Formação profissional:
Quem manipula e quem está de má fé?
O aumento da qualificação profissional dos trabalhadores
portugueses é uma necessidade urgente, devia ser mesmo um objectivo
estratégico nacional. Como ficou claro quer em estudos nossos quer em
estudos elaborados por diversos investigadores não é
possível aumentar a produtividade e a competitividade das empresas
portuguesas, nem o nível de vida dos portugueses, nem garantir emprego
para os trabalhadores sem aumentar a escolaridade e a
qualificação profissional dos trabalhadores e dos
empresários portugueses. É uma condição
necessária embora não seja suficiente.
É por todas estas razões que abordar o problema da
formação profissional em Portugal nunca é demais.
No dia 4 de Dezembro, o secretário de Estado do Trabalho, reagindo a um
artigo publicado pelo
Jornal de Noticias
sobre a taxa de execução da formação profissional
cofinanciada com fundos públicos em Portugal, noticia essa elaborada com
base em dados de uma intervenção que fizemos num seminário
organizado pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança
Social, portanto um instituto tutelado pelo Ministério da
Segurança Social e do Trabalho, dados esses que na altura não
sofreram qualquer contestação, acusava o
Jornal de Noticias
e o autor daquela intervenção de manipulação
e má fé.
No entanto, esses dados constam do Relatório de execução
do Programa Operacional de Emprego e Formação Profissional
(POEFDS) de 2002, portanto são dados oficiais distribuídos
à Comissão de Acompanhamento do POEFDS. Só a falta de
experiência, de atenção, de estudo e deficiente
informação do secretário de Estado em matérias de
formação, para não utilizar os termos que ele usou,
é que explica a sua reacção descabida.
É certo que pouco tempo depois mudava de atitude, e num seminário
sobre Desenvolvimento Empresarial, Inovação e
Qualificação Profissional dos Trabalhadores realizado em 9
de Dezembro de 2003, portanto poucos dias depois, organizado pelo Departamento
de Estudos, Estatística e Planeamento Estatística do seu
Ministério na Culturgest em Lisboa, na intervenção final
que fez, ao abordar a informação sobre a formação
profissional, já afirmou que o mal é que a
informação publicada é muita o que permite que se tirem
conclusões diferentes sobre as diferentes matérias.
Mais uma vez o secretário de Estado falou de uma matéria que
não domina nem estudou suficientemente. Quem conheça minimamente
as questões da formação profissional em Portugal, sabe que
a informação é pouca, fragmentada e pouco consistente.
Para provar isso e para que se possa ficar com uma ideia da
situação que se verifica ainda neste campo 17 anos depois de se
ter entrada para a União Europeia, basta dizer que não existem
disponíveis em Portugal dados consistentes e abrangendo todo o universo
da formação profissional financiada por fundos públicos
sobre o número total de acções de formação
realizados repartidas pelas diversas áreas (domínios) de
formação; sobre as horas de formação previstas e
realizadas em cada área; sobre o número de formandos que se
podiam inscrever nessas acções, sobre os que as iniciaram
efectivamente, e sobre o número que terminaram com aproveitamento essas
acções por anos e por distritos; sobre os custos dessa
formação desagregada por domínios de
formação, por operadores públicos e privados; etc, etc; em
resumo, não existem dados disponíveis fundamentais consistentes e
globais (o que existe é uma informação insuficiente,
fragmentada e pouco consistente) para se poder fazer uma
avaliação séria e rigorosa da eficiência e da
eficácia do esforço financeiro público na
formação profissional em Portugal. O desafio que se pode e deve
fazer ao governo é que ele apresente tais dados e que preste contas
à opinião pública da aplicação e dos
resultados dessa aplicação para o País dos dinheiros
públicos gastos na formação profissional nos
últimos anos em Portugal, o que nunca fez.
E o grave é que o próprio governo revela, como provam as palavras
do secretário de Estado, por um lado, ignorância sobre esta
matéria e, por outro lado, uma falta de vontade para alterar a
situação. E isto num campo que é fundamental para
recuperar a situação de atraso em que se encontra o País e
para aumentar a produtividade e a competitividade das empresas portuguesas e
melhorar o nível de vida da população.
OS DADOS QUE PERTURBARAM
O SECRETÁRIO DE ESTADO DO TRABALHO
O secretário de Estado ficou perturbado com os dados sobre a
execução do POEFDS, que é o mais importante programa de
formação profissional existente em Portugal financiado pela
União Europeia (corresponde a cerca de 35% do Fundo Social Europeu)
relativa ao ano de 2002.
