O jornalismo em Portugal

por Fernando Correia [*]

. A situação actual do jornalismo e dos jornalistas no nosso país é motivo de justificadas preocupações, na sequência de uma evolução que se prolonga e vem agravando desde há vários anos e cujo desenlace não é possível prever. O que aqui se pretende não é mais do que fazer um breve ponto de situação (ainda que sob um ponto de vista pessoal), esboçando os tópicos de uma visão global que permita recensear problemas e apontar desafios, na perspectiva de todos quantos, nomeadamente a nível profissional e académico, se preocupam com um jornalismo de qualidade.

Os temas abaixo abordados – que não devem ser vistos isoladamente, mas sim de uma forma cruzada e interdependente – poderão parecer a alguns demasiado eivados de uma perspectiva “sindicalista”, quiçá até contaminados por um certo “corporativismo”.

Julgo que as realidades actuais do trabalho são, hoje mais do que nunca, neste sector como noutros, merecedoras de análises e reivindicações de natureza sindical. Entretanto, não sendo esse aqui o objectivo, a verdade é que, não só para os próprios jornalistas mas também para aqueles que se debruçam sobre o jornalismo e os jornalistas numa perspectiva teórica, por exemplo ao nível do ensino e da investigação, o conhecimento e a consideração das realidades concretas da prática profissional me parece útil, para não dizer indispensável, sob o risco de se cair num exercício analítico fundamentado em realidades bem diferentes daquelas que em Portugal se vivem.

Quanto ao “corporativismo”, penso que se trata de uma atitude negativa quando (vinda geralmente de uma certa elite jornalística) se traduz em defesa de privilégios, pretensão de estar acima de tudo e de todos e de ser o árbitro da vida social, auto-suficiência ou mesmo arrogância, reflectindo a inaceitável postura de que os jornalistas têm liberdade de crítica mas não deverão estar sujeitos às críticas dos outros.

Entretanto, a verdade é que, muitas vezes, lança-se o labéu de “corporativismo” sobre tomadas de posição dos jornalistas que não representam outra coisa senão a legítima de defesa dos seus direitos, da sua autonomia e da sua identidade, perante o cerco e as arremetidas, nomeadamente, de quem defende que a função de informar e principalmente de formar o público está ultrapassada e deve ser dissolvida ou pura e simplesmente substituída pelo entretenimento.

FACTOR ECONÓMICO

As transformações operadas nos últimos anos nos media e no jornalismo têm como eixo central o factor económico. Outros factores, nomeadamente a evolução tecnológica, assumem um importante papel, mas a renovada e reforçada influência dos interesses económicos (que sempre existiu, mas agora revestida de contornos quantitativa e qualitativamente novos) cria os contextos e indicia as causas que permitem compreender as transformações em marcha.

Torna-se imprescindível conceder à interligação entre os aspectos económicos e a actividade mediática – em particular no que se refere ao jornalismo e aos jornalistas – a preponderância que ela tem, ainda que tomando a precaução de não cair em análises de tipo determinista, geradoras do simplismo e da superficialidade.

O factor económico não é algo que apenas tem a ver com a dimensão empresarial ou com os aspectos salariais: condiciona de forma decisiva as práticas profissionais e o jornalismo que se produz. Por alguma razão os capitães e os sargentos dos media passaram a diluir o conceito de jornalismo numa outra expressão mais vasta, de cariz economicista e equívoca sob o ponto de vista jornalístico: “produção de conteúdos”.

CONCENTRAÇÃO DA PROPRIEDADE

O movimento de concentração da propriedade dos media, iniciado, na sua actual fase, há cerca de uma década e meia no nosso país [1] , é a face mais visível, mais significativa e com maiores repercussões do predomínio do factor económico no campo mediático.

A evolução dos últimos anos, com o incremento das novas tecnologias e o aparecimento da chamada “nova economia”, revestiu este movimento de características inéditas e deu aos grupos um novo perfil, acentuando a sua dimensão plurimedia, reforçando o peso dos sectores financeiros e outros sem ligação ao jornalismo e mesmo aos media, aumentando o condicionamento das formas e da substância da informação assim como as próprias condições de vida e de trabalho dos jornalistas.

