Golpe de estado anti-constitucional

por César Príncipe [*]

Manifestação do 25 de Abril de 2011 A Constituição, a que devem obediência todos os órgãos de soberania (Assembleia da República, Presidente da República, Governo, Tribunais), bem como todas as entidades e todos os cidadãos, está, desde há muito, submetida a concertado desrespeito:  violação reiterada, interpretação capciosa, revisão de jure e de facto imposta por negociantes da polis e potências externas. Por outro lado, os órgãos de poder, recobrindo-se com a legalidade eleitoral, manejam os múltiplos sentidos e subentendidos do voto, pressupondo que lhes confere o direito de iludir e trair o eleitorado e reconfigurar o regime, postando-se em rota de colisão com a Lei Fundamental. Ora, se nos detivermos nos processos de sufrágio, nenhum se revestiu de similar importância nem alcançou idêntica participação e consenso como as eleições da Assembleia Constituinte em 1975 e a aprovação da Constituição da República Portuguesa (CRP) em 1976. [1] Marco jurisprudencial e de exemplaridade cívica, deveria ser alvo de retoques e não cortes, cautos aperfeiçoamentos e não rebuscados desvirtuamentos e primários incumprimentos. O rol das perversões, distorções e compressões do texto fundador aponta para um golpe de estado anti-constitucional de longo curso.

REPÚBLICA PORTUGUESA

Manifestação da CGTP em Lisboa, 01/Outubro/2011 Artigo 1.º Portugal é uma República soberana…empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Numerosos eleitos e nomeados da República desbarataram os recursos materiais, minaram a soberania e acentuaram a desconstrução da sociedade:  está cada vez menos livre, menos justa e menos solidária.

Artigo 2.º Estado de direito democrático…visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. O que se tem visado é consolidar uma oligarquia económico-financeira, contendo o protagonismo da sociedade, desinvestindo na educação e na cultura, desconsiderando as reivindicações profissionais e os movimentos de base.

Manifestação da CGTP no Porto, 01/Outubro/2011 Artigo 3.º 2. O Estado subordina-se à Constituição. 3. A validade das leis e dos demais actos do Estado…depende da sua conformidade com a Constituição. De facto, o Estado subordina a Constituição e o Estado subordina-se ao poder económico-financeiro e a validade das leis e dos actos é conceptualizada por consultores e clientes do Estado e revalidada pela jurisprudência de turno.

Artigo 7.º 1. Relações internacionais. Portugal rege-se pelos princípios da independência nacional…da solução pacífica dos conflitos internacionais, não ingerência… 2. Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão…bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares. O quadro não poderia ser mais contraditório com a letra e o espírito da Constituição:  Portugal mantém um parceirato de subalternidade e assumiu a agenda militar do imperialismo e do neo-colonialismo, integrando missões de ocupação sob pretextos humanitários, desvalorizando a diplomacia da paz e da não-ingerência, apoiando a expansão da NATO em território nacional e a sua geo-estratégia, ignorando a dissolução dos blocos. Os ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa são escritórios de interesses da Casa Branca e do Pentágono.

Artigo 9.º Tarefas fundamentais do Estado. a) Garantir a independência nacional e criar condições políticas, sociais e culturais que a promovam; d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais. A grande tarefa dos que se apoderaram da máquina do Estado tem sido garantir a nossa dependência através da subserviência em vez de assegurar a nossa independência na interdependência. Foram menosprezados valores de primeira linha, desde logo negligenciando o ensino do Português em Portugal e no seio das comunidades emigrantes e nos leitorados, centros de saber, onde se processa o diálogo de civilizações. O presente Estado deixou de desfraldar a bandeira da Língua e não lançou, no ciclo pródigo de fundos estruturais, um programa de reabilitação e refuncionalização do património histórico, convocando o papel da memória num desígnio de modernidade. Quanto à promoção da qualidade de vida e da igualdade real entre os portugueses o gráfico é do Terceiro Mundo:  mais de dois milhões de pobres e mais dois milhões a rondar a pobreza e um dos países com maior desigualdade na OCDE.