De acordo com dados constantes do Relatório de Execução do
POEFDS de 2002 apresentado na Comissão de Acompanhamento em que
participam os parceiros sociais e muitas outras entidades, incluindo
representantes da Comissão Europeia, em 2002 dos 663,1 milhões de
euros disponíveis para a realização de
formação cofinanciada pela União Europeia naquele ano
(neste valor está incluída a dotação de 2002 e a
parte não utilizada em 2000 e 2001); repetindo, dos 663,1 milhões
de euros que podiam ser utilizados em 2002 em acções de
formação profissional apenas foram gastos 380,1 milhões de
euros, ou seja, a taxa de execução foi apenas de 57%.
Em 2003, a situação não é muito diferente como
provam os dados do quadro I apresentados também na última
reunião da Comissão de Acompanhamento do POEFDS.
QUADRO I Execução financeira em 2003 do POEFDS
até 31 de Outubro de 2003
EIXOS
|
MEDIDAS
|
Dotação 2003
Em 1000
|
Executado até 31.10.2003
Em 1000
|
Taxa de execução da dotação de 2003
|
Eixo 1
|
Formação e Qualificação para a vida activa (jovens)
|
107.229
|
30.181
|
28,2%
|
Eixo 2
|
Formação ao longo da vida e adaptabilidade (activos)
|
90.976
|
39.356
|
43,3%
|
Eixo 3
|
Qualificar para modernizar a administração pública central
|
10.121
|
2.041
|
20,2%
|
Eixo 4
|
Promoção da eficácia da política de emprego e
formação
|
29.025
|
7.657
|
26,4%
|
Eixo 5
|
Promoção de desenvolvimento social
|
145.292
|
43.585
|
30,0%
|
TOTAL
|
|
387.859
|
123.012
|
31,7%
|
FONTE: Ponto da Situação apresentado à Comissão de
Acompanhamento do POEFDS, pág. 19
Como mostram os dados do quadro I, até 31 de Outubro de 2003, da
dotação para o ano de 2003 387,8 milhões de euros
, que não inclui o que transitou de 2002 por não ter sido
utilizado, apenas foi executado 123 milhões de euros, o que corresponde
a uma taxa de execução de apenas 31,7%.
E o mais grave é precisamente o que se verifica no Eixo 3
Qualificar para Modernizar a Administração Pública
cuja responsabilidade é directamente do governo. Da
dotação de 2003 10,1 milhões de euros para
aumentar a qualificação dos funcionários públicos
que é indispensável para modernizar a administração
pública, até 31 de Outubro de 2003, só tinham sido
utilizados 2 milhões de euros, o que corresponde a uma taxa de
execução de apenas 20,2%.
E isto sucede precisamente porque o governo para poder utilizar os fundos
disponibilizados pela UE para a formação profissional tem que
participar com uma pequena parcela de fundos nacionais, e como pretende
poupar por questões do défice não está
a utilizar os fundos da União Europeia. É esta mais uma
consequência da política fundamentalista financeira do governo que
está a contribuir para um maior atraso do País. Esta atitude
também representa um péssimo exemplo para o sector privado, em
que a maioria das empresas continua a considerar a formação
profissional não como um investimento, como sucede nos países
desenvolvidos, mas como um custo que é preciso não ter.
E o mais grave também em toda esta situação, é que
o governo não percebeu ou recusa-se a perceber, que a não
utilização atempada, portanto no ano em que podia e devia ser
feito, dos fundos comunitários para aumentar a
qualificação dos trabalhadores portugueses como está a
suceder, determina a perda de que nunca poderão ser recuperados pois,
também no campo da qualificação profissional, o tempo
não volta para trás como já afirmava a
canção. E mais quando entrarão em 2004 na União
Europeia países com populações muito mais escolarizadas e
com muita mais elevada qualificação profissional do que a
portuguesa que certamente entrarão em concorrência com os
trabalhadores portugueses nas próprias empresas portuguesas e com as
empresas portuguesas no mercado comunitário.
O NÃO CUMPRIMENTO DA CLAUSULA DA FORMAÇÃO E O ABANDONO DA
APROVAÇÃO DE UMA LEI DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL
O abandono escolar em Portugal é muito maior do que o verificado em
toda a União Europeia. De acordo com o Eurostat, a taxa de abandono
escolar atingiu no ano 2002, em Portugal, 45,5% , enquanto a média na
UE15, no mesmo ano, foi de 18,8%. Nos países que vão aderir
à UE em 2004, essa taxa é também muito menos elevada. Por
exemplo, na Polónia é 7,6%, na Hungria 12,3%, na
Eslováquia 5,6%, etc..