Em geral, os grandes grupos (ver quadro anexo) encaram a informação (no sentido jornalístico) não como um bem social mas como um negócio em que se investe ou desinveste ao sabor das tendências do mercado, isto é, do objectivo exclusivo: o lucro. Esta política (simbolizada e concretizada, ao nível das empresas, por gestores oriundos de sectores alheios aos media e às suas especificidades) aprofunda e alarga a todo o campo mediático uma mera lógica mercantil, incompatível com a função social do jornalismo. [2]

PODER DO JORNALISMO E DA INFORMAÇÃO

O poder do jornalismo e da informação está a ficar cada vez mais subordinado aos interesses económicos patronais. Este facto reflecte a nova hierarquia de poderes na nossa sociedade: o poder político passou a estar submetido ao poder económico, e os media (aparentando agora ser o 1º poder, depois de perdida a veleidade de ser o 4º ou um contrapoder) não detêm senão um poder delegado, concedido e gerido pelo poder económico dominante (através da propriedade das empresas, da publicidade, dos circuitos de distribuição, etc), no quadro dos limites que a este mais convêm. [3]

É certo que os media não são uma mera correia de transmissão do poder económico e do poder político a ele ligado. Possuem uma lógica própria, funcionam segundo uma cadeia de produção que, entre outros aspectos relevantes, impõe uma concepção do tempo muito mais rápida do que a dos gabinetes dos conselhos de administração ou dos ministérios. As horas de fecho, as linguagens próprias de cada suporte mediático, as imposições da concorrência (com a busca obsessiva da notícia em primeira mão e do sensacional) não se compadecem com certas filosofias e práticas do poder que, deste modo, entram por vezes em contradição com a lógica dos media. Mas tudo se resolve dentro do quadro do sistema. Uma revelação (não, necessariamente, uma investigação ...) pode derrubar ministros mas não altera o essencial das políticas.

PLURALISMO E DEMOCRACIA

A concentração da propriedade em poderosos grupos económicos contribui para o estreitamento do pluralismo de opiniões (no conjunto dos órgãos e dentro de cada órgão), dificulta a viabilidade das pequenas e médias empresas do sector, controla o debate no espaço público (para o qual os media são decisivos) subordinando-o aos interesses ideológicos, económicos e políticos do poder dos grandes grupos, cada vez mais dependentes do grande capital financeiro. Tudo isto em flagrante contraste com o constitucionalmente preceituado: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações” (Artº 37.1).

A pobreza do debate e a fragilização da democracia revelam-se nas discriminações ideológicas, políticas, económicas, sociais, culturais, étnicas, geográficas e outras; no consenso (expresso na maioria dos editoriais, na escolha dos colunistas e comentadores externos, etc) sobre os grandes temas da actualidade nacional e internacional e na menorização ou silenciamento das opiniões discordantes; na desvalorização das diferenças, dos grupos minoritários, dos trabalhadores e das suas organizações; na luz verde para a exploração das fraquezas, condutas duvidosas e intromissão na vida privada dos políticos e na luz vermelha para uma semelhante atitude em relação aos grandes senhores do capital.

CRITÉRIOS JORNALÍSTICOS

A prioridade dada à luta pelas audiências e pelas tiragens, tendo em vista a conquista dos anunciantes, acentua graves distorções no tratamento da actualidade e na utilização dos critérios noticiosos. A concepção da informação como uma mercadoria que é preciso vender depressa e bem, leva ao predomínio não só do sensacional, mas também do curto, rápido e simples, do superficial e facilmente digerível, reflectindo a tendência para a supremacia dos valores comerciais sobre os valores jornalísticos.

A concorrência sem lei potenciada pelo domínio da lógica económica trazida pela concentração em grandes grupos, está na origem de realidades como a descontextualização e fragmentação da informação (nomeadamente ao nível da televisão, cuja linguagem a isso mais se propicia, transmitida a um ritmo que, mais do que informar, visa “prender” o telespectador); falta de investimento patronal no jornalismo de investigação (muitas vezes substituído por trabalhos com pouco de investigação e muito de “encomenda pronta a usar” ou de mera especulação); a contaminação das formas jornalísticas pelas técnicas persuasivas e “chamativas” próprias da publicidade (ostensivamente patente em títulos de 1ª página e aberturas de noticiários); a transformação dos media em suportes de mercadorias noticiosas e palco de lutas de interesses políticos ou outros, aproveitados, estimulados ou mesmo provocados com o objectivo de seduzir e aumentar as audiências.