Artigo 13.º Princípio da igualdade. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. Mesmo descontando a herança da diferenciação negativa e sabendo-se da complexidade na ultrapassagem de estatutos de sangue e de classe, de condição e de género, é evidente que o Estado e a rede de instituições, que deveriam conformar o espaço cívico para a igualdade e a dignidade, não têm encarado afincadamente (com dispositivos e objectivos no terreno) o ninguém pode. Assiste-se até, com o aprofundar das desigualdades económicas, do alastrar do desemprego e da precariedade, do vincar das rupturas sociais, familiares e regionais, do avolumar de tensões nas bolsas de desintegrados e nos bairros periféricos, à emergência de novas castas de privilegiados e beneficiados e à irrupção de velhos estigmas e preconceitos. Estão em baixa os procedimentos e sentimentos de igualdade. Elevaram-se os padrões de contraste e competição, os indicadores recessivos e depressivos da situação económica e da condição social e de selectividade de classe na instrução.

Artigo 20.º A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais. Eis um a todos só para alguns. O poder legislativo e o poder executivo trataram de erguer um edifício judiciário pleno de entradas abstractas e saídas condicionadas. No concreto, fixou-se uma justiça para os fracos e uma justiça para os fortes. Os poderosos do dinheiro e da política normalmente fazem abortar a investigação ou encontram escapatórias, montando entraves ao andamento dos processos até à prescrição. A morosidade faz parte do potencial de sabotagem. Os grandes litigantes apostam na fadiga processual. Os casos estão à vista. Para além da generosidade do legislador a oferecer expedientes, o executivo carrega nas custas e os advogados carregam nos custos, não se consentindo aos pobres e remediados real e cabal acesso ao direito e aos tribunais. Temendo a independência dos investigadores, o executivo exerce o seu controlo através da administração dos meios financeiros, técnicos e humanos e da definição das prioridades e o bloco central do regime posiciona os seus representantes na Procuradoria-Geral da República, no Conselho Superior da Magistratura, no Tribunal Constitucional. A este complexo fortificado somam-se corredores opacos, desde Serviços de Inteligência da República, nem sempre ao lado da causa e da coisa pública, a sociedades fraternais (lojas laicas e confessionais, famiglias empresarias e clubísticas), que lidam com outros códigos, para além dos penais, civis e administrativos. Nada disto tem a ver com milhares de operadores judiciários, em geral, constitucionalizados, competentes e honestos, mas postos a pagar o mau nome da Justiça. O bloqueio central é obra de infiltrados e de telecomandos.

Artigo 21.º Direito de resistência. Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública. Este direito não coloca o poder público (administrativo, político, policial ou militar) fora da órbita de resistência e repelência. É claro que o poder (em especial o representado pelas altas hierarquias) está secularmente impregnado de vocação taxativa e autoritária, supondo-se a única sede tipificadora das ofensas e ponderadora do uso da força. A Constituição, porém, quis acautelar um reduto de resistência cívica (individual e grupal). Em momentos de desestabilização económica e financeira, de cólera social e de impulsos cerceadores de direitos, liberdades e garantias, este direito integrará o dicionário da crise:  nas acções de rua, nos diferendos empresariais e institucionais, como réplica e auto-defesa constitucional.

Artigo 37.º Liberdade de expressão e informação. 1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento…de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. Esta abertura à liberdade de expressão, divulgação e informação foi sendo regulada de acordo com a evolução política e a correlação de forças (colectivas-privadas, laborais-patronais). A capacidade de exprimir e divulgar posições e concepções e de auferir e contribuir para uma informação de largo espectro inverteu-se. Os grandes actores e as problemáticas de fundo foram mudando com a deslocação do eixo político-económico. A agenda passou a omitir ou a deturpar ou a menorizar factos e problematizações que perturbem a nova ordem. Não há maneira de garantir o direito de expressão e informação, no interesse das maiorias e de um consumidor advertido, numa lógica de grupos mediáticos, voltados para o discurso sistémico e o alinhamento com as centrais internacionais e não para a informação sem receio do intelectualmente e politicamente incorrecto. Na generalidade, os jornalistas estão cativos. Na generalidade, os consumidores estão passivos. Não basta ter órgãos de comunicação social. É essencial ter órgãos de intercomunicação social. Todos têm direito… Em Portugal, pouco lugar é consentido ao contraditório:  o artigo 37.º foi apropriado por uma elite neoliberal, colaboracionista e mercantil.

