ou
esgotam-se na sinuosidade dos inquéritos, no emaranhado das leis e nos
recursos dilatórios. O legislador é político e não
costuma facilitar as denúncias. O êxito das
investigações depende da disposição de empenhar
meios financeiros, técnicos e humanos. O sucesso da Justiça
também depende da afectação de meios,
formação técnica e vigor ético e cívico das
magistraturas e de legislação lacerante e transparente. Os
rumores provindos da esfera da corruptocracia, da mafiocracia, da cleptocracia
(corrupção, tráfico de influências, abuso de
mordomias, peculato e prevaricação) nunca mereceram uma resposta
civil e criminal que aclarasse e sanasse as ligações perigosas de
titulares de cargos públicos.
Os observatórios nacionais e internacionais deste fenómeno
assinalam a espessura da
mancha.
Para um ex-primeiro-ministro, Portugal é um
pântano.
Para alguns titulares da acção penal, Portugal é um
paraíso do colarinho branco.
As redes agem com a percepção da regra da
omertà
e da escapatória manga de avião e, por carências de
cidadania, gozam de cobertura eleitoral. Deste modo, dificilmente enfrentam a
Justiça do Estado e a sanção do sufrágio.
Artigo 127.º
Posse e juramento.
3.
No acto de posse o Presidente da República prestará a seguinte
declaração de juramento: Juro por minha honra desempenhar
fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e
fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa.
Acontece que o Presidente da República tem uma concepção
ideológica contaminadora do mandato. Cativo de preconceitos pessoais
desvaloriza os conceitos constitucionais. O actual titular da Presidência
acentuou o fosso entre o texto da CRP e o contexto político,
económico, financeiro, social, havendo desencadeado rupturas e
patrocinado desvios da senda constitucional, desde que exerceu a
governação. O desenho do Estado que agora se pretende desengordar
e reduzir ao mínimo é principalmente o Estado Social e o Sector
Empresarial do Estado. A economia, também reduzida ao mínimo na
agricultura, nas pescas, na indústria, no comércio tradicional,
muito deve à decisão e à falta de visão do actual
titular e dos seus próceres. O actual titular, como representante
máximo do Estado Português, prossegue e acentua, na frente
externa, a diplomacia do seguidismo, do banqueirismo, do militarismo. Contudo,
na frente interna, como Comandante Supremo das Forças Armadas, é
cúmplice da desorçamentação dos três ramos e
do rebaixamento da condição militar. Na opinião do
constitucionalista Jorge Novais, o mandato do actual titular será
recordado numa legenda:
substancialmente falhado.
Jurou
defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da
República Portuguesa.
Está visto que não defende, não cumpre e não faz
cumprir. O
juramento
não transcende o
acto de posse.
Artigo 272.º
Polícia.
1.
A polícia tem por funções defender a legalidade
democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos
cidadãos.
A defesa da legalidade democrática, da segurança interna e dos
direitos dos cidadãos pressupõe uma polícia com
formação técnica adequada e cultura constitucional
intensiva. Pressupõe igualmente que seja guarnecida de meios
operacionais, de condições profissionais dignas, de
instalações condignas. Uma polícia que exerce as
funções num circunstancialismo degradado e desmotivante
não reúne o perfil técnico-cívico para cumprir
satisfatoriamente o serviço público. Um Estado que marginaliza as
polícias e só as dota de meios como guarda-costas de ilustres
visitantes e personalidades do regime ofende a
legalidade democrática
, desacautela a
segurança interna
e os
direitos dos cidadãos.
Artigo 273.º
Defesa nacional.
1.
É obrigação do Estado assegurar a defesa nacional
na
ordem constitucional.
A política de defesa nacional define-se e tem de ser levada a termo na
ordem constitucional.
Significa que o conceito de defesa nacional nos remete para diversas
dimensões do articulado constitucional. Para evitar algum acento menos
consensual, recorreremos ao Instituto de Defesa Nacional que, a partir do
vector da segurança, procede a uma síntese:
Permanente garantia da sua sobrevivência
(da Nação)
em paz e liberdade, assegurando a soberania, a independência e a
unidade, a integridade do território, a salvaguarda colectiva de pessoas
e bens e dos valores espirituais, o desenvolvimento normal das tarefas do
Estado, a liberdade de acção política dos
órgãos de soberania e o pleno funcionamento das
instituições democráticas.
O que compete a todos cidadãos, que têm como
intransmissível dever
a defesa da pátria
(artigo 276.1/CRP). Cidadãos que são instados a reflectir,
não apenas quanto aos ditames da cidadania, mas a respeito das
obrigações do Estado, detentor e mobilizador dos meios materiais
de defesa e promotor de uma política de formato constitucional. O que
importa questionar é se os meios agregados à Defesa Nacional
terão sido e continuam a ser os mais consentâneos e realistas ou
se terão padecido de negocismo de bastidor e de interferência
externa. O que interessa colocar na agenda colectiva é se o Estado tem e
continua a assegurar de forma mais racional e eficaz e segundo a ordem
constitucional, a nossa soberania e a nossa independência, nos
envolvimentos em teatros de guerra (logo de projecção de risco
interno) e no domínio económico, financeiro, diplomático e
cultural (igualmente praças fortes da
soberania
e da
independência
). Com efeito, o comando constitucional da paz, do desarmamento controlado e da
dissolução dos blocos deveria suscitar um debate sobre o grau de
desvio constitucional.