Perigosa perversidade: muitos jornalistas começam a interiorizar como valores jornalísticos aquilo que são apenas valores comerciais e a considerar “bom jornalismo” o jornalismo que “vende bem”. É profundamente lamentável e condenável ver jornalistas (nomeadamente responsáveis editoriais) aceitarem a transformação do jornalista em mero e acrítico transmissor de “novidades”, em objectiva conivência com os produtores ou interessados na sua divulgação, à revelia da indeclinável responsabilidade social da profissão.

NOVAS TECNOLOGIAS

A aplicação das novas tecnologias ao jornalismo trouxe inegáveis vantagens ao exercício da profissão (e à própria indústria dos media), proporcionando mais rapidez e qualidade numa série de operações ao nível da imprensa, da rádio e da televisão. Mas trouxe igualmente perigosas armadilhas. Por exemplo, as novas possibilidades do directo, conjugadas com as imposições da concorrência e a ânsia de “chegar primeiro” e de “não falhar”, conduziram ao seu abuso na televisão, incapacitando o jornalista de exercer plenamente a função de mediador entre o acontecimento e o público e recolocando-o na velha e desqualificada situação de “pé de microfone”.

O recurso à Internet como fonte de informação revelou-se um instrumento de extraordinário valor para o trabalho nas salas de redacção e o contacto destas com as fontes, ao mesmo tempo que o jornalismo on line rasgou novas e insuspeitadas possibilidades para o acesso do público à informação. Simultaneamente, juntamente com a vertigem da rapidez e da cacha , abriram-se também as portas para o “esquecimento” da prática do contraditório e da confirmação das fontes, assim como para a sedentarização profissional e o reforço do “jornalismo sentado”.

Impõe-se a necessidade de encontrar formas de conciliação entre as potencialidades das novas tecnologias e a manutenção de princípios básicos da profissão.

AUTONOMIA JORNALÍSTICA E IDENTIDADE PROFISSIONAL

A procura da informação é crescentemente substituída pela sua “oferta”: as fontes mais poderosas e organizadas, privadas e públicas, aperfeiçoam mecanismos de persuasão/influência e de “facilitação” do trabalho jornalístico, dificultando a sua capacidade de iniciativa, criatividade e distanciamento e favorecendo a homogeneidade e burocratização. Profissionais exteriores ao campo jornalístico e alheios às suas especificidades cívicas e deontológicas (gestores, publicitários, relações públicas, consultores, assessores, comentadores, animadores, etc.) têm cada vez mais interferência e participação, mesmo que indirecta, na produção jornalística. As pressões internas, traduzidas num “consenso implícito” dentro da sala de redacção acerca das formas de tratamento dos temas, entidades ou pessoas, configuram por vezes verdadeiras, ainda que sofisticadas, formas de censura (ou de autocensura).

Simultaneamente com a consequente perda de autonomia e espaço de manobra dos jornalistas e a sua consequente fragilização, ocorrem outros fenómenos convergentes, como a diversificação e o aumento de órgãos e de profissionais; a segmentação interna do grupo profissional (nomeadamente nas grandes redacções), com a consolidação de um núcleo dirigente e de enquadramento, elo de ligação (e transmissão) entre as administrações e os restantes membros da redacção; a diferenciação em várias formas de exercer o jornalismo, consoante o suporte utilizado (imprensa, rádio, televisão, on line ), a periodicidade, o seu caracter nacional ou local, generalista ou especializado, o estatuto editorial, o lugar do jornalista na hierarquia redactorial, a sua sujeição a uma polivalência imposta pelas “sinergias de grupo” (e prejudicial à qualidade do trabalho), etc.

Estas e outras alterações afectaram a anterior homogeneidade do grupo e reforçaram o individualismo e a dispersão, criando uma crise de identidade profissional e o sentimento de que se caminha para um novo, mas ainda indefinido, paradigma jornalístico.