Artigo 38.º Liberdade de imprensa e meios de comunicação social. 4. O Estado assegura a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico… A intervenção do Estado tem sido pactuar com a marcha do processo mediático:  a concentração de meios e o afunilamento da liberdade. Começou por alterar a Lei de Imprensa, retirando aos Conselhos de Redacção o voto vinculativo (entregando redacções castradas nas privatizações), prosseguiu agravando o quadro penal para delitos de Imprensa (protegendo as elites do Estado e da Economia). O Regulador da área tem um papel mitigado e pouco convicto, como têm outros reguladores:  Banco de Portugal, Comissão de Valores Mobiliários, Energia, Telecomunicações. De resto, desde que o poder económico-financeiro (por vocação, não democrático) capturou o poder político, este compõe leis e actua em consonância com a sujeição real e não com a tutela constitucional.

Artigo 45.º Direito de reunião e manifestação. 1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos aos público, sem necessidade de qualquer autorização. 2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação. Até agora, no regime democrático, têm sido pontuais os incidentes de sangue e as proibições explícitas, havendo alguns casos transitado nos tribunais, quase sempre a bem da democracia. No entanto, o poder político e o poder económico têm elevado o tom da campanha contra o direito de reunião e manifestação, através do aparato policial armado, da identificação de presenças, do desvio de percursos, do clima de intimidação, da retórica criminalizadora da contestação. O artigo 45.º está sob vigilância ilegal e acosso ilegítimo.

Artigo 53.º Segurança no emprego. É garantido aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa… O poder político e o poder económico garantem a insegurança no emprego. O conceito de justa causa tem sido flexibilizado de modo a caber qualquer causa na justa:  rescisão amigável, processos disciplinares, desterros de prateleira, interposição de seguranças, inadaptação tecnológica, deslocalização da empresa ou do serviço, mobilidade especial, recibos verdes, lay-off, precariedade sistémica, congelamento de carreiras, salários em atraso. Recorrendo ao despedimento negociado ou abrupto, indirecto ou directo, imediato ou a prazo, fomentando um clima de marcação e de quebra contratual, o empregador tornou-se hábil a perverter e violar o artigo 53.º

Artigo 58.º Direito ao trabalho. 1. Todos têm direito ao trabalho. 2. Incumbe ao Estado promover:  a) A execução de políticas de pleno emprego… O direito é cada vez mais de alguns. O Estado promove o pleno desemprego. Em breve, teremos 1 milhão de desempregados a perguntar onde estão os partidos do arco constitucional que, em 1976, aprovaram o direito ao trabalho e, no Governo, passaram a garantir o direito ao desemprego e ao subemprego, só garantindo pleno emprego à corte da alternância.

Artigo 63.º Segurança social e solidariedade. 1. Todos têm direito à segurança social. A tendência tem sido a de descapitalizar a segurança social e conferir-lhe uma imagem de insustentabilidade e um horizonte de incerteza. O programa de erosão tem em vista transformar as contribuições em capital de risco, fazer entrar no cofre das pensões o negócio privado, reservando para os mais débeis uma fatia de solidariedade do bolo da segurança. O caminho de fragilização do sistema comporta um cadastro e tem responsáveis pela não cobrança de milhares de milhões de euros de dívidas, a não introdução no sistema de milhares de assalariados clandestinos, o temerário desvio na aplicação de fundos na roleta internacional, as retiradas para outros ministérios, a não efectivação de dotações previstas em Orçamentos de Estado.

Artigo 64.º Saúde. 1. Todos têm direito à protecção da saúde… a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral…tendencialmente gratuito. Ambição encoberta:  todos têm direito à protecção da saúde se tiverem possibilidades financeiras. O SNS está a ser desestruturado e subfinanciado, tornando-se tendencialmente pago. A catástrofe das parcerias público-privadas, o acumular de dívidas, o encerramento de unidades hospitalares, maternidades, centros de saúde e urgências, a escassez de médicos, enfermeiros e pessoal administrativo, os exasperantes tempos de espera, o agravamento das taxas moderadoras, a redução das comparticipações nos medicamentos – eis alguns indicadores do plano de desqualificação da assistência e de desmontagem do SNS.

