O ensaio do general Vasco Gonçalves que
resistir.info
hoje divulga foi publicado em 11/Dez/1983 num suplemento do jornal «o
diário», comemorativo da Revolução de 1383-85.
Transcorrido mais de um quarto de século não perdeu actualidade.
A invasão de Portugal pelo capital financeiro espanhol e a
posição hegemónica assumida pelas empresas do pais
vizinho no conjunto das relações comerciais portuguesas
configuram, num contexto histórico muito diferente, uma
situação de ameaça à identidade nacional. Na
área do Alqueva um exemplo recente da gula espanhola a
maioria das terras próximas da grande barragem foram já, em
algumas freguesias, adquiridas por agrários da Andaluzia.
Por que recordar o trabalho de Vasco Gonçalves? Seria ridículo
admitir que a Espanha representa hoje uma ameaça militar. Entretanto,
no âmbito da União Europeia a ofensiva avassaladora do capital
espanhol (que extravasa para a frente da cultura) exige reflexão. Numa
época em que banqueiros e outros homens de negócios portugueses
voltam a agitar as bandeiras do iberismo, é oportuno chamar a
atenção para a lição de historia contida no ensaio
do ex-primeiro ministro.
Ao iluminar o quadro das lutas sociais em Portugal quando D João de
Castela invadiu o pais, o autor lembra que a recusa de um rei estrangeiro e a
proclamação do Mestre de Aviz se inseriram num violento
antagonismo de classes. Enquanto a nobreza a classe dominante
aderiu maciçamente ao invasor, para defender os seus privilégios,
a burguesia urbana e rural, e os camponeses, ao tempo progressistas, uniram-se
contra a ameaça exterior.
O confronto transcendeu o problema militar. A batalha foi a
consagração de uma revolução nacional. Ao
exército de Aljubarrota aplica-se a definição de
Bolívar. Ele foi o povo em armas.
resistir.info
não confunde o nacionalismo de raiz fascista, patrioteiro,
xenófobo e agressivo, com o sentimento revolucionário do
nacional. Temos presente que o internacionalismo humanista não deve
ser dissociado da defesa de uma diversidade que faz a grandeza dos povos e
contribuiu poderosamente para o avanço da civilização.
Nestes dias em que, pelo poder do dinheiro, as forças retrogradas da
Espanha tentam conseguir aquilo que não conseguiram em oito
séculos pela força das armas, o importante ensaio de Vasco
Gonçalves é um tema para meditação.
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A Revolução de 1383-85
por Gen. Vasco Gonçalves
A guerra entre Portugal e Castela nos fins do Séc. XIV não
é apenas uma guerra entre dois Estados, ou mais uma guerra entre dois
Estados.
Da parte dos portugueses é uma guerra nacional e popular, uma guerra que
mergulha as suas raízes nas lutas sociais, nas lutas de classes que se
vinham desenvolvendo e intensificando ao longo do Séc. XIV.
Estava-se processando o declínio do sistema feudal causado,
fundamentalmente, pela liquidação da servidão da gleba nos
Séculos XIII e XIV e pelo surgimento da pequena produção
baseada no trabalho do proprietário dos meios de produção
e da produção baseada no trabalho assalariado.
A expansão dos concelhos está ligada ao desenvolvimento desta
produção: é sua consequência e é seu
estímulo, na medida, por exemplo, em que favorecia a
libertação dos servos da gleba.
Os servos da gleba dão lugar aos pequenos produtores formando-se,
depois, por um lado, uma classe de camponeses ricos, a burguesia rural, e, por
outro, uma classe de camponeses sem terra que fornecem trabalho assalariado.
Com a produção mercantil simples, com a pequena
produção baseada no trabalho assalariado aumenta a
produção em geral, desenvolvendo-se o comércio interior.
Surge uma classe de comerciantes que cresce em número e em poder
económico.
Por outro lado, o desenvolvimento do comércio externo (que já
existia quando da formação de Portugal) conduz ao aparecimento de
uma classe de ricos mercadores.