A maioria destes jovens que abandonam prematuramente a escola chegam ao mercado
de trabalho sem a escolaridade mínima e sem qualquer
qualificação profissional. É o primeiro passo para uma
emprego sem qualificação e mal pago para toda a vida e mesmo para
a exclusão social.
Para combater as consequências do generalizado abandono escolar que se
verifica em Portugal foi introduzido no Acordo sobre Política de
Emprego, Mercado de Trabalho Educação e
Formação, assinado pelo governo e por todos os parceiros
sociais, uma medida que estabelecia a introdução de uma clausula
de formação em todos os contrato de trabalho feitos pelas
empresas com jovens menores de 18 anos.
Esta medida visava criar condições para que os menores que
ingressem ou pretendam ingressar no mercado de trabalho antes dos 18 anos
tenham acesso, previamente ou durante o período em que trabalham,
à conclusão do ensino básico e à
obtenção de uma qualificação profissional.
A responsabilidade pela implementação desta medida foi dada ao
Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) a quem as
entidades patronais deviam informar todas as contratações feitas
com menores de 18 anos naquelas condições e a quem deviam
conceder anualmente um certo número de horas para eles poderem realizar
essa formação, cabendo ao IEFP a organização dessa
formação.
Devido à falta de vontade do governo esta importante medida que visava o
aumento da qualificação profissional de centenas de milhares de
jovens portugueses nunca foi verdadeiramente implementada (as entidades
patronais sempre recusaram enviar tal informação ao IEFP quando
contratavam jovens, e o governo nunca tomou medidas visando obrigá-las a
cumprir o acordo que tinham assinado), e para 2004 está previsto o
enterro final da clausula da formação.
Efectivamente, de acordo com o Plano de Actividades apresentado pela
Comissão Executiva do IEFP para 2004, no capitulo C-
Participação do IEFP na Política Global de Emprego ,
no mapa Síntese do Plano e Orçamento para 2004
(página C-1), na rubrica Clausula de Formação
consta o seguinte objectivo e verba:
META: 54 formandos; DOTAÇÃO: 500.000 euros
. E o ridículo e a gravidade tanto da meta como da dotação
para 2004 ainda se tornam mais evidentes se se comparar com o constante no
Plano de Actividades e Orçamento do IEFP para os anos de 2002 e 2003.
É o que se apresenta o quadro II.
QUADRO II Metas e dotação para a
implementação da CLÁUSULA DE FORMAÇÃO
constante do Plano de Actividades e Orçamento do IEFP
ANOS
|
META Nº formandos
|
Dotação Euros
|
2002
|
10.000
|
19.951.916
|
2003
|
10.000
|
13.000.000
|
2004
|
54
|
500.000
|
FONTE : Plano e actividades do IEFP 2004
Em resumo, esta importante medida nunca foi implementada por falta de vontade
política do governo e, em 2004, este mesmo governo decide enterrar
definitivamente esta medida através do IEFP.
Mas a falta de interesse na prática, ou seja, em actos, deste governo
pela formação profissional e pelo aumento da
qualificação dos trabalhadores portugueses, embora em palavras
não se canse de declarar a sua importância, não fica por
aqui.
Assim, uma das principais medidas anunciadas e repetidas pelo governo,
nomeadamente pelo ministro Bagão Félix, era a
aprovação de uma Lei da Formação Profissional. Em
Setembro de 2003, o governo apresentou um projecto aos parceiros sociais, tendo
sido realizadas duas reuniões. Na última o secretário de
Estado de Trabalho tomou o compromisso de apresentar até ao fim do
mês de Outubro de 2003 um novo projecto de Lei reformulado com base nas
propostas apresentadas por todos os parceiros. No entanto, o compromisso tomado
pelo governo não foi respeitado, e desde essa altura nunca mais se ouviu
falar da Lei da Formação Profissional.
O que consta do Código de Trabalho em relação à
formação profissional não reconhece este direito aos
trabalhadores nem contribuirá verdadeiramente para aumentar as baixas
qualificações dos trabalhadores portugueses.
Assim, de acordo com o Código de Trabalho os trabalhadores têm
direito, dentro do horário de trabalho, a 20 horas de
formação certificada em 2003, que aumentará todos os anos
até atingir 35 horas em 2006 (nº 3 e nº 4 do artº 125).