Artigo 72.º Terceira idade. 1. As pessoas idosas têm direito à segurança económica… A maioria da população idosa vive no patamar mínimo do rendimento e no limiar do provimento das necessidades. Há desnutrição e fome em segmentos da terceira idade. Há muitos milhares a residir em espaços exíguos e degradados. Há muitos milhares com deficientes cuidados de saúde e higiene. Há muitos milhares sem disponibilidades para passear, recrear-se, participar em actos de diversão e cultura. Há muitos milhares a apodrecer em vez de envelhecer. São portugueses. Na prática, dos mais inseguros. Em teoria, dos mais amparados pela CRP.

Artigo 73.º Educação, cultura e ciência. 1. Todos têm direito à educação e à cultura. Bastará comparar as verbas do Orçamento de Estado destinadas a estas rubricas, tendo como referentes o PIB e o painel da UE/OCDE:  Portugal, exceptuada a fase das estruturas básicas e da democratização do acesso, ressalvadas intervenções específicas, não apostou com músculo na trilogia, pressuposto de uma verdadeira política de modernidade. Governantes houve a proclamar paixão pela educação, amor pela cultura, estima pela ciência, mas não fizeram prova dos sentimentos. A educação, sector estratégico para a qualificação do desenvolvimento e a auto-estima de um povo, é o caso de estudo mais ilustrativo. Desde há anos que a escola pública se debate com o desinvestimento, mergulhada em carências de toda a ordem, desemprego crónico e emprego instável de dezenas de milhares de docentes, elitização estudantil através do acréscimo das propinas, da redução das bolsas e dos seus valores, do encarecimento das cantinas e dos arrendamentos de habitação, da inutilidade de muitos diplomas perante o mercado. A conflitualidade com o poder central instalou-se como consequência do alijamento do Estado das suas responsabilidades imperativas (políticas, sociais e constitucionais). A ofensiva contra a escola pública e o tratamento de rendimento mínimo na cultura e na ciência resultarão, se não for travada, num factor de desqualificação produtiva e administrativa, numa regressão civilizacional e num estigma geracional.

Artigo 74.º Ensino. 1. Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar. Todos? O Orçamento do Estado não o garante. O orçamento das famílias depende das posses. A maioria depara com a desigualdade no acesso e o êxito escolar, muitas vezes, repousa na nota e não nas habilitações. As autoridades impõem expedientes de passagem e números de sucesso para compor rankings e aliviar o sistema de repetentes, a fim de embaratecer o ensino. A solução seria adequar os equipamentos, conformar o perfil das turmas, optimizar a formação docente, elevar a exigência discente. O futuro pagará o desinvestimento, o laxismo, a segregação, a desmotivação. A ignorância e a impreparação custam mais do que a aprendizagem. Adiar a competência implica adiar as soluções. O ensino não pode ser um produto de luxo nem um desperdício. É um artigo de primeira necessidade nacional e pessoal. É igualmente um escudo identitário e uma lança competitiva na globalização. O não cumprimento do artigo 74.º sairá caro ao país, às regiões, às localidades, às instituições, às empresas, às famílias.