Sendo o comércio externo quase todo feito por mar desenvolve-se a
Marinha Mercante e, a construção naval. Nos centros urbanos do
litoral forma-se uma burguesia rica, que se organiza na defesa dos seus
interesses, e que vão influenciando cada vez mais a política
portuguesa. Os portos, em particular Lisboa e Porto, tornam-se centros de poder
da burguesia comercial-marítima.
Paralelamente a este progresso, na produção e na troca de
produtos, desenvolve-se a produção artesanal, cresce a classe dos
mesteirais, cujo papel na Revolução de 1383-85 virá, em
certos momentos, a ser decisivo.
Com o desenvolvimento da produção mercantil e do comércio
os burgueses concentram na sua mão grande riqueza. Com o seu crescente
poder económico a burguesia ligada ao comércio marítimo
torna-se o principal inimigo da classe senhorial e vem a estar em
condições de, em unidade com as outras classes não
senhoriais, disputar o poder político à nobreza
latifundiária.
O surgimento das novas classes e camadas sociais, o crescente poder
económico da burguesia, cujos interesses se opõem aos da classe
senhorial, exercem pressão sobre o poder real e obrigam a que os
privilégios da nobreza e do clero vão sendo reduzidos ao longo
dos Séculos XIII e XIV.
Contudo, a natureza do Estado não muda com as conquistas que a burguesia
vai alcançando. A nobreza latifundiária e militar, de que o rei
é o primeiro senhor, continua a ser a classe dominante, continua a
dispor da direcção política do Estado.
D. Fernando é obrigado a promulgar leis de protecção ao
comércio e à navegação, é obrigado a
promulgar, nomeadamente, a Lei das Sesmarias, o que tem o significado de
grandes conquistas da burguesia urbana e rural.
Amadurecem as condições para a disputa do poder político
à nobreza por parte da burguesia.
Apercebendo-se do perigo que corria e sentindo que não possuía
forcas para, por si só, dominar a contestação aos seus
privilégios e ao seu poder, a nobreza portuguesa vinha procurando o
apoio da nobreza castelhana à qual se unia (sem atender aos riscos que
essa união implicaria para a independência nacional) com. o fim de
salvaguardar e manter os seus privilégios, de reforçar o seu
poder e de contrabater a burguesia ascendente. Foi com este objectivo que se
celebrou em 1383 o casamento da infanta D. Beatriz, filha única de D.
Fernando e de D. Leonor Teles, com o rei de Castela.
Antes, em 1376 e 1380, o casamento da infanta com príncipes castelhanos
estivera para ser realizado, prevendo-se já então a
sucessão de um rei castelhano no trono de Portugal.
O próprio casamento de D. Fernando com D. Leonor Teles fora preparado
pela nobreza portuguesa em aliança com a de Castela com vista a
influenciar mais directamente as decisões do rei no sentido
favorável aos interesses da nobreza portuguesa. E de tal modo assim foi
que os burgueses e artesãos se revoltaram em vários pontos do
País.
O alfaiate Fernão Vasques e os seus companheiros, à frente de
três mil mesteirais, besteiros e homens de pé, em 1371,
corajosamente, afirmaram o seu protesto ao rei pelo seu casamento com D. Leonor
Teles; eles haviam compreendido o significado político desse
matrimónio preparado pela nobreza portuguesa em conivência com a
de Castela.
Essa revolta dos mesteirais, exprimindo a oposição de interesses
entre as classes populares e a nobreza feudal representou uma tal ameaça
ao poder feudal que o rei mandou degolar Fernão Vasques e muitos dos
seus companheiros.
A propósito do casamento de D. Fernando, Fernão Lopes diz que os
populares se juntavam criticando acerbamente os privados do rei e os grandes da
terra que lho consentiam.
Nos últimos meses da vida de D. Fernando acentuou-se junto do rei a
influência da nobreza mais reaccionária o que fez crescer a
tensão social e contribuiu para criar as condições para a
insurreição de Lisboa, poucos dias depois da morte do rei.