Artigo 275.º
Forças Armadas.
1.
Às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República.
3.
As Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania
competentes, nos termos da Constituição e da lei. 4. As
Forças Armadas estão ao serviço do povo
português
5.
Incumbe às Forças Armadas, nos termos da lei, satisfazer os
compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e
participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas
organizações internacionais de que Portugal faz parte.
Sem especular, antes como prevenção teórica: e se
incumbirem as Forças Armadas de defender uma monarquia? A defesa militar
da República só terá sentido em Portugal? E se um dia o
directório militar da NATO nos implicar na defesa de regimes
monárquicos (europeus, africanos, asiáticos)? Não
estará subjacente à defesa da República a defesa dos
valores republicanos? Deixemos a dilemática em aberto, esperando que o
intervencionismo poupe as Forças Armadas Portuguesas a este
constrangimento. Convirá, no entanto, alertar para outras
instrumentalizações e afrontas, estas do concreto corrente. Os
órgãos de soberania competentes
terão a Constituição da República Portuguesa a seu
lado sempre que incumbem as Forças Armadas de
satisfazer compromissos internacionais
e se comprometem a
participar em missões humanitárias e de paz
? Como encaixar nestas
missões
a invasão humanitária ou a ocupação da paz,
nitidamente à margem da legalidade internacional? Portugal é
membro das Nações Unidas. Portugal é membro da NATO. Qual
a sede de superior legitimação de acções militares
e missões humanitárias? Se estas duas organizações
não estiverem de acordo, o Estado Português obedece às
Nações Unidas ou à NATO? E qual o papel arbitral e
normativo da Constituição da República Portuguesa? Este
questionário não é displicente nem académico. As
Forças Armadas, que desencadearam a revolução
democrática de Abril, não devem acatar servidões
anti-constitucionais e devem esclarecer missões de equívoca
constitucionalidade.
Estatuto dos Militares das Forças Armadas
Artigo 7.º
Juramento de bandeira. O militar, em cerimónia pública, presta
juramento de bandeira perante a Bandeira Nacional, mediante a fórmula
seguinte:
Juro, como português e como militar, guardar e fazer guardar a
Constituição e as leis da República, servir as
Forças Armadas e cumprir os deveres militares. Juro defender a minha
pátria e estar sempre pronto a lutar pela sua liberdade e
independência, mesmo com o sacrifício da própria vida.
Os militares são os únicos servidores da Pátria que juram
dar a vida pela sua
liberdade e independência.
Outros juram cumprir as funções e lealmente servir. Os
militares fizeram uma revolução: derrubaram uma ditadura
retrógrada e colaboraram na implantação de uma democracia
avançada, que assenta em quatro pilares: o político, o
económico, o social, o cultural. Três pilares estão
profundamente abalados: o económico, o social, o cultural. Resta o
político. Mas um regime democrático não se sustém
sem base económica, social e cultural. Os militares cumpriram as suas
promessas perante o Povo Português. Outros prometeram e prometem e
não cumpriram nem cumprem.
Artigo 288.º
Limites materiais de revisão.
a)
A independência nacional
e)
Os direitos dos trabalhadores
f)
A coexistência do sector público
O ataque em fase de aceleração passa por cima da
independência, dos trabalhadores, do sector público. Contudo,
não há independência nacional sem meios que assegurem a
soberania, sem sustentação económica e financeira,
coesão social e regional, promoção educativa e cultural.
Toda esta programática está a ser expurgada da
Constituição sem coragem de o afirmar. Os centros soberanos
têm sede exógena. Os direitos dos trabalhadores estão em
angustiosa compressão. A Associação Sindical dos
Juízes Portugueses não tem dúvidas de que uma série
de limitações de direitos dos trabalhadores e
subtracções de rendimentos do trabalho violam
os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade.
O sector público da economia, que se posicionava como motor,
está a ser diabolizado, descapitalizado, desactivado e saldado. O sector
cooperativo está desapoiado e em transe. O sector privado está
confiado a um cartel de interesses que usufrui de suporte legal e assessoria
governamental e não consente espaço à verdadeira
iniciativa privada, a 95% do tecido empresarial.
Após uma leitura comparada do Texto Fundamental e do real quotidiano, da
narrativa da Carta Magna face à sucessão e
acumulação de atropelos, num tempo de retrocesso
democrático, soçobro da soberania e da independência,
défice da justiça social, compete aos cidadãos defender os
seus direitos num Estado de Direito e às instituições
não corroídas
cumprir e fazer cumprir a Constituição da República
Portuguesa.
25/Outubro/2011
[1]
Nas eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975, estavam
inscritos 6.231.372 eleitores. Votaram 5.711.829 (91,66%). Abstiveram-se
519.543 (8,34%). Nas eleições legislativas de 2011, estavam
inscritos 9.624.133 eleitores. Votaram 5.588.594 (58,07%). Abstiveram-se
4.035.539 (41,93%).
[*]
Escritor / jornalista.
Este artigo encontra-se em
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