Artigo 80.º Princípios fundamentais. a) Subordinação do poder económico ao poder político democrático; e) Planeamento democrático do desenvolvimento económico e social… Entramos no núcleo mais moldante do regime, nos princípios fundamentais da Lei Fundamental:  a subordinação do poder económico, por natureza não democrático, ao poder político democrático. Não foi por acaso que as primeiras grandes pressões de revisão constitucional incidiram na matéria económica. O poder político ligado às corporações logrou reverter a ordenação dos sectores:  do público, cooperativo e privado, passou-se, com os pacotes de privatizações, a licenciosidade dos fundos comunitários e a falta de escrúpulo dos financiamentos, as facilidades jurídicas e fiscais e uma política de vendas nos olhos da Justiça, ao reino tentacular do privado. Do privado com escala e escola. Na segunda vaga, o primado do financeiro superou o privado económico. Em 25 anos, o poder democrático acabou capturado e manietado, trabalhando muitos membros e ex-membros do Governo, autarcas e ex-autarcas e muitos decisores da Administração Pública como se houvessem sido destacados em comissão de serviço pelos capitães da grande indústria, do grande comércio e da grande finança. Desrespeitando a sinalização do artigo 80º, emergiu uma casta de eleitos e titulares de cargos públicos, pilotando empresas de sucesso garantido e dando sinais exteriores de riqueza após exibirem sinais exteriores de pobreza. Casta nascida e crescida nos meandros dos favores e da delapidação da coisa pública, avultando, na galeria dos notáveis, elementos que pedem meças ao crime organizado. Subordinaram o poder político democrático a interesses opostos ao interesse nacional (frequentemente, a grupos de assalto do Orçamento do Estado e do Património Colectivo) e receberam as distinções e as compensações de eficientes cumpridores e leais servidores. O poder económico lançou também uma OPA sobre os partidos da alternância, acorrentando-os com donativos legais e ocultos, sugerindo-lhe ministeriáveis e formação de quadros. O princípio do planeamento democrático do desenvolvimento degenerou em planeamento corporativo e conspirativo. O regime está cada vez mais confrontado com o princípio da subjugação:  poderes não eleitos controlam os eleitos do poder. A sujeição está à vista dos eleitores:  o Governo tem poupado o grande capital no pagamento da crise gerada pelo grande capital. Mais:  tem socorrido e prendado o infractor, desprovendo o Serviço Nacional de Saúde, a Escola Pública, a Segurança Social, a Defesa Nacional, os incentivos à produção e ao emprego, esvaziando a fazenda pública e o bolso de contribuintes e consumidores, de funcionários públicos e pensionistas, de militares e agentes de segurança, de pequenos e médios empresários e proprietários. Comprovativo documentado da subordinação da democracia política à ditadura económica. O Governo prefere afrontar o conjunto da população a meter na ordem constitucional e a incluir nas medidas de austeridade os senhores do regime.

Artigo 81.º Incumbências prioritárias do Estado. b) Promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal. c) Assegurar a plena utilização das forças produtivas, designadamente zelando pela eficiência do sector público. Não seria fácil sintetizar tão telegraficamente o contraste com a realidade:  bastará colocar um não nas incumbências prioritárias do Estado:  não promover, não assegurar, não operar, não zelar. A linha tendencial é a demissão do Estado, no fundamental e decisivo, entregue à lei do mais forte. Portugal é uma marca da desigualdade social, da incorrecção dos rendimentos e da não equidade fiscal. Portugal é um ponto do mapa europeu onde o Estado estimulou a não produção, a desertificação, a desindustrialização. Portugal tem sido um laboratório do neoliberalismo provinciano, onde vingaram as teses do abandono da produção e da produtividade, da gestão clientelar, da incompetência dourada, da negociata do sector público. A quem competirá a incumbência de julgar os protagonistas do desastre da modernidade portuguesa?

Artigo 93.º Objectivos da política agrícola. a) Aumentar a produção e a produtividade da agricultura… Resultado destes objectivos :  incentivos à não produção, fuga em massa das populações do interior, desguarnecimento da coesão social do território. Os governantes ufanavam-se de Portugal ser bom aluno da Europa e de integrar o pelotão da frente. Um ministro comparou Portugal a um oásis no desolado panorama mundial. Em 1986, Portugal importava 40% do que comia. Em 2011, importa 80%. Um dos objectivos de qualquer país que tenha, como nós, potencial agrícola e piscatório, é a questão da soberania alimentar. Por razões óbvias:  económicas, financeiras, sociais, políticas, de defesa nacional. Em situações de emergência, ficaremos expostos às vicissitudes de mercado, de transporte, de chantagem. Que poderão ser dramáticas. Daí que a não autonomia alimentar, em tempos de normalidade, acarrete uma factura negativa na balança de transacções, e em tempos inesperados, agudize a subsistência e vulnerabilize a independência.

Artigo 100.º Objectivos da política industrial. a) O aumento da produção industrial… c) O apoio às pequenas e médias empresas. Conquistaram-se algumas unidades de componentes e montagem e de mais-valor tecnológico, pesem os fracassos de monta nesta área, mas não se deitou mão, com coerência, aos objectivos do preceito 10.º. Perdemos parte substancial da indústria pesada e da indústria mecânica, desmantelou-se a indústria naval, nuns casos, devido a política comunitária de abate, a privatizações e a deslocalizações, noutros casos, por inépcia de gestão e cedência à ideologia de um país de serviços e betão. Relativamente ao apoio, não obstante as pequenas e médias empresas representaram 95% do tecido empresarial e empregador, o Estado e a Banca drenaram o grosso dos recursos para as corporações com poder de manobra institucional e posições cruzadas nas fontes creditícias.