A morte do rei precipitou os acontecimentos ao colocar o problema da
sucessão.
A causa imediata da revolução burguesa é a tentativa por
parte da nobreza de entregar o Governo de Portugal à monarquia
castelhana. A revolução toma desde logo um carácter
nacional, social e popular. A insurreição de Lisboa é
secundada por revoltas populares por todo o País (sobretudo a Sul do
Tejo) da burguesia rural, dos camponeses, dos assalariados rurais, dos
«ventres ao sol».
A luta pela independência nacional funde-se com a luta contra os
privilégios da nobreza e pelo poder político, pois a classe
dominante à qual era disputado este poder político era a mesma
que, para conservar as suas posições, havia provocado a
intervenção da nobreza de Castela contra os interesses populares
e estava disposta a entregar o Governo de Portugal à monarquia
castelhana.
A revolução burguesa identifica-se, assim, com a luta pela
independência nacional.
A revolução tem um nítido carácter de classe. Dois
campos se afrontam: o da nobreza territorial latifundiária e o das
classes não senhoriais: a burguesia urbana e rural, os mesteirais, os
pequenos proprietários camponeses, os camponeses sem terra, nesse
momento unidos contra o mesmo inimigo, a nobreza portuguesa e castelhana,
ultrapassando assim as próprias e naturais contradições de
interesses que havia entre essas classes sociais não senhoriais. Foram
estas forças que se defrontaram em Aljubarrota.
O facto de, do lado português, sempre ter havido nobres ao lado das
classes populares não altera o carácter do afrontamento de
classes.
Em todas as revoluções houve sempre elementos da classe dominante
que tomaram o partido das classes em ascensão, progressistas, que se
opõem ao poder dessas mesmas classes dominantes.
Era restrito o número de nobres que estava com Portugal. E pertenciam
aos estratos inferiores da nobreza. Eram dos menos abastados.
Não podemos, pois, afirmar que do lado português, em Aljubarrota,
se encontravam todas as classes sociais defendendo a independência
nacional.
O facto de, depois da Revolução de 1383-85, a nova nobreza ter
ficado na posse de vastos domínios, domínios cuja extensão
total era tão grande como a que antes de 1383 possuía a antiga
nobreza latifundiária, não invalida a afirmação de
que em Aljubarrota a nobreza, como classe, não estava do lado de
Portugal.
Estava, sim, um reduzido número de nobres que eram chefes militares das
tropas populares. Os comandos militares, os quadros superiores eram, regra
geral, nobres que, como se sabe, naquele tempo, eram militares profissionais.
O que aconteceu foi que esses poucos nobres, em consequência dos
êxitos na guerra e em virtude da posição que ocupavam no
exército, ascenderam à grande propriedade territorial, no lugar
daqueles que se puseram ao lado de Castela.
Com efeito, foi com esses nobres leais a Portugal que, dadas as
condições objectivas e subjectivas da época, foi
reconstituída a grande parte dos domínios senhoriais. O caso mais
típico é o de Nuno Alvares Pereira que ascendeu ao primeiro plano
da classe senhorial e de tal modo que os seus domínios atingiram uma
extensão igual à dos domínios que anteriormente
possuíam muitos dos grandes nobres tomados em conjunto.
É Fernão Lopes que nos diz que em resultado da grande crise
surgiu uma «sétima idade em que se levantou um mundo novo e nova
geração de gentes, aparecendo fidalgos de origem plebeia e
erguendo--se pequenos aristocratas à primeira linha da nobreza».
Repare-se que, para Fernão Lopes, o aparecimento de um mundo novo
não estava ligado, como para nós, hoje, a uma profunda
transformação nas relações de
produção e distribuição entre as diferentes classes
sociais.
As condições objectivas da vida da sociedade portuguesa em fins
do séc. XIV não eram de molde a poder colocar à
consciência da burguesia e das classes populares a necessidade de uma
modificação radical das estruturas socioeconómicas, que
liquidasse o poder da classe senhorial. Só séculos mais tarde
essa questão será posta pelas burguesias dos diferentes
países e com grandes intervalos de tempo entre si.