CONDIÇÕES DE TRABALHO

Ao logo dos últimos anos as condições de trabalho dos jornalistas (falo da grande maioria, e não das elites e vedetas) têm-se vindo a degradar. Um recente documento sindical (“Por uma agenda dos poderes públicos para os media – Contributo do Sindicato dos Jornalistas”) caracterizava assim a situação:

  • Desrespeito generalizado por direitos consagrados em lei e nos contratos colectivos de trabalho

  • Tentativa de diminuição da capacidade reivindicativa e do exercício de direitos fundamentais

  • Recurso generalizado à substituição de jornalistas por estudantes de jornalismo, constituindo uma prática sistemática de trabalho ilegal

  • Recurso a utilização de formas de trabalho precário (recibos verdes e contratos a termo)

  • Precariedade dos próprios salários e até fuga ao pagamento à Segurança Social e ao Fisco

  • Proliferação de contratos individuais de trabalho, estabelecendo cláusulas à margem das convenções colectivas geralmente menos favoráveis do que estas

  • Elevado número de empresas à margem de qualquer associação patronal

  • Avaliações de desempenho dos jornalistas e outros trabalhadores sem a negociação prévia dos respectivos regulamentos com as organizações representativas dos trabalhadores

  • Agravamento do esvaziamento das redacções, designadamente com recurso às rescisões ditas amigáveis, empobrecendo gravemente a memória histórica nos órgãos de informação

  • Estagnação ou mesmo inexistência de carreiras profissionais

  • Redução dos salários reais

  • Atribuição discricionária de aumentos salariais

  • Criação de condições objectivas para a autocensura e para a subordinação a normas e procedimentos estranhos à liberdade de imprensa e à independência dos jornalistas

Este panorama fala por si e mostra até que ponto as condições de trabalho podem condicionar seriamente a qualidade, disponibilidade e responsabilidade da actividade dos jornalistas.

DEONTOLOGIA

As questões da ética profissional não podem ser vistas, apenas, por um prisma individual, ainda que seja indiscutível haver jornalistas mais preocupados com a observância das normas do Código Deontológico e outros que agem como se ele não existisse, em assumida ou consentida conivência com os interesses estritamente comerciais – e a verdade é que há mesmo alguns (e não, necessariamente, entre os mais jovens na profissão) que, realmente, não o conhecem.

A questão de fundo, que não é nova, é que a força das pressões mercantilistas dentro das redacções, concretizadas na luta pelas audiências, na prioridade e formas de abordagem concedidas a determinados temas, na cedência perante a superficialidade, a falta de rigor e o sensacionalismo e, por vezes, na própria concorrência entre jornalistas, favorece a existência de um clima, ou mesmo, a pouco e pouco, de uma cultura profissional, em que o cumprimento de algumas regras básicas da deontologia, e às vezes do simples bom senso e bom gosto, se torna num obstáculo (e não num factor positivo) para o reconhecimento por parte dos superiores, a progressão na carreira ou mesmo a garantia do emprego. Nas concretas condições actuais, não é fácil a um jornalista (tanto mais quanto mais frágil for a sua situação laboral) opor com frontalidade os argumentos da ética perante um patrão (ou seus representantes na sala de redacção) obcecado pelas “exigências do mercado”.

Assim sendo, não tem grande sentido criar mecanismos de autopunição dentro da classe (com Ordem ou sem ela), já que muitas das derrapagens éticas ocorrem no contexto de uma prática profissional comandada pelos critérios (mais comerciais do que jornalísticos) de empresários não sujeitos a qualquer tipo de normas éticas ou princípios de responsabilidade social.

ACESSO E FORMAÇÃO

Desde há vários anos que o mercado de emprego neste sector se encontra desequilibrado, caracterizando-se por uma procura sensivelmente maior do que a oferta. Sem prejuízo da necessidade de uma melhor adequação da oferta à procura, o problema, porém, não reside tanto no facto de haver jornalistas a mais, mas sim – e são mais uma vez os interesses económicos a sobreporem-se aos interesses da informação –, por um lado, nas políticas de “emagrecimento” forçado seguidas, nomeadamente, pelas grandes empresas, obrigando à “ubiquidade” dos que restam, às horas extraordinárias não pagas e outros expedientes, ao mesmo tempo que os jovens saídos das universidades e institutos superiores são escandalosamente utilizados, em “estágios” realizados em regime de rotatividade contínua, como mão-de-obra barata ou mesmo gratuita. Situação esta que impõe uma urgente clarificação legal dos estágios e das formas de acesso.

Por outro lado, muitas pequenas e médias empresas, nomeadamente na imprensa e rádio locais, pressionadas pelas dificuldades económicas, em boa parte resultantes quer da falta de apoios oficiais quer da voraz concorrência desenvolvida pelos grandes grupos, não preenchem todos os postos de trabalho de que necessitam ou fazem-no com pessoal não devidamente credenciado.

