O jornalismo em Portugal
A situação actual do jornalismo e dos jornalistas no nosso
país é motivo de justificadas preocupações, na
sequência de uma evolução que se prolonga e vem agravando
desde há vários anos e cujo desenlace não é
possível prever. O que aqui se pretende não é mais do que
fazer um breve ponto de situação (ainda que sob um ponto de vista
pessoal), esboçando os tópicos de uma visão global que
permita recensear problemas e apontar desafios, na perspectiva de todos
quantos, nomeadamente a nível profissional e académico, se
preocupam com um jornalismo de qualidade.
Os temas abaixo abordados que não devem ser vistos isoladamente,
mas sim de uma forma cruzada e interdependente poderão parecer a
alguns demasiado eivados de uma perspectiva sindicalista,
quiçá até contaminados por um certo
corporativismo.
Julgo que as realidades actuais do trabalho são, hoje mais do que nunca,
neste sector como noutros, merecedoras de análises e
reivindicações de natureza sindical. Entretanto, não
sendo esse aqui o objectivo, a verdade é que, não só para
os próprios jornalistas mas também para aqueles que se
debruçam sobre o jornalismo e os jornalistas numa perspectiva
teórica, por exemplo ao nível do ensino e da
investigação, o conhecimento e a consideração das
realidades concretas da prática profissional me parece útil,
para não dizer indispensável, sob o risco de se cair num
exercício analítico fundamentado em realidades bem diferentes
daquelas que em Portugal se vivem.
Quanto ao corporativismo, penso que se trata de uma atitude
negativa quando (vinda geralmente de uma certa elite jornalística) se
traduz em defesa de privilégios, pretensão de estar acima de tudo
e de todos e de ser o árbitro da vida social, auto-suficiência ou
mesmo arrogância, reflectindo a inaceitável postura de que os
jornalistas têm liberdade de crítica mas não
deverão estar sujeitos às críticas dos outros.
Entretanto, a verdade é que, muitas vezes, lança-se o
labéu de corporativismo sobre tomadas de
posição dos jornalistas que não representam outra coisa
senão a legítima de defesa dos seus direitos, da sua autonomia e
da sua identidade, perante o cerco e as arremetidas, nomeadamente, de quem
defende que a função de informar e principalmente de formar o
público está ultrapassada e deve ser dissolvida ou pura e
simplesmente substituída pelo entretenimento.
FACTOR ECONÓMICO
As transformações operadas nos últimos anos nos media e no
jornalismo têm como eixo central o factor económico. Outros
factores, nomeadamente a evolução tecnológica, assumem um
importante papel, mas a renovada e reforçada influência dos
interesses económicos (que sempre existiu, mas agora revestida de
contornos quantitativa e qualitativamente novos) cria os contextos e indicia as
causas que permitem compreender as transformações em marcha.
Torna-se imprescindível conceder à interligação
entre os aspectos económicos e a actividade mediática em
particular no que se refere ao jornalismo e aos jornalistas a
preponderância que ela tem, ainda que tomando a precaução
de não cair em análises de tipo determinista, geradoras do
simplismo e da superficialidade.
O factor económico não é algo que apenas tem a ver com a
dimensão empresarial ou com os aspectos salariais: condiciona de forma
decisiva as práticas profissionais e o jornalismo que se produz. Por
alguma razão os capitães e os sargentos dos media passaram a
diluir o conceito de jornalismo numa outra expressão mais vasta, de
cariz economicista e equívoca sob o ponto de vista jornalístico:
produção de conteúdos.
CONCENTRAÇÃO DA PROPRIEDADE
O movimento de concentração da propriedade dos media, iniciado,
na sua actual fase, há cerca de uma década e meia no nosso
país
[1]
, é a face mais visível, mais significativa e com maiores
repercussões do predomínio do factor económico no campo
mediático.