Com efeito, podemos verificar que nos finais do séc. XIV a
Revolução de 1383-85 respeita as estruturas da sociedade feudal.
Em 1383-85, do ponto de vista socioeconómico, o objectivo fundamental
comum à burguesia e às classes populares era o de limitar os
privilégios senhoriais, devendo, contudo, ter-se presente que eram
diferentes entre si os objectivos concretos da burguesia e das demais classes
populares.
Em Aljubarrota, na realidade, encontravam-se muito poucos fidalgos do lado de
Portugal. A principal nobreza portuguesa estava do fado castelhano, quer ali,
em Aljubarrota, nas hostes de Castela, quer na chefia de
povoações e castelos que se mantinham como ilhas ao
serviço do inimigo, quer mesmo em Castela.
Aliás, quando da primeira invasão castelhana, em
princípios de 1384, o rei de Castela entrou praticamente sozinho em
Portugal, antes do seu exército.
Tal era o apoio que o rei de Castela tinha entre a nobreza portuguesa que o rei
chegou à Guarda com a esposa e um pequeno séquito de umas trinta
pessoas, sendo recebido processionalmente pelo bispo e clero e acorrendo depois
numerosos fidalgos ao paço episcopal onde se hospedou.
Em Aljubarrota, além de D. João I, Nuno Álvares e de mais
uma dezena de grandes senhores haveria cerca de uma centena de nobres de
modesta hierarquia.
Ora, o número de membros da nobreza portuguesa é estimado, nos
fins do séc. XIV, em 4000 a 5000 pessoas, não incluindo os
membros da família real que seriam algumas centenas (Armando Castro,
«História Económica de Portugal», II vol.).
A nobreza que combatia contra os Portugueses em Aljubarrota tinha bem a
noção do carácter de classe da guerra que fazia.
Fernão Lopes dá-nos vários testemunhos:
Por meados de 1384 quando o nobre Gonçalo Mendes de Vasconcelos,
senhor do castelo de Coimbra, entreviu por uma seteira do seu castelo, o
exército de Nuno Álvares, que partia para Tomar, comentou para os
seus privados o género de combatentes que compunham essa hoste,
espantado que tais homens pudessem defender o reino contra um grande senhor
como o rei de Castela, «salvo se Deus fosse seu capitão».
Quando o rei de Castela reuniu o conselho para decidir se devia dar
batalha ou não, poucas horas antes do início desta, houve entre
os seus conselheiros quem fosse de opinião que não se desse
batalha pois se o rei de Castela fosse vencido teria sido derrotado «por
um pouco número de pobre gente».
A covilheira do rei de Castela defumava os fidalgos com algumas
defumaduras «para perderdes os maus cheiros destes chamorros, das casas
onde vivem e aldeias onde moram».
Após a derrota de Aljubarrota, o rei de Castela, em fuga, ao
chegar a Santarém lamenta-se de ter sido derrotado pelos
«chamorros».
«E se vós dizeis que outro tal e tanto aconteceu a meu pai verdade
é que assim foi. Mas (...) de que gentes foi meu padre vencido? Foi-o de
ingleses que são o frol da cavalaria do mundo, em tanto que, vencido por
eles, não deixava de ficar honrado (...) E de que gentes fui eu vencido?
Fui-o de chamorros que ainda que me Deus tanta mercê fizesse que a todos
tivesse atados em cordas e os degolasse por minha mão, minha desonra
não seria vingada».
- x -
Como dissemos atrás, a Revolução de 1383-85 tomou, desde a
sua eclosão, um carácter nacional, de luta peta
independência, posta em perigo pela aliança da nobreza portuguesa
com a de Castela. D. Leonor Teles manda alçar pendão por D.
