Quarenta e nove anos depois, no que respeita à História, está tudo dito e provado acerca do 25 de Novembro. O que resta discutir, e por isso se volta ao assunto todos os anos, é a questão política, isto é, o curso que o golpe imprimiu à vida do país – pela razão de que, ao derrotar o movimento popular de 74-75, o golpe abriu caminho, não apenas à destruição das principais conquistas revolucionárias, mas também, por isso mesmo, à reconstituição das forças sociais e partidárias mais reaccionárias da sociedade portuguesa. A anatomia política do golpe tem, portanto, de ser feita sob a luz do momento em que hoje estamos; do ponto de chegada e não tanto do ponto de partida de há 49 anos. A actualidade do assunto reside aqui.
O ponto de partida é sabido. Foi um golpe militar longamente preparado e executado pela ala direita dos militares, apoiados nos serviços de informação e governos europeus e norte-americano. Teve como ferro de lança político o Grupo dos Nove, o PS e Mário Soares. Visou pôr fim ao movimento popular mais radical da nossa história recente, desencadeado com a queda da ditadura. Criou condições para a reconstituição do grande capital português, desarticulado com a perda das colónias e por acção da onda operária-popular. Destruiu as organizações populares e operárias que deram corpo ao movimento revolucionário. Sobre os seus destroços, instituiu uma democracia parlamentar de que as classes trabalhadoras estão completamente arredadas no que respeita à questão essencial: o poder. Cumpriu, neste aspecto, aquilo que Gustave Flaubert, confrontado com a Comuna de Paris, preconizava para o povo: dê-se-lhe a liberdade, mas não o poder.
Sabido isto, é o ponto de chegada, ou seja, a situação actual, que suscita as perguntas mais interessantes e de resposta mais útil.
O que pretende a direita ao oficializar a evocação do 25 de Novembro? Dar mais um passo no arrastado processo da contra-revolução iniciada em 75. Com juras de respeito à democracia, leva a cabo uma campanha de desacreditação de tudo o que ainda possa cheirar a direitos e regalias colectivos, com efeitos práticos na privatização de tudo o que dê lucro, da saúde à escola ou à habitação. Quase cinquenta anos depois, o capital, agora com ampla representação partidária desde o centro reformista à extrema-direita fascista, prossegue a batalha de ideias para se impor como o único e irrecusável modo de vida dos portugueses de todas as classes.
Porque razão está o PS na mira da direita? A recuperação do poder do capitalismo português depois do abalo de 74-75 foi obra política do PS, na altura a única força partidária burguesa apta a consegui-lo. Só o PS estava estreitamente vinculado ao grande capital e, simultaneamente, próximo da pequena burguesia e das camadas populares menos radicalizadas para poder exercer um papel que permitisse isolar e desarticular o movimento operário e popular mais radical.
A consolidação do poder do capital desde então para cá mostra à burguesia portuguesa, hoje bem escorada no capital europeu, que já não tem de caminhar na sombra do reformismo do PS. A novidade de o PS e o seu suposto socialismo serem o alvo visível da restante direita não ilude acerca do alvo real: as classes trabalhadoras e os parcos direitos sociais de que ainda gozam.
O 25 de Novembro “repôs” o “espírito democrático” do 25 de Abril? O golpe militar que fez cair a ditadura, deu campo a dois movimentos opostos. Um, o da burguesia liberal que, para se ver livre das peias de um fascismo caduco, derrotado em África e abominado no país, só tinha como saída modernizar o seu poder na forma de uma democracia parlamentar legitimada pelo voto popular – ao jeito, claro, do conselho de Flaubert.
Outro, o da classe operária e dos trabalhadores mais pobres que tiveram a ousadia de tomar a liberdade e a democracia à letra e decidiram impor a sua vontade em termos práticos – organizando-se, decidindo e fazendo. Foi um esboço de democracia popular que pôs em causa os planos da burguesia liberal, abalou o poder do Estado, levou a reboque seis governos provisórios e ameaçou virar o país do avesso durante ano e meio.
A contradição entre estes dois 25 de Abril é flagrante e por isso a burguesia lhe dedicou e dedica o seu ódio. Pretender que Abril e Novembro se “completam” é pura hipocrisia, ainda ditada pela memória viva que, apesar de tudo, os trabalhadores têm dos acontecimentos.
O golpe de novembro instaurou uma democracia “para todos”? Os novembristas vendem a ideia de que os meses revolucionários equivaleram a uma ditadura imposta por uma minoria de extremistas, e que o golpe de novembro trouxe uma democracia sem discriminações, para bem de todos.
A verdade é que, nunca como naqueles dezanove meses, as classes trabalhadoras gozaram de tanta liberdade e foram capazes de fazer valer de modo tão determinado as suas exigências, materiais e políticas. A minoria que se sentia coagida era o patronato, os banqueiros e monopolistas fugidos no Brasil, os fascistas e colonialistas nostálgicos, os latifundiários expropriados pelos “levantados do chão” , os especuladores imobiliários, mais o séquito de servidores que vivia à sua sombra.