A evolução dos últimos anos, com o incremento das novas
tecnologias e o aparecimento da chamada nova economia, revestiu
este movimento de características inéditas e deu aos grupos um
novo perfil, acentuando a sua dimensão plurimedia, reforçando o
peso dos sectores financeiros e outros sem ligação ao jornalismo
e mesmo aos media, aumentando o condicionamento das formas e da
substância da informação assim como as próprias
condições de vida e de trabalho dos jornalistas.
Em geral, os grandes grupos
(ver quadro anexo)
encaram a
informação (no sentido jornalístico) não como um
bem social mas como um negócio em que se investe ou desinveste ao sabor
das tendências do mercado, isto é, do objectivo exclusivo: o
lucro. Esta política (simbolizada e concretizada, ao nível das
empresas, por gestores oriundos de sectores alheios aos media e às suas
especificidades) aprofunda e alarga a todo o campo mediático uma mera
lógica mercantil, incompatível com a função social
do jornalismo.
[2]
PODER DO JORNALISMO E DA INFORMAÇÃO
O poder do jornalismo e da informação está a ficar cada
vez mais subordinado aos interesses económicos patronais. Este facto
reflecte a nova hierarquia de poderes na nossa sociedade: o poder
político passou a estar submetido ao poder económico, e os media
(aparentando agora ser o 1º poder, depois de perdida a veleidade de ser o
4º ou um contrapoder) não detêm senão um poder
delegado, concedido e gerido pelo poder económico dominante
(através da propriedade das empresas, da publicidade, dos circuitos de
distribuição, etc), no quadro dos limites que a este mais
convêm.
[3]
É certo que os media não são uma mera correia de
transmissão do poder económico e do poder político a ele
ligado. Possuem uma lógica própria, funcionam segundo uma cadeia
de produção que, entre outros aspectos relevantes, impõe
uma concepção do tempo muito mais rápida do que a dos
gabinetes dos conselhos de administração ou dos
ministérios. As horas de fecho, as linguagens próprias de cada
suporte mediático, as imposições da concorrência
(com a busca obsessiva da notícia em primeira mão e do
sensacional) não se compadecem com certas filosofias e práticas
do poder que, deste modo, entram por vezes em contradição com a
lógica dos media. Mas tudo se resolve dentro do quadro do sistema. Uma
revelação (não, necessariamente, uma
investigação
...) pode derrubar ministros mas não altera o essencial das
políticas.
PLURALISMO E DEMOCRACIA
A concentração da propriedade em poderosos grupos
económicos contribui para o estreitamento do pluralismo de
opiniões (no conjunto dos órgãos e dentro de cada
órgão), dificulta a viabilidade das pequenas e médias
empresas do sector, controla o debate no espaço público (para o
qual os media são decisivos) subordinando-o aos interesses
ideológicos, económicos e políticos do poder dos grandes
grupos, cada vez mais dependentes do grande capital financeiro. Tudo isto em
flagrante contraste com
o constitucionalmente preceituado: Todos têm o direito de exprimir
e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por
qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser
informado, sem impedimentos nem discriminações (Artº
37.1).
A pobreza do debate e a fragilização da democracia revelam-se nas
discriminações ideológicas, políticas,
económicas, sociais, culturais, étnicas, geográficas e
outras; no consenso (expresso na maioria dos editoriais, na escolha dos
colunistas e comentadores externos, etc) sobre os grandes temas da actualidade
nacional e internacional e na menorização ou silenciamento das
opiniões discordantes; na desvalorização das
diferenças, dos grupos minoritários, dos trabalhadores e das suas
organizações; na luz verde para a exploração das
fraquezas, condutas duvidosas e intromissão na vida privada dos
políticos e na luz vermelha para uma semelhante atitude em
relação aos grandes senhores do capital.
CRITÉRIOS JORNALÍSTICOS
A prioridade dada à luta pelas audiências e pelas tiragens, tendo
em vista a conquista dos anunciantes, acentua graves distorções
no tratamento da actualidade e na utilização dos critérios
noticiosos. A concepção da informação como uma
mercadoria que é preciso vender depressa e bem, leva ao
predomínio não só do sensacional, mas também do
curto, rápido e simples, do superficial e facilmente digerível,
reflectindo a tendência para a supremacia dos valores comerciais sobre os
valores jornalísticos.