Dentro das empresas as questões da formação (formação contínua, cursos de reciclagem e aperfeiçoamento) são vistas segundo critérios economicistas: custam dinheiro, “roubam tempo” às tarefas de rotina, não proporcionam rentabilidade imediata – portanto, não se fazem. E quando são encaradas, é na perspectiva da transmissão e consolidação das “regras da casa”, da integração na “cultura da empresa”, da padronização de comportamentos, valores e objectivos comuns a todos os sectores – desde os gestores ao departamento de marketing, passando pela redacção...

SOLIDARIEDADE, UNIDADE, MOBILIZAÇÃO

A crise de identidade profissional, o individualismo e a dispersão já referidos, tornam imprescindível reafirmar na prática valores como os da solidariedade e da camaradagem, entendendo que a unidade e a mobilização a nível das redacções e a nível geral é uma condição necessária para vencer os desafios, defender e dignificar a profissão e pugnar pela informação como um bem social. Há que apoiar e colaborar com o Sindicato no papel que desde o início dos anos 70, ainda antes do 25 de Abril, vem desenvolvendo em defesa da classe e de um jornalismo de qualidade, assim como participar nas estruturas, como os Conselhos de Redacção, com competências legais para intervir em diversos aspectos da vida das empresas.

Repare-se que não se trata aqui apenas de salários, carreiras profissionais, etc, mas sim também de aspectos que têm a ver com o próprio cerne da profissão, no seu sentido mais nobre – nomeadamente tudo o que tem a ver com a deontologia.

É sabido que os constrangimentos e pressões, e até mesmo as chantagens e ameaças a que os jornalistas estão muitas vezes sujeitos internamente, no sentido de se acomodarem e não assumirem posições activas de contestação, mesmo quando se trata dos mais elementares direitos, dificultam ou mesmo inviabilizam determinado tipo de atitudes. Mas a verdade é que são vários os exemplos, incluindo ao nível de redacções de órgãos de informação pertencentes a grandes grupos económicos, em que a unidade e a mobilização dos jornalistas (e outros trabalhadores) tem levado a importantes conquistas com reflexos no exercício da profissão.

ENSINO E INVESTIGAÇÃO

De todos estes problemas e desafios não pode ser desligado um outro: o do ensino ministrado nas universidades e institutos superiores e, numa perspectiva mais ampla, as relações entre o mundo académico e o mundo profissional. O distanciamento outrora existente tende cada vez mais a esbater-se, e a transformar-se, mesmo, em aproximação e cooperação, com evidentes vantagens para ambas as partes. Trata-se, aliás, de um objectivo em que, desde o início, esta revista se tem particularmente empenhado.

Está hoje praticamente adquirido entre os profissionais que um curso superior, particularmente se for na área específica do jornalismo, constitui um factor de grande importância para o bom desempenho das funções jornalísticas. Mas é preciso que essa atitude recíproca de abertura se alargue e intensifique, criando laços contínuos de aproximação e de conhecimento mútuo, no quadro de iniciativas de diverso tipo.

Julgo particularmente positivo o facto de nos últimos anos um número significativo de jornalistas terem decidido complementar a sua experiência profissional com a aquisição de uma formação teórica (por exemplo, cursos de pós-graduação), tendo em vista a satisfação de um compreensível e elogiável interesse em completar o “saber prático” com o “saber teórico”, e que pode até vir a constituir um enriquecimento dos quadros docentes do ensino superior nesta área.

Um movimento de algum modo simétrico seria desejável da parte do mundo académico. Julgo igualmente positivo o facto de os investigadores cada vez mais se mostrarem disponíveis para eleger como corpo de análise a realidade portuguesa – a qual, mesmo assim, me parece ainda bastante mal conhecida nas escolas superiores. Não é possível teorizar sobre o jornalismo e os jornalistas sem ter em conta as condições concretas em que se exerce a profissão. Mas o certo é que, há apenas meia dúzia de anos, contavam-se pelos dedos de uma mão os estudos nesse âmbito, e hoje são já na ordem das dezenas as obras publicadas, em maioria, aliás, com base em teses académicas, nomeadamente de mestrado.

MUDANÇA

É absolutamente necessário não confundir a análise crítica da realidade com qualquer sentimento de apego ao passado e de recusa à mudança – do mesmo modo, aliás, que o aproveitamento e aprofundamento do que é novo e positivo, por exemplo ao nível das novas tecnologias, não pode servir de pretexto ou encobrimento para a aniquilação do jornalismo enquanto instrumento de informação, formação e entretenimento, sobrevalorizando este em detrimento dos outros.

