José Dias Coelho, 50 anos depois da sua morte
"Hoje, como então, os oportunismos tiram força
à luta e aos combatentes, porque iludem a realidade e não
perspectivam o caminho, nem apontam claramente os objectivos".
por Margarida Tengarrinha
[*]
Relembrar aqueles que caíram, os heróis da resistência
antifascista, não é apenas olhar o passado. É
também lembrar que a luta pela emancipação dos
trabalhadores e dos povos pode, em diferentes momentos, enfrentar uma
repressão mais ou menos abertamente violenta, mas é sempre
travada contra um inimigo de classe que não abdica de recorrer a todos
os meios para perpetuar o seu domínio. E que só será
vencido por uma força maior: a das massas unidas, organizadas e
dispostas à luta, quaisquer que sejam os sacrifícios que essa
luta imponha.
Esta é, com toda a probabilidade, a última vez (sim, a
última vez porque já tenho 83 anos), que participarei numa
cerimónia de homenagem ao Zé, recordando-o, neste dia 19 de
Dezembro em que foi brutalmente assassinado.
Por isso, e porque o camarada Jerónimo certamente abordará a sua
biografia como militante comunista, eu falarei dele num registo mais
íntimo: a intimidade criada em mais de uma dezena de anos em que
partilhámos desde as lutas estudantis e pela Paz às tarefas
comuns, desempenhadas juntos na clandestinidade, de fornecer
documentação falsa que defendesse os camaradas da
vigilância da PIDE, de procurar renovar graficamente os documentos e a
imprensa partidária, de iniciar um arquivo fotográfico do Partido
e a partir dele redigir
"A Resistência em Portugal',
assim como suportarmos juntos a ausência da família e dos amigos,
a dolorosa separação da nossa filha, mas, juntos também, a
felicidade do nascimento da mais nova e descobrirmos a alegria das pequenas
coisas com um sabor intensificado pela austeridade do dia-a-dia, as festas de
amor vividas com a força de não sabermos se, na madrugada
seguinte, bateria à nossa porta uma brigada da PIDE a sobressaltar-nos
na cama e a separar-nos. A constante ameaça da prisão.
Mas foi muito mais dura do que isso a separação imposta pelo
crime que ali, na rua que hoje tem o seu nome, o tomou mais uma vítima
do fascismo.
Não o vi depois de morto, só soube da sua morte no dia em que o
enterraram. Não fiz, pois, o que se chama "o luto" e por isso
arrastei dolorosamente ao longo dos anos coisas por dizer, remorsos por
não ter dito, lamentos que não expressei.
Hoje, cinquenta anos passados depois da sua morte, vem-me claramente à
ideia aquele livro de Anna Seghers
"Os mortos continuam jovens".
Porque a verdade é que, nem eu, nem ninguém que o conheceu
poderá recordá-lo de outra forma que não seja aquele homem
na força da vida, jovem e entusiasta. Sim, os mortos continuam jovens e
ele, jovem para sempre.
Jovem e "sem vocação para a morte" como disse
Eugénio, de Andrade no poema
"Discurso tardio à Memória de José Dias Coelho":
"Morre-se de ter uns olhos de cristal,
Morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios."
Ou ainda, como o seu grande amigo José Cardoso Pires afirmou na
primeira homenagem a José Dias Coelho logo a seguir ao 25 de Abril, na
Sociedade Nacional de Belas Artes em 19 de Junho de 1974, dia em que, se fosse
vivo, o Zé teria feito 51 anos:
"Sabemos que é um capítulo, ódio ou máscara do
medo, a morte imposta aos militantes da liberdade. Mas sabemos igualmente que
é dela que o fascismo faz moeda própria e alimento essencial, que
onde haja exploração do homem está ela, a morte,
disfarçada de comum e natural, e que, irmã traidora da fome, tem
na guerra, em todas as guerras, o seu lucro mercenário. (
)
É a morte, morte, sempre a morte, que aparece como
exibição imperialista de orgulho e de poder. Por isso é
que os verdadeiros revolucionários amaram e defenderam a vida com o
risco do último sacrifício e entre esses, Dias Coelho, o meu
amigo de longe e para sempre. Poucos como ele tiveram tão
saudável e empenhado gosto de viver, e raros, raríssimos, usaram
de tão serena tolerância no desejo de compreender e
lutar". Assim falou dele o amigo José Cardoso Pires.
E tinha razão, mesmo para além do que directamente conhecia.
Gosto de viver, desejo de compreender e de lutar poderia ser uma biografia
sintética do Zé.