Beatriz, rainha de Portugal e de Castela. A rainha viúva pede a
intervenção de Castela, a cujo rei entrega, em Santarém, a
regência do reino, em Janeiro de 1384, com o apoio da alta nobreza
portuguesa.
Tem havido quem procure justificar o comportamento antipatriótico da
aristocracia portuguesa afirmando que nessa época o sentimento nacional
e patriótico seria inexistente.
Mas a verdade é que esse sentimento já existia nessa época
em Portugal e já existia de longa data. Não se terá esse
sentimento de independência começado a definir partir da
auto-proclamação de Afonso Henriques como rei de Portugal?
O que se verificou é que não era essa nobreza feudal, como
classe, a portador desse sentimento patriótico.
A história mostra que não pode formar-se uma nação
como uma comunidade de indivíduos que vivem no mesmo território e
que, para além de relações económicas
estáveis, estão ligados por uma língua comum e pelas
particularidades da mentalidade, da cultura, do modo de vida, fixadas nos seus
usos, costumes e tradições, sem que, na sua raiz, estejam
classes produtivas directas e as demais classes populares.
Os interesses destas classes, nos graves momentos de crise nacional,
identificam-se com os interesses da Pátria.
O mesmo não acontece quanto as classes privilegiadas: em determinadas
condições históricas, para defenderem os seus interesses e
as suas posições frente à acção
revolucionária das massas populares, elas sacrificam o sentimento
patriótico, são capazes de comprometer a independência do
seu país em troca do auxílio estrangeiro, para se manterem no
poder.
Na tão grave situação de 1383-85, o sentimento nacional, a
solidariedade activa entre as mais largas camadas de portugueses foi
reforçada, mas este facto foi devido à luta das classes,
não privilegiadas contra a nobreza feudal.
A própria solidariedade activa entre a grande maioria da
população atesta que já havia nessa época um
arreigado sentimento pátrio. São muitas as referências de
Fernão Lopes a esse sentimento pátrio:
«o povo meúdo» quando a aristocracia, após a morte de
D. Fernando, erguia o pendão por D. Beatriz, mulher do rei de Castela,
respondia com «Arraial, arraial, por Portugal».
Alguns exemplos:
Os representantes do concelho de Alenquer dirigem-se ao Mestre de Avis
afirmando o seu patriotismo, «somos portugueses e todos naturais destes
reinos».
Quando o Mestre de Avis se despede, em Coina, de Nuno Álvares
Pereira, que marcha para o Alentejo como fronteiro dá-lhe o apoio de
algumas dezenas de escudeiros, dizendo-lhe serem «verdadeiros
portugueses».
Os homens bons de Cerveira, Caminha e Monção enviam
mensagens a Nuno Alvares Pereira: declaram-se «verdadeiros
portugueses» e entregam-lhe voluntariamente essas povoações.
Os partidários do Mestre de Avis contra a candidatura ao trono de
Portugal do infante D. João, filho de D. Pedro e D. Inês de
Castro, argumentavam que o infante D. João fizera guerra contra Portugal
ao lado de Castela.
Domingues Peres das Eiras afirma a determinação dos
moradores do Porto em defenderem a sua terra «para nunca sermos em poder
dos castelhanos».
A designação que o «povo meúdo» dava aos
aristocratas portugueses que combatiam ao lado de Castela era a de
«traidores».
Na descrição da batalha de Aljubarrota, Fernão
Lopes refere-se aos «maus portugueses que vinham na vanguarda dos
castelhanos».
A acusação de traidores e maus portugueses não foi criada
por Fernão Lopes: encontra-se em dezenas de documentos da época
em que esses epítetos são dados sistematicamente aos aristocratas
que se colocaram ao lado de Castela.
«Para o comprovar basta percorrer, por exemplo, o tomo 2º dos
Documentos do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de
Lisboa». (A. Castro, EEP séc. XII a XV, vol. 11.-, pág. 300.)