As mudanças nas formas de os jornalistas pensarem e praticarem o jornalismo são inevitáveis e positivas, na medida em que mostram até que ponto eles estão empenhados na melhoria do seu trabalho e no aprofundamento da sua responsabilidade social. O que é necessário é que princípios essenciais definidores da actividade jornalística – o rigor, a isenção, a procura da verdade, a deontologia – não sejam, mais ou menos subrepticiamente, deitados pela borda fora sob o pretexto da sua desadequação aos “novos tempos”.

É preciso não encarar a actual configuração do sistema dos media (sujeito ao poder económico dominante) e o lugar nele ocupado pelos jornalistas (cada vez mais subalterno e, segundo os desejos de alguns, em vias de extinção) como algo de definido para a eternidade e como componente de um tempo que representaria o “fim da História”, mas sim encarar tal realidade de uma forma problematizante e crítica, susceptível de ser transformada.
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[*] Jornalista, chefe de redacção da revista Vértice. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação. Professor na Universidade Lusófona.


ANEXO
PRINCIPAIS GRUPOS DE MEDIA EM PORTUGAL
GRUPO PUBLICAÇÕES ACCIONISTAS
PT Multimedia / Lusomundo Media Jornal de Notícias, Diário de Notícias, 24 Horas, Tal & Qual, Jornal do Fundão, Açoriano Oriental, DN Funchal, Grande Reportagem, Volta ao Mundo, Evasões, Cinemania, Viver com Saúde, Viagens, Adolescentes, National Geographic, Play Station Participação na Lusa TSF Editorial Notícias, Oficina do Livro. Principal proprietário de salas de cinema e quase monopólio na exibição e distribuição de filmes e vídeo, em aliança com a Warner, e com negócios também em Espanha, TV Cabo, Premium, Gallery e participação em vários canais, como Sport TV e SIC Notícias. Posições na internet (portal SAPO e outros serviços). Participação na distribuidora de publicações VASP Gráficas Naveprinter e Funchalense. Negócios no Brasil, Moçambique e Espanha (cinemas). Perto de 60% da PT Multimedia pertence à PT. Outras participações: Banco Espirito Santo, Banco Totta & Açores, Colaney Investments Limited, e Banco Português de Investimento. Quanto à Lusomundo Media, é detida maioritariamente (74,97%) pela Lusomundo SPGS (que é pertença da PT Multimedia), e ainda em 19% pela Cofina e 5,93% pelo Fidelity (fundo britânico).
Impresa Expresso, Visão, Jornal de Letras, Blitz, Surf, Exame, Executive Digest, Exame Informática, Doze, Telenovelas, Caras, TV Mais, Casa Cláudia, Activa, Super Interessante, Turbo, Autoguia, Autosport/Volante Jornal da Região (imprensa gratuita), com edições em vários pontos do país (em parceria com a empresa belga Roularta) Participação na Agência Lusa SIC, SIC Notícias, Gold, Radical, Mulher, Internacional Internet (informação e outros serviços). Participação na distribuidora de publicações VASP Gráfica Imprejornal Negócios em Espanha A maioria do capital (50,7%) pertence à Impreger (Francisco P. Balsemão), detendo o BPI 14%. O BPI também detém 26% da SIC. A Edipresse (Suíça) detém 50% da Edimpresa, editora das revistas do grupo. A Globo tem 15% da SIC. A PT Multimedia tem 40% da SIC Notícias.
Media Capital Lux, Lux Deco, Lux Woman, Super Maxim, PC World, Computer World, Briefing, Casas de Portugal, Revista de Vinhos TVI; grupo NBP (principal produtor de telenovelas); RETI (Rede de Emissores de Televisão Independente) Rádio Comercial, Rádio Clube Português, Cidade, Best Rock FM, Romântica, Nacional, Mix, Cotonete Internet (portal IOL, Portugal Diário, Mais Futebol, agênciafinanceira.com). Produção discográfica e de concertos Empresas de outdoor – publicidade externa O capital pertence à Vertix (Francisco Paes do Amaral e Nicholas Berggruen) – 39,3%; HMTF (Hicks, Muse, Tate & Furst) – 37,7%; Bavaria (cervejeira colombiana Bavaria/Stº Domingo, com extensões em Espanha) – 22,9%. A HMTF (fundo de investimento com sede em Dallas, EUA) possui, nomeadamente, mais de um milhar de estações de rádio e mais de três dezenas de canais locais de TV nos EUA e noutros países. Da equipa de conselheiros da empresa, principalmente no que se refere à sua expansão no estrangeiro, contam-se os ex-secretários de Estado Henry Kissinger e James Baker, George Bush (pai) e os ex-primeiro-ministros John Major (Inglaterra) e Brian Mulroney (Canadá).
Cofina Record, Correio da Manhã, Jornal de Negócios, Máxima, Máxima Interiores, TV Guia, GQ, Vogue, AutoSport, Automotor, PC Guia, Rotas & Destinos, Semana Informática, Semana Médica, etc. Participação de 19% na Lusomundo Media Participação na TVTel Grande Porto (cabo) Participação na distribuidora VASP Internet. As principais participações institucionais pertencem à Cofihold SGPS (Cofina/Investec) – 21%, Portuguese Smaller Companies Found – 10,01%, e BPI – 8,71%.
Impala Maria, Ana, Nova Gente, TV 7 Dias, Mulher Moderna, Mulher Moderna Cozinha, Mulher Moderna Moda, VIP, Focus, Boa Forma, Crescer, 100% Jovem, Linhas % Pontos e outras (instabilidade de títulos) Negócios no Brasil e Espanha (net e edição de livros infanto-juvenis) Internet. Jacques Rodrigues
Recoletos Diário Económico, Semanário Económico Internet Vários jornais em Espanha (Marca, participação no El Mundo, etc), nomeadamente no sector económico (Expansión, Actualidad Económica, com extensões à net e à TV) Cadeia de rádios ligados à Marca Jornais de economia na Argentina e no Chile A maioria do capital da Recoletos pertence ao grupo britânico Pearson (um dos gigantes europeus): Finantial Times, The Economist, editora Penguin, etc.
Prensa Ibérica A Capital, O Comércio do Porto, Correio do Minho; Faro de Vigo e mais de uma dezena de outros jornais regionais (metropolitanos) em Espanha.  
Olivedesportos O Jogo Sport TV, em conjunto com a PT Publicidade nos estádios e direitos de transmissão desportivas Joaquim Oliveira e António Oliveira.
Estado RTP 1 e 2, Internacional, África, canais regionais RDP – Antenas 1, 2 e 3, Internacional, África Agência Lusa  
Igreja Católica R. Renascença, RFM, Mega FM 70 rádios locais e mais de 500 revistas e jornais locais e regionais  
Igreja Universal do Reino de Deus Uma dezena de rádios locais  