E de lutar em diversas e variadas lutas, começando pelas suas intimas e
não confessadas. Uma batalha que se inicia a partir de dentro de si
próprio, entre a sua passividade de artista contemplativo que se
expressava nos seus desenhos de uma simplicidade procurada e depurada, as suas
"Líricas"
e outros desenhos intimistas, mas por outro lado, como defensor activo do
neo-realismo, uma arte militante e de combate, uma arte do povo, pelo povo e
para o povo, pela qual se exprimiu também em muitos dos seus trabalhos
de desenho e escultura. Foi talvez na gravura
"Morte da Catarina Eufémia",
gravura empenhada e revolucionária, mas de um claro lirismo, que melhor
conseguiu a difícil simbiose entre o lirismo que lhe era próprio
e a arte militante e de combate, que defendia.
Quanto ao seu "desejo de compreender", o seu desejo de compreender
tinha expressão na ideia de que, em qualquer momento da história,
qualquer que seja o contexto social e político, é essencial
compreender os homens. Foi essa sua característica pessoal que o levou a
estabelecer relacionamentos não só com os intelectuais ligados ao
Partido Comunista, mas ainda com muitos outros que, fora da
organização, aceitavam colaborar em acções comuns,
tal como disse o meu irmão, José Manuel Tengarrinha, acentuando
que: "o prestígio de Dias Coelho e a confiança que lhes
merecia [aos intelectuais sem partido], foi um importante factor de alargamento
da frente intelectual antifascista, que nunca permitiu espaço de manobra
e de credibilidade aos intelectuais servidores do regime."
Isto no período da guerra-fria e das tentativas de isolamento do
Partido Comunista. "É nestas condições [diz o meu
irmão], que podemos avaliar as grandes dificuldades do trabalho
político desenvolvido por José Dias Coelho e o mérito da
sua influência no campo intelectual". Eu posso testemunhar que, no
decurso das várias tarefas e na vida partidária, o Zé
nunca abandonou esse desejo de compreender. E assim, nos dois últimos
anos da sua vida, foi para ele como que um deslumbramento esclarecedor a
alteração crítica à linha do Partido desenvolvida a
partir da fuga de Peniche, realizada no dia 3 de Janeiro de 1960.
De facto, desde Janeiro de 1960, mais concretamente a partir da reunião
extraordinária de Fevereiro desse ano e, com a aprovação
dos documentos
"A tendência anarco-liberal na organização do trabalho
de direcção"
e
"O desvio de direita nos anos 1956-1959",
na reunião do Comité Central de Março de 1961,
desenvolveu-se em todo o Partido um vivo debate critico (em que nós
participámos activamente) ao desvio oportunista de direita e,
consequentemente, à errada concepção da possibilidade de
derrubamento do fascismo por uma qualquer "solução
pacífica", hipótese que era admitida desde fins dos anos 50
e tornada oficial a partir do V Congresso do Partido, realizado em Setembro de
1957.
A crítica foi dura, mas clara e lógica: dado o carácter
da ditadura fascista, determinada a manter o poder e resistir até ao fim
por meio de uma política de repressão feroz, não era
possível manter a ilusão de "uma transição
pacífica" que vinha a ser admitida no Partido, por influência
do chamado "Relatório de Kruchov" e desenvolvimentos
posteriores a partir do XX Congresso do PCUS.
A orientação de que o derrubamento do fascismo só poderia
ser efectuado por meio de uma solução violenta, uma
insurreição popular, a luta do povo em união com os
militares revolucionários, vencendo e destruindo o aparelho militar e
repressivo fascista, viria ser aprovada no VI Congresso, juntamente com o
Programa para a Revolução Democrática e Nacional. Quando o
VI Congresso se realizou, em Setembro de 1965, já o Zé tinha
morrido e o Congresso prestou-lhe uma sentida homenagem.
A rectificação ao desvio oportunista de direita, sem
ilusões de saídas pacíficas, em cuja discussão o
Zé participou activamente, deu-lhe a clara consciência do caminho
real, muito duro e difícil, que se apresentava pela frente, que havia
que assumir e enfrentar o caminho da prisão e da tortura, da
morte e do sangue derramado.
Ele sabia, portanto, os perigos que enfrentava.
Hoje, como então, os oportunismos tiram força à luta e
aos combatentes, porque iludem a realidade e não perspectivam nem o
caminho, nem apontam claramente os objectivos.
José Dias Coelho deu a vida, consciente dos perigos que enfrentava e
certo de que a sua luta conduziria ao Portugal socialista pelo qual morreu.
19/Dezembro/2011
[*]
Intervenção na sessão pública que assinalou os 50
anos do assassínio de José Dias Coelho pela PIDE
O original na íntegra encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=2321
Este discurso encontra-se em
http://resistir.info/
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