A concorrência sem lei potenciada pelo domínio da lógica
económica trazida pela concentração em grandes grupos,
está na origem de realidades como a descontextualização e
fragmentação da informação (nomeadamente ao
nível da televisão, cuja linguagem a isso mais se propicia,
transmitida a um ritmo que, mais do que informar, visa prender o
telespectador); falta de investimento patronal no jornalismo de
investigação (muitas vezes substituído por trabalhos com
pouco de investigação e muito de encomenda pronta a
usar ou de mera especulação); a contaminação
das formas jornalísticas pelas técnicas persuasivas e
chamativas próprias da publicidade (ostensivamente patente
em títulos de 1ª página e aberturas de noticiários);
a transformação dos media em suportes de mercadorias noticiosas e
palco de lutas de interesses políticos ou outros, aproveitados,
estimulados ou mesmo provocados com o objectivo de seduzir e aumentar as
audiências.
Perigosa perversidade: muitos jornalistas começam a interiorizar como
valores jornalísticos aquilo que são apenas valores comerciais e
a considerar bom jornalismo o jornalismo que vende bem.
É profundamente lamentável e condenável ver jornalistas
(nomeadamente responsáveis editoriais) aceitarem a
transformação do jornalista em mero e acrítico transmissor
de novidades, em objectiva conivência com os produtores ou
interessados na sua divulgação, à revelia da
indeclinável responsabilidade social da profissão.
NOVAS TECNOLOGIAS
A aplicação das novas tecnologias ao jornalismo trouxe
inegáveis vantagens ao exercício da profissão (e à
própria indústria dos media), proporcionando mais rapidez e
qualidade numa série de operações ao nível da
imprensa, da rádio e da televisão. Mas trouxe igualmente
perigosas armadilhas. Por exemplo, as novas possibilidades do directo,
conjugadas com as imposições da concorrência e a
ânsia de chegar primeiro e de não falhar,
conduziram ao seu abuso na televisão, incapacitando o jornalista de
exercer plenamente a função de mediador entre o acontecimento e
o público e recolocando-o na velha e desqualificada
situação de pé de microfone.
O recurso à Internet como fonte de informação revelou-se
um instrumento de extraordinário valor para o trabalho nas salas de
redacção e o contacto destas com as fontes, ao mesmo tempo que o
jornalismo
on line
rasgou novas e insuspeitadas possibilidades para o acesso do público
à informação. Simultaneamente, juntamente com a vertigem
da rapidez e da
cacha
, abriram-se também as portas para o esquecimento da
prática do contraditório e da confirmação das
fontes, assim como para a sedentarização profissional e o
reforço do jornalismo sentado.
Impõe-se a necessidade de encontrar formas de conciliação
entre as potencialidades das novas tecnologias e a manutenção de
princípios básicos da profissão.
AUTONOMIA JORNALÍSTICA E IDENTIDADE PROFISSIONAL
A procura da informação é crescentemente
substituída pela sua oferta: as fontes mais poderosas e
organizadas, privadas e públicas, aperfeiçoam mecanismos de
persuasão/influência e de facilitação do
trabalho jornalístico, dificultando a sua capacidade de iniciativa,
criatividade e distanciamento e favorecendo a homogeneidade e
burocratização. Profissionais exteriores ao campo
jornalístico e alheios às suas especificidades cívicas e
deontológicas (gestores, publicitários, relações
públicas, consultores, assessores, comentadores, animadores, etc.)
têm cada vez mais interferência e participação, mesmo
que indirecta, na produção jornalística. As
pressões internas, traduzidas num consenso implícito
dentro da sala de redacção acerca das formas de tratamento dos
temas, entidades ou pessoas, configuram por vezes verdadeiras, ainda que
sofisticadas, formas de censura (ou de autocensura).