Fontes: Relatórios e Contas das empresas, Obercom, estudos da União de Bancos Suíços, imprensa.

Notas: Não se incluem áreas de negócios não directamente ligadas com os media. Incluem-se o Estado e as igrejas, salvaguardando o facto de não se tratarem de grupos económicos. O quadro refere-se a grandes grupos de comunicação social, daí o facto de não se referirem importantes órgãos como A Bola , propriedade familiar desde a sua fundação, e O Público – propriedade de um poderoso grupo económico, a SONAE, mas sem expressão na comunicação social, ainda que com forte presença nos “novos media”, através da SONAECOM (nomeadamente Optimus, Novis e Clix). Não se referem grupos de natureza regional, não obstante a significativa dimensão já atingida por alguns deles. Os dados foram recolhidos até Outubro de 2003.

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NOTAS
1 Cf. Fernando Correia, Os Jornalistas e as Notícias , Lisboa, Caminho, 1997.
2 Cf. por exemplo Dominique Wolton, Pensar a Comunicação , Lisboa, Difel, 1997, pp. 238-9 e 249-50, e Claude-Jean Bertrand, A Deontologia dos Media , MinervaCoimbra, 2002, pp. 121, 125 e 129; ver também Fernando Correia, “Novos Desafios, Problemas Novos”, JJ – Jornalismo e Jornalistas , nº 3, Julho/Setembro 2000 e “Media, Negócio e Ideologia. Concentração à Portuguesa”, Le Monde Diplomatique, versão portuguesa, Novembro 1999.
3 Cf. Enrique Bustamante, Los Amos de la Información en España , Akal, Madrid, 1982. Mais recentemente, Inatio Ramonet tem insistido, em vários dos seus trabalhos, neste ponto de vista aplicado à análise dos media.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

13/Dez/03