Artigo 101.º Sistema financeiro. O sistema financeiro é estruturado por lei, de modo a garantir a formação, captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social. Eis-nos diante de um dos principais agentes da desconstrução constitucional, um paradigma de impunidade e ineficácia da regulação. O sistema financeiro não é estruturado por lei:  molda a lei à sua medida. O sistema financeiro não garante as poupanças:  atente-se na conduta do BPN/BPP e nas técnicas persuasórias na atracção e direccionamento de poupanças. O sistema financeiro tem jogado com os meios sem preocupação com o desenvolvimento económico e social:  especulação bolsista e imobiliária, fundos de pensões, refúgios fiscais, crédito ao consumo em vez de crédito à produção, informação privilegiada nos negócios, regabofe nas remunerações, prémios e pensões vitalícias dos ungidos da banca. E no que toca ao financiamento para o desenvolvimento? O caudal mais volumoso é canalizado para as empresas corporativas e as grandes obras estatais, na maioria, sem retorno de valor. De acordo com a letra e o espírito da CRP e a racionalidade do desenvolvimento económico e social, a banca deveria estar ao serviço da economia e da sociedade, mas a economia e a sociedade é que estão ao serviço da banca. Mais grave:  estão prisioneiras e sufocadas. Portugal tinha o problema resolvido:  a banca nacionalizada. Então nacionalizava os lucros. Agora nacionaliza os prejuízos. O Estado abdicou de um instrumento de auto-determinação financeira para um desenvolvimento planificado e sustentado. O Estado caiu e deixou cair a Economia e a Sociedade na vertigem dos mercados. Parece que só há massa falida:  a do Estado, a dos bancos, a das empresas, a dos particulares. Enquanto grandes evasores e amontoadores de barras de ouro e cabazes de divisas se resguardam, a grande maioria encontra-se no olho do furação do sistema financeiro. A dívida da banca aos credores internacionais supera a do Estado, mas é o Estado que emite garantias e acorre a recapitalizar o sistema financeiro. A banca bem pode ufanar-se:  L`État c`est moi. A bancocracia sequestrou a democracia. Estruturação ? Segurança ? Aplicação dos meios ? Há uma chave para sair do labirinto e uma escada para sair do buraco:  a Constituição da República Portuguesa.

Artigo 108.º Titularidade e exercício do poder. O poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição… O povo não sente que o poder lhe pertence, porque não é exercido nos termos da Constituição. Começa a esboçar-se um alargamento da geografia da consciência e a delinear-se um reforço da resistência. Os sinais são múltiplos e planetários. A socióloga Saskia Sassen situa-os na movimentação da cidade global:  Os sem poder estão a fazer História.

Artigo 117.º Estatuto dos titulares de cargos políticos. 1. Os titulares de cargos políticos respondem civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções… Em geral, vigora o estatuto da impunidade e o expediente da prescrição dos processos. Inúmeras acções delituosas ficam no segredo dos gabinetes e dos encontros furtivos ou esgotam-se na sinuosidade dos inquéritos, no emaranhado das leis e nos recursos dilatórios. O legislador é político e não costuma facilitar as denúncias. O êxito das investigações depende da disposição de empenhar meios financeiros, técnicos e humanos. O sucesso da Justiça também depende da afectação de meios, formação técnica e vigor ético e cívico das magistraturas e de legislação lacerante e transparente. Os rumores provindos da esfera da corruptocracia, da mafiocracia, da cleptocracia (corrupção, tráfico de influências, abuso de mordomias, peculato e prevaricação) nunca mereceram uma resposta civil e criminal que aclarasse e sanasse as ligações perigosas de titulares de cargos públicos. Os observatórios nacionais e internacionais deste fenómeno assinalam a espessura da mancha. Para um ex-primeiro-ministro, Portugal é um pântano. Para alguns titulares da acção penal, Portugal é um paraíso do colarinho branco. As redes agem com a percepção da regra da omertà e da escapatória manga de avião e, por carências de cidadania, gozam de cobertura eleitoral. Deste modo, dificilmente enfrentam a Justiça do Estado e a sanção do sufrágio.