Simultaneamente com a consequente perda de autonomia e espaço de manobra
dos jornalistas e a sua consequente fragilização, ocorrem outros
fenómenos convergentes, como a diversificação e o aumento
de órgãos e de profissionais; a segmentação interna
do grupo profissional (nomeadamente nas grandes redacções), com a
consolidação de um núcleo dirigente e de enquadramento,
elo de ligação (e transmissão) entre as
administrações e os restantes membros da redacção;
a diferenciação em várias formas de exercer o jornalismo,
consoante o suporte utilizado (imprensa, rádio, televisão,
on line
), a periodicidade, o seu caracter nacional ou local, generalista ou
especializado, o estatuto editorial, o lugar do jornalista na hierarquia
redactorial, a sua sujeição a uma polivalência imposta
pelas sinergias de grupo (e prejudicial à qualidade do
trabalho), etc.
Estas e outras alterações afectaram a anterior homogeneidade do
grupo e reforçaram o individualismo e a dispersão, criando uma
crise de identidade profissional e o sentimento de que se caminha para um
novo, mas ainda indefinido, paradigma jornalístico.
CONDIÇÕES DE TRABALHO
Ao logo dos últimos anos as condições de trabalho dos
jornalistas (falo da grande maioria, e não das elites e vedetas)
têm-se vindo a degradar. Um recente documento sindical (Por uma
agenda dos poderes públicos para os media Contributo do Sindicato
dos Jornalistas) caracterizava assim a situação:
-
Desrespeito generalizado por direitos consagrados em lei e nos contratos
colectivos de trabalho
-
Tentativa de diminuição da capacidade reivindicativa e do
exercício de direitos fundamentais
-
Recurso generalizado à substituição de jornalistas por
estudantes de jornalismo, constituindo uma prática sistemática de
trabalho ilegal
-
Recurso a utilização de formas de trabalho precário
(recibos verdes e contratos a termo)
-
Precariedade dos próprios salários e até fuga ao pagamento
à Segurança Social e ao Fisco
-
Proliferação de contratos individuais de trabalho, estabelecendo
cláusulas à margem das convenções colectivas
geralmente menos favoráveis do que estas
-
Elevado número de empresas à margem de qualquer
associação patronal
-
Avaliações de desempenho dos jornalistas e outros trabalhadores
sem a negociação prévia dos respectivos regulamentos com
as organizações representativas dos trabalhadores
-
Agravamento do esvaziamento das redacções, designadamente com
recurso às rescisões ditas amigáveis, empobrecendo
gravemente a memória histórica nos órgãos de
informação
-
Estagnação ou mesmo inexistência de carreiras profissionais
-
Redução dos salários reais
-
Atribuição discricionária de aumentos salariais
-
Criação de condições objectivas para a autocensura
e para a subordinação a normas e procedimentos estranhos à
liberdade de imprensa e à independência dos jornalistas
Este panorama fala por si e mostra até que ponto as
condições de trabalho podem condicionar seriamente a qualidade,
disponibilidade e responsabilidade da actividade dos jornalistas.
DEONTOLOGIA
As questões da ética profissional não podem ser vistas,
apenas, por um prisma individual, ainda que seja indiscutível haver
jornalistas mais preocupados com a observância das normas do
Código Deontológico e outros que agem como se ele não
existisse, em assumida ou consentida conivência com os interesses
estritamente comerciais e a verdade é que há mesmo alguns
(e não, necessariamente, entre os mais jovens na profissão) que,
realmente, não o conhecem.
A questão de fundo, que não é nova, é que a
força das pressões mercantilistas dentro das
redacções, concretizadas na luta pelas audiências, na
prioridade e formas de abordagem concedidas a determinados temas, na
cedência perante a superficialidade, a falta de rigor e o sensacionalismo
e, por vezes, na própria concorrência entre jornalistas, favorece
a existência de um clima, ou mesmo, a pouco e pouco, de uma cultura
profissional, em que o cumprimento de algumas regras básicas da
deontologia, e às vezes do simples bom senso e bom gosto, se torna num
obstáculo (e não num factor positivo) para o reconhecimento por
parte dos superiores, a progressão na carreira ou mesmo a garantia do
emprego. Nas concretas condições actuais, não é
fácil a um jornalista (tanto mais quanto mais frágil for a sua
situação laboral) opor com frontalidade os argumentos da
ética perante um patrão (ou seus representantes na sala de
redacção) obcecado pelas exigências do mercado.