A consciência, entre portugueses, de que pertenciam a uma
nação autónoma é já assinalada nos dizeres
inscritos na parede ao lado da epístola que pertencia à capela
instituída na Sé de Lisboa por Bartolomeu Joanes que viveu nos
tempos de D. Afonso III e D. Diniz. Instituiu cinquenta libras para cada
capelão («que em esta capela sempre cantem dezasseis
capelões por dia») e ainda dois soldos cada sábado por
ofícios religiosos nesses dias acrescentando que «os
capelões hão-de ser portugueses bons e legítimos se os
acharem, senão tomem outros» (ver Júlio de Castilho, Lisboa
Antiga, 1885, vol. III págs. 329-331, citado por A. Castro, em EEP
séc. XII a XV, vol. 11º, pág. 425).
- x -
Pelo seu carácter nacional e social a guerra de Portugal contra Castela
foi uma guerra justa. Ela foi uma guerra conduzida pelo povo em defesa da
liberdade e do progresso social (a opressão e exploração
senhoriais entravavam o desenvolvimento económico e social), em defesa
da independência nacional contra o domínio estrangeiro. Este era o
conteúdo político da guerra. Ele resultava do carácter de
classe da guerra, das razões pelas quais eclodiu, das classes que a
faziam e das condições históricas e
histórico-económicas que a provocaram.
O conteúdo político da guerra determina o seu papel
histórico na vida da sociedade.
O papel histórico da guerra contra Castela e contra a nobreza feudal de
Portugal foi progressista.
A vitória da burguesia permitiu:
o fortalecimento do poder político do país;
o fortalecimento do poder político e económico da
burguesia que conduzirá ao desenvolvimento da navegação e
do comércio marítimo e à gesta dos Descobrimentos.
A natureza de classe da guerra exprime-se também na sua
característica moral.
São os fins almejados pêlos beligerantes, fins progressistas ou
reaccionários, fins de libertação ou de conquista que
distinguem as guerras justas das guerras injustas.
O poderoso conteúdo moral das guerras justas exerce uma influência
decisiva na consciência, no ardor combativo, na coragem, na valentia, no
espírito de sacrifício, na solidariedade e na unidade dos
combatentes. E, deste modo, o carácter justo da guerra exerce uma
influência determinante na correlação de forças
entre os beligerantes.
Em Fernão Lopes podemos verificar como, para as classes não
senhoriais (e para o reduzido número de nobres que junto com eles
combatem e de que Nuno Alvares é o maior exemplo) a guerra era
profundamente justa e, portanto, sentida como sua.
Veja-se, por exemplo, a narrativa dos assaltos populares aos castelos de
Portalegre e de Estremoz ou dos levantamentos de Lisboa, de Beja, de
Évora, do Porto: «Desta guisa que haveis ouvido, se levantaram os
povos em outros lugares, sendo grande cisma e divisão entre os grandes e
os pequenos».
«O qual ajuntamento dos pequenos povos, que então assim se
juntaram, chamavam naquele tempo, arraia miúda. Os grandes, à
primeira, escarnecendo dos pequenos, chamavam-lhe povo do Messias e Lisboa, que
cuidavam que os havia de remir da sujeição de el-rei de
Castela.»
«Era maravilha de ver que tanto esforço dava neles (na arraia
miúda) e tanta cobardice nos outros, que os castelos que os antigos reis
por longos tempos jazendo sobre eles com força de armas não
podiam tomar, os povos miúdos, mal armados e sem capitão, com os
ventres ao sol, antes de meio-dia os filhavam por sua força.»
A população rural da região de Alcobaça matou mais
castelhanos, em fuga após a batalha de Aljubarrota, do que aqueles que
perderam a vida na batalha:
«um rústico aldeão prendia e matava sete castelhanos e oito
e dez e não tinham poder de lhe contradizer, tanto homens de pequena
condição como pessoas de boa conta» quer fossem castelhanos,
quer fossem portugueses que com eles vinham na hoste de Castela.