No entanto, segundo o nº 5 do artº 125, as horas de
formação certificada que não forem organizadas sob
responsabilidade do empregador por motivo que lhe seja imputável
são transformadas em créditos acumuláveis ao longo de 3
anos, no máximo. E ao fim destes 3 anos o que acontecerá
com estas horas acumuladas e não realizadas se a entidade patronal
persistir na não realização da formação? De
acordo com o artº 654 do Código constitui uma
contra-ordenação grave que poderá ser substituída
por dinheiro (nas empresas com volume de negócios inferior a 500.000
euros 100.000 contos coima varia entre 1600 euros e 3200 euros).
Esta troca de formação profissional por dinheiro também se
verifica em relação aos trabalhadores contratados a prazo. De
acordo com ao artº 137, estes trabalhadores têm direito ao seguinte
tempo de formação: (a) A 1% do período normal de trabalho
se o contrato durar menos de 1 ano e mais de 6 meses; (b) 2% se o contrato
durar entre um e menos 3 anos; (c ) 3% se o contrato durar mais de 3 anos. No
entanto, de acordo com o nº 5 do mesmo artigo o incumprimento
confere ao trabalhador um crédito correspondente ao valor da
formação que devia ser realizado.
Em resumo, num caso como no outro, no lugar de se obrigar a entidade patronal a
conceder ao trabalhador as horas a que ele tem direito para fazer
formação, e em permitir que ele possa fazê-la numa outra
entidade formadora obrigando a entidade patronal a pagar essa
formação, optou-se em trocar o direito à
formação, que devia ser um novo direito de cidadania, por
dinheiro ficando o trabalhador sem a formação. É evidente
o claro desinteresse do governo em contribuir, em actos e não em
palavras, para aumentar as qualificações profissionais dos
trabalhadores portugueses, que é urgente e necessário não
só para retirar o país da situação de atraso em que
se encontra mas também para enfrentar a concorrência acrescida dos
novos países que entrarão para a União Europeia em 2004
com populações muitas mais escolarizadas e qualificadas.
AS TAXAS OFICIAIS DE ACTIVOS EM FORMAÇÃO EM PORTUGAL
De acordo com dados do Eurostat, que é o serviço de
estatísticas da União Europeia, a taxa de activos em
formação em Portugal baixou, entre 2000 e 2002, de 3,3% para
2,9%, quando a média na União Europeia é de 8,5%, e quando
recentemente os ministros dos países da UE15 tinham estabelecido como
objectivo a atingir até 2010 a taxa de 10%. Em Portugal, de acordo com o
Plano Nacional de Emprego, o objectivo é de 12%.
Para fazer face às crescentes críticas que está a sofrer a
sua política de formação profissional, em que alguns
traços importantes ficaram claros neste artigo, o governo decidiu que a
taxa de activo em formação no ano 2003 seria de 3,7%,
número este que já foi divulgado por alguns órgãos
de comunicação social. Portanto, antes do ano 2003 ter terminado,
antes de se poder fazer qualquer apuramento sério dos dados sobre a
formação de 2003, o governo decidiu que a taxa seria de 3,7%.
Assim, não é taxa que tem de reflectir a realidade, mas sim a
realidade que tem-se de adaptar aos interesses e aos objectivos da propaganda
do governo. É evidente que dados fabricados desta forma não
merecem qualquer credibilidade.
Para se poder ficar com mais alguma informação a fim de que se
possa fazer uma avaliação da consistência dos dados
estatísticos divulgados pelo governo sobre a formação
profissional interessa ter ainda presente que, de acordo com estudo de
avaliação intercalar feito ao POEFDS por uma empresa externa
independente (e o POEFDS é certamente uma amostra daquilo que se observa
em toda a formação profissional em Portugal, pois é o
programa mais importante de formação cofinanciada) verifica-se a
seguinte situação: - (a) Os que participam nas
acções de formação são principalmente os
formandos de mais elevada escolaridade, o que determina que apesar da
esmagadora maioria da população empregada ter um baixo
nível de escolaridade (mais de 77% dos empregados têm o ensino
básico ou menos) não tem sido ela a principal beneficiária
com a formação profissional; (b) As acções de
formação realizadas têm cada vez menos
duração, o que determina que pouco contribuam para aumentar a
qualificação embora facilitem a apresentação de um
número mais elevado de activos em formação; (c) Um
número indeterminado de formandos participam em várias
acções de formação o que determina que os mesmos
formandos sejam contados varias vezes nas estatísticas oficiais do
governo.
Loures, 14/Dez/2003
[*]
Economista.
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