Assim sendo, não tem grande sentido criar mecanismos de
autopunição dentro da classe (com Ordem ou sem ela), já
que muitas das derrapagens éticas ocorrem no contexto de uma
prática profissional comandada pelos critérios (mais comerciais
do que jornalísticos) de empresários não sujeitos a
qualquer tipo de normas éticas ou princípios de responsabilidade
social.
ACESSO E FORMAÇÃO
Desde há vários anos que o mercado de emprego neste sector se
encontra desequilibrado, caracterizando-se por uma procura sensivelmente maior
do que a oferta. Sem prejuízo da necessidade de uma melhor
adequação da oferta à procura, o problema, porém,
não reside tanto no facto de haver jornalistas a mais, mas sim e
são mais uma vez os interesses económicos a sobreporem-se aos
interesses da informação , por um lado, nas
políticas de emagrecimento forçado seguidas,
nomeadamente, pelas grandes empresas, obrigando à
ubiquidade dos que restam, às horas extraordinárias
não pagas e outros expedientes, ao mesmo tempo que os jovens
saídos das universidades e institutos superiores são
escandalosamente utilizados, em estágios realizados em
regime de rotatividade contínua, como mão-de-obra barata ou mesmo
gratuita. Situação esta que impõe uma urgente
clarificação legal dos estágios e das formas de acesso.
Por outro lado, muitas pequenas e médias empresas, nomeadamente na
imprensa e rádio locais, pressionadas pelas dificuldades
económicas, em boa parte resultantes quer da falta de apoios oficiais
quer da voraz concorrência desenvolvida pelos grandes grupos, não
preenchem todos os postos de trabalho de que necessitam ou fazem-no com pessoal
não devidamente credenciado.
Dentro das empresas as questões da formação
(formação contínua, cursos de reciclagem e
aperfeiçoamento) são vistas segundo critérios
economicistas: custam dinheiro, roubam tempo às tarefas de
rotina, não proporcionam rentabilidade imediata portanto,
não se fazem. E quando são encaradas, é na perspectiva da
transmissão e consolidação das regras da casa,
da integração na cultura da empresa, da
padronização de comportamentos, valores e objectivos comuns a
todos os sectores desde os gestores ao departamento de marketing,
passando pela redacção...
SOLIDARIEDADE, UNIDADE, MOBILIZAÇÃO
A crise de identidade profissional, o individualismo e a dispersão
já referidos, tornam imprescindível reafirmar na prática
valores como os da solidariedade e da camaradagem, entendendo que a unidade e
a mobilização a nível das redacções e a
nível geral é uma condição necessária para
vencer os desafios, defender e dignificar a profissão e pugnar pela
informação como um bem social. Há que apoiar e colaborar
com o Sindicato no papel que desde o início dos anos 70, ainda antes do
25 de Abril, vem desenvolvendo em defesa da classe e de um jornalismo de
qualidade, assim como participar nas estruturas, como os Conselhos de
Redacção, com competências legais para intervir em diversos
aspectos da vida das empresas.
Repare-se que não se trata aqui apenas de salários, carreiras
profissionais, etc, mas sim também de aspectos que têm a ver com o
próprio cerne da profissão, no seu sentido mais nobre
nomeadamente tudo o que tem a ver com a deontologia.
É sabido que os constrangimentos e pressões, e até mesmo
as chantagens e ameaças a que os jornalistas estão muitas vezes
sujeitos internamente, no sentido de se acomodarem e não assumirem
posições activas de contestação, mesmo quando se
trata dos mais elementares direitos, dificultam ou mesmo inviabilizam
determinado tipo de atitudes. Mas a verdade é que são
vários os exemplos, incluindo ao nível de redacções
de órgãos de informação pertencentes a grandes
grupos económicos, em que a unidade e a mobilização dos
jornalistas (e outros trabalhadores) tem levado a importantes conquistas com
reflexos no exercício da profissão.