Foram os camponeses, os mesteirais, os elementos das classes produtivas que
sofreram o maior peso da guerra. Quer sozinhos, quer sob o comando dos poucos
nobres que aderiram à causa nacional ou dos cavaleiros-burgueses, quer
ainda com o auxílio de pequenas forças militares eles assaltaram
castelos, levantaram povoações e sofreram a pilhagem e a
violência do exército de Castela, por onde quer que este se
deslocasse.
As vitórias dos portugueses em território nacional foram sempre
alcançadas em grande inferioridade quanto a efectivos, armamento e
equipamento.
Nas vésperas da batalha de Aljubarrota, Nuno Álvares procura que
as suas tropas não tenham conhecimento da enorme superioridade do
inimigo.
A arrogante nobreza castelhana chama aos portugueses «desesperados que
não receiam a morte», «um pouco número de pobre
gente».
- x -
As vitórias dos portugueses não podem ser explicadas,
simplesmente, pela arte militar.
A própria táctica inovadora estava intimamente relacionada com a
composição social e o número de efectivos de que dispunha
Nuno Álvares. Só homens altamente moralizados, sentindo de todo o
seu ser a justeza e a razão moral da guerra em que estavam empenhados
poderiam obter tais vitórias, sendo tão poucos.
O carácter de luta popular e nacional é numerosas vezes
assinalado em Fernão Lopes:
A burguesia rural, os camponeses engrossam espontaneamente as hostes de
Nuno Álvares Pereira e de D. João I durante os deslocamentos
destas em território nacional.
Quando em Fevereiro de 1385 o Mestre de Avis levanta o cerco de Torres
Vedras para seguir para as Cortes de Coimbra acorre muito povo da região
implorando que o deixasse partir juntamente a fim de não ficar à
mercê dos malfeitores dos inimigos. O Mestre acede, saindo com os pobres
moradores da região, suas mulheres e filhos.
Em Outubro de 1384, Nuno Álvares Pereira com o apoio da
população local toma o castelo de Portel.
Em Coimbra, o Mestre é acolhido por grande recepção
popular, muitos «cachopos» «sem que ninguém os
mandasse» aclamaram o Mestre como rei.
Os concelhos representados em Coimbra decidem fazer um pedido de 400 mil
libras para pagamento dos soldos dos combatentes.
Em Abril de 1385 Nuno Alvares Pereira antes de partir para o Porto
dirige-se aos seus soldados recomendando-lhes que na sua marcha não
deviam ferir, matar ou roubar os lavradores, pois eles não eram senhores
das vilas e dos castelos ao serviço do inimigo e que se mais não
faziam pela causa de Portugal era porque não podiam.
A batalha de Trancoso, em Junho de 1385, é ganha por uma pequena
hoste portuguesa, com poucos de «criação», ou seja,
fidalgos, mas «com muitos dos concelhos da região e lavradores da
comarca».
Em Agosto de 1385 as hostes de Castela, tendo invadido Portugal pela
Beira Alta, praticam ao longo do seu itinerário as maiores
violências e pilhagens, mutilam, decepam, matam lavradores e camponeses,
e incendeiam igrejas (o rei de Castela era pelo Papa de Avinhão enquanto
o rei de Portugal era pelo de Roma).
- x -
Mas há ainda um outro aspecto a salientar acerca do conteúdo
político da guerra, do seu carácter justo e popular.
A guerra de Portugal contra Castela foi, até à vitória de
Aljubarrota, uma guerra defensiva, para os portugueses, não obstante as
operações ofensivas empreendidas pelas nossas tropas. Até
esse momento a guerra foi travada no território português. Era uma
guerra nacional e popular. Mas a partir do ano de 1385 a influência
crescente dos dirigentes militares das forças portuguesas que eram
aristocratas (havia também chefes militares burgueses), possuidores de
uma consciência social moldada nos quadros da ideologia medieval,
cavaleiresca, leva a que a continuação da guerra seja feita, em
grande parte, nos antigos moldes, próprios dessa nobreza:
incursões em terras de Castela, assédios a castelos inimigos,
desafios entre cavaleiros, tomadas de despojos, aliança com o duque de
Lencastre, de Inglaterra, para apoiar as pretensões deste ao trono de
Castela, etc.