O primeiro objectivo do golpe de novembro foi retirar às classes trabalhadoras – às suas organizações democráticas de base – a capacidade de intervenção política que lhes permitira, nos meses do processo revolucionário, disputar a autoridade do Estado e dos governos.
A prova está no regime que hoje temos: um monopólio da burguesia, uma “democracia” da, e para a, minoria. A “normalização democrática” de 75 proscreveu a massa popular de qualquer papel na definição do regime político.
Não está à vista que, por via eleitoral ou parlamentar, os interesses da população trabalhadora possam ser atendidos. A maioria dos cidadãos habituou-se a identificar democracia com o mero exercício regular do voto, a ponto de não ver que a natureza de um regime político é determinada pelo poder de decidir e de agir. E esse poder está hoje, sem partilha, nas mãos da elite do capital.
O 25 de Novembro foi um acto “pacífico”? O golpe militar culminou uma conspiração preparada desde o verão de 1975. A par da intervenção que, no plano social e político, coube destacadamente ao PS e a Mário Soares, a direita, associada a diversos agrupamentos fascistas, levou a cabo, de forma concertada, acções terroristas, atentados bombistas, assassinatos, assaltos a sedes de partidos da esquerda durante todo o verão e outono daquele ano. Uma prefiguração do que hoje vemos suceder no plano partidário e parlamentar, agora a coberto da decência institucional.
Vários dos protagonistas de toda esta vasta manobra tinham sido os autores dos golpes – então derrotados pela resposta popular – de 28 de setembro e de 11 de março de 1974, este com vítimas mortais tal como o de novembro.
Em declarações à Agência Brasil (25.4.2013) e outros meios de comunicação, Mário Soares, recordando o golpe de 1975, disse sem rebuço: “se os comunistas tivessem tomado a comuna de Lisboa, nós bombardeávamos Lisboa”. E descreveu como um ponto alto do seu currículo os apoios (inclusive militares e logísticos) que foram prestados ao golpe pelos EUA, o Reino Unido, a Alemanha.
Como é fácil de ver, os “comunistas” e a “comuna de Lisboa” eram os sectores populares e operários mais activos, os que queriam levar mais longe a transformação do país. Isto desmente qualquer propósito pacífico e revela bem o extremo que a direita “democrática” esteve disposta a atingir para esmagar (à bomba, se preciso fosse) as ambições da população mais lúcida e radical.
Quem ganhou e quem perdeu com o golpe de novembro? As classes trabalhadoras mostraram, mesmo por breve período, ser o único agente capaz de proporcionar ao país um verdadeiro estado de liberdade e democracia, em resultado da sua actuação própria em defesa de direitos próprios.
O país transformou-se e progrediu, as liberdades políticas foram efectivas, a vida diária do povo melhorou enquanto a iniciativa política pertenceu às massas populares, enquanto a acção colectiva acossava o patronato e o regime político, enquanto a autonomia face ao poder instalado dava passos. Não pode haver mudança no rumo do país sem que o proletariado se assuma como força política independente e actuante.
A “normalização democrática” (a expensas de dinheiros públicos) recompôs os grandes grupos económicos do abalo sofrido. Um outro regime, dito representativo (representativo de quem, se não das classes dominantes?), tomou o lugar do que fora um tímido esboço de poder popular.
Não foi preciso esperar muitos anos para ver os frutos da mudança: primazia absoluta aos negócios e à propriedade privada, corrupção e fortunas fulgurantes, diferenças colossais sempre crescentes entre riqueza e pobreza, degradação dos serviços sociais e das condições de trabalho, os pobres de novo empurrados para baixo, os imigrantes vilipendiados além de explorados.
Um neo-novembrismo em tom de farsa. Nos dias que correm, é a direita-da-direita (Chega, Liberais, CDS) que assume papel de ponta de lança do novembrismo, retirando a bandeira aos agentes históricos do golpe. Quer empurrar o regime mais para a direita, chamando frouxos aos que em 1975 assumiram a cabeça da contra-revolução. Quer recuperar – não tanto na forma exacta, mas nas vantagens práticas – a liberdade de que o capital e as elites burguesas gozavam antes de a ditadura ter colapsado.
Mas, todo este rebotalho com propósitos extremados, ao afirmar-se como o herdeiro mais consequente do novembrismo – fazendo do golpe o acto, por excelência, fundador do regime actual (no que tem toda a razão!) – terá de arcar com as desgraças que o mesmo regime destila. Pela razão simples de que tais desgraças, à distância de 50 anos, não podem ser assacadas ao tímido esboço de democracia popular de 74-75 – mas sim à “normalização” burguesa, à recuperação do poder económico do capital, à rédea solta dada às classes dominantes para explorarem, enriquecerem e corromperem. É essa a origem do fosso entre as classes e do apodrecimento social e político de que somos testemunhas.