ENSINO E INVESTIGAÇÃO
De todos estes problemas e desafios não pode ser desligado um outro: o
do ensino ministrado nas universidades e institutos superiores e, numa
perspectiva mais ampla, as relações entre o mundo
académico e o mundo profissional. O distanciamento outrora existente
tende cada vez mais a esbater-se, e a transformar-se, mesmo, em
aproximação e cooperação, com evidentes vantagens
para ambas as partes. Trata-se, aliás, de um objectivo em que, desde o
início, esta revista se tem particularmente empenhado.
Está hoje praticamente adquirido entre os profissionais que um curso
superior, particularmente se for na área específica do
jornalismo, constitui um factor de grande importância para o bom
desempenho das funções jornalísticas. Mas é preciso
que essa atitude recíproca de abertura se alargue e intensifique,
criando laços contínuos de aproximação e de
conhecimento mútuo, no quadro de iniciativas de diverso tipo.
Julgo particularmente positivo o facto de nos últimos anos um
número significativo de jornalistas terem decidido complementar a sua
experiência profissional com a aquisição de uma
formação teórica (por exemplo, cursos de
pós-graduação), tendo em vista a satisfação
de um compreensível e elogiável interesse em completar o
saber prático com o saber teórico, e que
pode até vir a constituir um enriquecimento dos quadros docentes do
ensino superior nesta área.
Um movimento de algum modo simétrico seria desejável da parte do
mundo académico. Julgo igualmente positivo o facto de os investigadores
cada vez mais se mostrarem disponíveis para eleger como corpo de
análise a realidade portuguesa a qual, mesmo assim, me parece
ainda bastante mal conhecida nas escolas superiores. Não é
possível teorizar sobre o jornalismo e os jornalistas sem ter em conta
as condições concretas em que se exerce a profissão. Mas
o certo é que, há apenas meia dúzia de anos, contavam-se
pelos dedos de uma mão os estudos nesse âmbito, e hoje são
já na ordem das dezenas as obras publicadas, em maioria, aliás,
com base em teses académicas, nomeadamente de mestrado.
MUDANÇA
É absolutamente necessário não confundir a análise
crítica da realidade com qualquer sentimento de apego ao passado e de
recusa à mudança do mesmo modo, aliás, que o
aproveitamento e aprofundamento do que é novo e positivo, por exemplo ao
nível das novas tecnologias, não pode servir de pretexto ou
encobrimento para a aniquilação do jornalismo enquanto
instrumento de informação, formação e
entretenimento, sobrevalorizando este em detrimento dos outros.
As mudanças nas formas de os jornalistas pensarem e praticarem o
jornalismo são inevitáveis e positivas, na medida em que mostram
até que ponto eles estão empenhados na melhoria do seu trabalho
e no aprofundamento da sua responsabilidade social. O que é
necessário é que princípios essenciais definidores da
actividade jornalística o rigor, a isenção, a
procura da verdade, a deontologia não sejam, mais ou menos
subrepticiamente, deitados pela borda fora sob o pretexto da sua
desadequação aos novos tempos.
É preciso não encarar a actual configuração do
sistema dos media (sujeito ao poder económico dominante) e o lugar nele
ocupado pelos jornalistas (cada vez mais subalterno e, segundo os desejos de
alguns, em vias de extinção) como algo de definido para a
eternidade e como componente de um tempo que representaria o fim da
História, mas sim encarar tal realidade de uma forma
problematizante e crítica, susceptível de ser transformada.
________________________
[*]
Jornalista, chefe de redacção da revista Vértice. Mestre
em Comunicação, Cultura e Tecnologias da
Informação. Professor na Universidade Lusófona.