Artigo 127.º Posse e juramento. 3. No acto de posse o Presidente da República prestará a seguinte declaração de juramento:  Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa. Acontece que o Presidente da República tem uma concepção ideológica contaminadora do mandato. Cativo de preconceitos pessoais desvaloriza os conceitos constitucionais. O actual titular da Presidência acentuou o fosso entre o texto da CRP e o contexto político, económico, financeiro, social, havendo desencadeado rupturas e patrocinado desvios da senda constitucional, desde que exerceu a governação. O desenho do Estado que agora se pretende desengordar e reduzir ao mínimo é principalmente o Estado Social e o Sector Empresarial do Estado. A economia, também reduzida ao mínimo na agricultura, nas pescas, na indústria, no comércio tradicional, muito deve à decisão e à falta de visão do actual titular e dos seus próceres. O actual titular, como representante máximo do Estado Português, prossegue e acentua, na frente externa, a diplomacia do seguidismo, do banqueirismo, do militarismo. Contudo, na frente interna, como Comandante Supremo das Forças Armadas, é cúmplice da desorçamentação dos três ramos e do rebaixamento da condição militar. Na opinião do constitucionalista Jorge Novais, o mandato do actual titular será recordado numa legenda:  substancialmente falhado. Jurou defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa. Está visto que não defende, não cumpre e não faz cumprir. O juramento não transcende o acto de posse.

Artigo 272.º Polícia. 1. A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos. A defesa da legalidade democrática, da segurança interna e dos direitos dos cidadãos pressupõe uma polícia com formação técnica adequada e cultura constitucional intensiva. Pressupõe igualmente que seja guarnecida de meios operacionais, de condições profissionais dignas, de instalações condignas. Uma polícia que exerce as funções num circunstancialismo degradado e desmotivante não reúne o perfil técnico-cívico para cumprir satisfatoriamente o serviço público. Um Estado que marginaliza as polícias e só as dota de meios como guarda-costas de ilustres visitantes e personalidades do regime ofende a legalidade democrática , desacautela a segurança interna e os direitos dos cidadãos.

Artigo 273.º Defesa nacional. 1. É obrigação do Estado assegurar a defesa nacional…na ordem constitucional. A política de defesa nacional define-se e tem de ser levada a termo na ordem constitucional. Significa que o conceito de defesa nacional nos remete para diversas dimensões do articulado constitucional. Para evitar algum acento menos consensual, recorreremos ao Instituto de Defesa Nacional que, a partir do vector da segurança, procede a uma síntese:  Permanente garantia da sua sobrevivência (da Nação) em paz e liberdade, assegurando a soberania, a independência e a unidade, a integridade do território, a salvaguarda colectiva de pessoas e bens e dos valores espirituais, o desenvolvimento normal das tarefas do Estado, a liberdade de acção política dos órgãos de soberania e o pleno funcionamento das instituições democráticas. O que compete a todos cidadãos, que têm como intransmissível dever a defesa da pátria (artigo 276.1/CRP). Cidadãos que são instados a reflectir, não apenas quanto aos ditames da cidadania, mas a respeito das obrigações do Estado, detentor e mobilizador dos meios materiais de defesa e promotor de uma política de formato constitucional. O que importa questionar é se os meios agregados à Defesa Nacional terão sido e continuam a ser os mais consentâneos e realistas ou se terão padecido de negocismo de bastidor e de interferência externa. O que interessa colocar na agenda colectiva é se o Estado tem e continua a assegurar de forma mais racional e eficaz e segundo a ordem constitucional, a nossa soberania e a nossa independência, nos envolvimentos em teatros de guerra (logo de projecção de risco interno) e no domínio económico, financeiro, diplomático e cultural (igualmente praças fortes da soberania e da independência ). Com efeito, o comando constitucional da paz, do desarmamento controlado e da dissolução dos blocos deveria suscitar um debate sobre o grau de desvio constitucional.