ANEXO
PRINCIPAIS GRUPOS DE MEDIA EM PORTUGAL
GRUPO
|
PUBLICAÇÕES
|
ACCIONISTAS
|
PT Multimedia / Lusomundo Media
|
Jornal de Notícias, Diário de Notícias, 24 Horas, Tal &
Qual, Jornal do Fundão, Açoriano Oriental, DN Funchal, Grande
Reportagem, Volta ao Mundo, Evasões, Cinemania, Viver com Saúde,
Viagens, Adolescentes, National Geographic, Play Station
Participação na Lusa TSF Editorial Notícias, Oficina do
Livro. Principal proprietário de salas de cinema e quase
monopólio na exibição e distribuição de
filmes e vídeo, em aliança com a Warner, e com negócios
também em Espanha, TV Cabo, Premium, Gallery e
participação em vários canais, como Sport TV e SIC
Notícias. Posições na internet (portal SAPO e outros
serviços). Participação na distribuidora de
publicações VASP Gráficas Naveprinter e Funchalense.
Negócios no Brasil, Moçambique e Espanha (cinemas).
|
Perto de 60% da PT Multimedia pertence à PT. Outras
participações: Banco Espirito Santo, Banco Totta & Açores,
Colaney Investments Limited, e Banco Português de Investimento. Quanto
à Lusomundo Media, é detida maioritariamente (74,97%) pela
Lusomundo SPGS (que é pertença da PT Multimedia), e ainda em 19%
pela Cofina e 5,93% pelo Fidelity (fundo britânico).
|
Impresa
|
Expresso, Visão, Jornal de Letras, Blitz, Surf, Exame, Executive Digest,
Exame Informática, Doze, Telenovelas, Caras, TV Mais, Casa
Cláudia, Activa, Super Interessante, Turbo, Autoguia, Autosport/Volante
Jornal da Região (imprensa gratuita), com edições em
vários pontos do país (em parceria com a empresa belga Roularta)
Participação na Agência Lusa SIC, SIC Notícias,
Gold, Radical, Mulher, Internacional Internet (informação e
outros serviços). Participação na distribuidora de
publicações VASP Gráfica Imprejornal Negócios em
Espanha
|
A maioria do capital (50,7%) pertence à Impreger (Francisco P.
Balsemão), detendo o BPI 14%. O BPI também detém 26% da
SIC. A Edipresse (Suíça) detém 50% da Edimpresa, editora
das revistas do grupo. A Globo tem 15% da SIC. A PT Multimedia tem 40% da SIC
Notícias.
|
Media Capital
|
Lux, Lux Deco, Lux Woman, Super Maxim, PC World, Computer World, Briefing,
Casas de Portugal, Revista de Vinhos TVI; grupo NBP (principal produtor de
telenovelas); RETI (Rede de Emissores de Televisão Independente)
Rádio Comercial, Rádio Clube Português, Cidade, Best Rock
FM, Romântica, Nacional, Mix, Cotonete Internet (portal IOL, Portugal
Diário, Mais Futebol, agênciafinanceira.com).
Produção discográfica e de concertos Empresas de
outdoor
publicidade externa
|
O capital pertence à Vertix (Francisco Paes do Amaral e Nicholas
Berggruen) 39,3%; HMTF (Hicks, Muse, Tate & Furst) 37,7%; Bavaria
(cervejeira colombiana Bavaria/Stº Domingo, com extensões em
Espanha) 22,9%. A HMTF (fundo de investimento com sede em Dallas, EUA)
possui, nomeadamente, mais de um milhar de estações de
rádio e mais de três dezenas de canais locais de TV nos EUA e
noutros países. Da equipa de conselheiros da empresa, principalmente no
que se refere à sua expansão no estrangeiro, contam-se os
ex-secretários de Estado Henry Kissinger e James Baker, George Bush
(pai) e os ex-primeiro-ministros John Major (Inglaterra) e Brian Mulroney
(Canadá).
|
Cofina
|
Record, Correio da Manhã, Jornal de Negócios, Máxima,
Máxima Interiores, TV Guia, GQ, Vogue, AutoSport, Automotor, PC Guia,
Rotas & Destinos, Semana Informática, Semana Médica, etc.