Artigo 275.º Forças Armadas. 1. Às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República. 3. As Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei. 4. As Forças Armadas estão ao serviço do povo português… 5. Incumbe às Forças Armadas, nos termos da lei, satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faz parte. Sem especular, antes como prevenção teórica:  e se incumbirem as Forças Armadas de defender uma monarquia? A defesa militar da República só terá sentido em Portugal? E se um dia o directório militar da NATO nos implicar na defesa de regimes monárquicos (europeus, africanos, asiáticos)? Não estará subjacente à defesa da República a defesa dos valores republicanos? Deixemos a dilemática em aberto, esperando que o intervencionismo poupe as Forças Armadas Portuguesas a este constrangimento. Convirá, no entanto, alertar para outras instrumentalizações e afrontas, estas do concreto corrente. Os órgãos de soberania competentes terão a Constituição da República Portuguesa a seu lado sempre que incumbem as Forças Armadas de satisfazer compromissos internacionais e se comprometem a participar em missões humanitárias e de paz ? Como encaixar nestas missões a invasão humanitária ou a ocupação da paz, nitidamente à margem da legalidade internacional? Portugal é membro das Nações Unidas. Portugal é membro da NATO. Qual a sede de superior legitimação de acções militares e missões humanitárias? Se estas duas organizações não estiverem de acordo, o Estado Português obedece às Nações Unidas ou à NATO? E qual o papel arbitral e normativo da Constituição da República Portuguesa? Este questionário não é displicente nem académico. As Forças Armadas, que desencadearam a revolução democrática de Abril, não devem acatar servidões anti-constitucionais e devem esclarecer missões de equívoca constitucionalidade.

Estatuto dos Militares das Forças Armadas

Artigo 7.º Juramento de bandeira. O militar, em cerimónia pública, presta juramento de bandeira perante a Bandeira Nacional, mediante a fórmula seguinte: 

Juro, como português e como militar, guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República, servir as Forças Armadas e cumprir os deveres militares. Juro defender a minha pátria e estar sempre pronto a lutar pela sua liberdade e independência, mesmo com o sacrifício da própria vida.


Os militares são os únicos servidores da Pátria que juram dar a vida pela sua liberdade e independência. Outros juram cumprir as funções e lealmente servir. Os militares fizeram uma revolução:  derrubaram uma ditadura retrógrada e colaboraram na implantação de uma democracia avançada, que assenta em quatro pilares:  o político, o económico, o social, o cultural. Três pilares estão profundamente abalados:  o económico, o social, o cultural. Resta o político. Mas um regime democrático não se sustém sem base económica, social e cultural. Os militares cumpriram as suas promessas perante o Povo Português. Outros prometeram e prometem e não cumpriram nem cumprem.

Artigo 288.º Limites materiais de revisão. a) A independência nacional… e) Os direitos dos trabalhadores… f) A coexistência do sector público… O ataque em fase de aceleração passa por cima da independência, dos trabalhadores, do sector público. Contudo, não há independência nacional sem meios que assegurem a soberania, sem sustentação económica e financeira, coesão social e regional, promoção educativa e cultural. Toda esta programática está a ser expurgada da Constituição sem coragem de o afirmar. Os centros soberanos têm sede exógena. Os direitos dos trabalhadores estão em angustiosa compressão. A Associação Sindical dos Juízes Portugueses não tem dúvidas de que uma série de limitações de direitos dos trabalhadores e subtracções de rendimentos do trabalho violam os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade. O sector público da economia, que se posicionava como motor, está a ser diabolizado, descapitalizado, desactivado e saldado. O sector cooperativo está desapoiado e em transe. O sector privado está confiado a um cartel de interesses que usufrui de suporte legal e assessoria governamental e não consente espaço à verdadeira iniciativa privada, a 95% do tecido empresarial.

Após uma leitura comparada do Texto Fundamental e do real quotidiano, da narrativa da Carta Magna face à sucessão e acumulação de atropelos, num tempo de retrocesso democrático, soçobro da soberania e da independência, défice da justiça social, compete aos cidadãos defender os seus direitos num Estado de Direito e às instituições não corroídas cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa.

25/Outubro/2011

[1] Nas eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975, estavam inscritos 6.231.372 eleitores. Votaram 5.711.829 (91,66%). Abstiveram-se 519.543 (8,34%). Nas eleições legislativas de 2011, estavam inscritos 9.624.133 eleitores. Votaram 5.588.594 (58,07%). Abstiveram-se 4.035.539 (41,93%).

[*] Escritor / jornalista.

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26/Out/11