Participação de 19% na Lusomundo Media Participação
na TVTel Grande Porto (cabo) Participação na distribuidora VASP
Internet.
|
As principais participações institucionais pertencem à
Cofihold SGPS (Cofina/Investec) 21%, Portuguese Smaller Companies Found
10,01%, e BPI 8,71%.
|
Impala
|
Maria, Ana, Nova Gente, TV 7 Dias, Mulher Moderna, Mulher Moderna Cozinha,
Mulher
Moderna Moda, VIP, Focus, Boa Forma, Crescer, 100% Jovem, Linhas % Pontos
e outras (instabilidade de títulos) Negócios no Brasil e Espanha
(net e edição de livros infanto-juvenis) Internet.
|
Jacques Rodrigues
|
Recoletos
|
Diário Económico, Semanário Económico
Internet
Vários jornais em Espanha
(Marca,
participação no
El Mundo, etc),
nomeadamente no sector económico
(Expansión, Actualidad Económica,
com extensões à net e à TV)
Cadeia de rádios ligados à
Marca
Jornais de economia na Argentina e no Chile
|
A maioria do capital da Recoletos pertence ao grupo britânico Pearson (um
dos gigantes europeus):
Finantial Times, The Economist, editora Penguin, etc.
|
Prensa Ibérica
|
A Capital, O Comércio do Porto, Correio do Minho;
Faro de Vigo e mais de uma dezena de outros jornais regionais (metropolitanos)
em Espanha.
|
|
Olivedesportos
|
O Jogo
Sport TV, em conjunto com a PT Publicidade nos estádios e direitos de
transmissão desportivas
|
Joaquim Oliveira e António Oliveira.
|
Estado
|
RTP 1 e 2, Internacional, África, canais regionais RDP Antenas 1,
2 e 3, Internacional, África Agência Lusa
|
|
Igreja Católica
|
R. Renascença, RFM, Mega FM 70 rádios locais e mais de 500
revistas e jornais locais e regionais
|
|
Igreja Universal do Reino de Deus
|
Uma dezena de rádios locais
|
|
Fontes:
Relatórios e Contas das empresas, Obercom, estudos da
União de Bancos Suíços, imprensa.
Notas:
Não se incluem áreas de negócios não directamente
ligadas com os media. Incluem-se o Estado e as igrejas, salvaguardando o facto
de não se tratarem de grupos económicos. O quadro refere-se a
grandes grupos de comunicação social, daí o facto de
não se referirem importantes órgãos como
A Bola
, propriedade familiar desde a sua fundação, e
O Público
propriedade de um poderoso grupo económico, a SONAE, mas sem
expressão na comunicação social, ainda que com forte
presença nos novos media, através da SONAECOM
(nomeadamente Optimus, Novis e Clix). Não se referem grupos de natureza
regional, não obstante a significativa dimensão já
atingida por alguns deles. Os dados foram recolhidos até Outubro de
2003.
____________
NOTAS
1 Cf. Fernando Correia,
Os Jornalistas e as Notícias
, Lisboa, Caminho, 1997.
2 Cf. por exemplo Dominique Wolton,
Pensar a Comunicação
, Lisboa, Difel, 1997, pp. 238-9 e 249-50, e Claude-Jean Bertrand,
A Deontologia dos Media
, MinervaCoimbra, 2002, pp. 121, 125 e 129; ver também Fernando Correia,
Novos Desafios, Problemas Novos,
JJ Jornalismo e Jornalistas
, nº 3, Julho/Setembro 2000 e Media, Negócio e Ideologia.
Concentração à Portuguesa,
Le Monde Diplomatique,
versão portuguesa, Novembro 1999.
3 Cf. Enrique Bustamante,
Los Amos de la Información en España
, Akal, Madrid, 1982. Mais recentemente, Inatio Ramonet tem insistido, em
vários dos seus trabalhos, neste ponto de vista aplicado à
análise dos media.
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