A guerra perde o seu carácter social e de defesa da independência
nacional. Deixa de ser uma guerra justa e popular. Os nossos combatentes, fora
da sua Pátria, não sentiam a guerra como sua.
Por outro lado, agora para o povo de Castela, a guerra passava a ser justa. Foi
o que se verificou, por exemplo, quando do cerco de Cória, em Castela,
em 1386: ao fim de três semanas de inútil cerco, D. João I
e Nuno Álvares Pereira retiram para Portugal à frente do maior
exército de que até aí dispuseram, 22 mil homens entre
cavaleiros, besteiros e peões, todos bem armados e equipados,
graças aos despojos colhidos nas campanhas anteriores.
- x -
Procurámos atrás apontar, embora de um modo sumário e
simplificado, (o que não quer dizer falta de rigor histórico), as
linhas de fundo, as principais condicionantes e determinantes políticas,
socioeconómicas e morais, sem cujo conhecimento não é
possível compreender o que se passou em Aljubarrota nem a vitória
dos portugueses.
Vamos a seguir referir-nos, também de um modo sumário e
simplificado, aos principais aspectos militares da batalha de Aljubarrota, sem
perder de vista as suas relações com os elementos
políticos, socioeconómicos e morais que condicionam e determinam
a guerra.
- x -
A composição do exército português e a
táctica adoptada estão directamente relacionados com o
carácter social da luta que se travou em 1383-85.
O exército era formado, quase todo, por elementos das classes não
privilegiadas. O grosso das lanças de Portugal era formado por
cavaleiros-vilãos (proprietários rurais e urbanos de maior
abastança). Alguns deles foram grandes chefes militares como Gil
Fernandes de Elvas e Antão Vasques (herói de Aljubarrota).
Em pequeno número eram os nobres que estavam com Portugal. Além
de D. João I, Nuno Álvares e uma dezena de grandes senhores,
seriam uma centena em Aljubarrota. Eles eram os chefes militares do
exército português, juntamente com cavaleiros burgueses.
A cavalaria era mal armada. O seu equipamento era ligeiro, o que se explica
pelos extractos sociais de que era constituída.
Os besteiros (do conto) foram criados como milícia municipal no reinado
de D. Diniz. Combatiam com a besta que disparava virotões a cerca de 70
m, que podiam trespassar as cotas de malha dos cavaleiros inimigos.
Eram «do conto» por serem em número certo recenseado em cada
concelho.
Do ponto de vista social os besteiros eram formados por pequenos lavradores e
sobretudo por mesteirais, homens de ofício, cada vez mais numerosos pelo
progresso que tinha a produção artesanal. Tinham de possuir
alguns bens para a aquisição e a manutenção da
besta. Alguns, poucos, possuíam até cavalo, no qual se deslocavam
durante as marchas (os besteiros do rei, por exemplo). A criação
dos besteiros no reinado de D. Diniz atesta a crescente importância dos
artesãos.
Os mesteirais, na Revolução de 1383-85 tiveram papel decisivo, em
momentos críticos, em que salvaram a Revolução. Foi, por
exemplo, no dia 16 de Dezembro de 1383 na assembleia do Mosteiro de São
Domingos em Lisboa, em que obrigaram o Mestre de Avis a tomar o cargo de
Regedor e Defensor do Reino. É Afonso Eanes Penedo que, no dia seguinte,
impõe decisões revolucionárias aos burgueses ricos, que
estavam hesitantes, dizendo: «Quereis ou não outorgar o que vos
dizem? Se dizeis que não, eu vos digo que em tudo isto não
aventuro mais que esta garganta e quem não for conosco,
pagá-lo-á com a sua antes que daqui parta». Este facto
faz-nos compreender a importância que tinham os besteiros-mesteirais na
hoste portuguesa.
Os peões eram pequenos camponeses, artífices de menores recursos
económicos que os besteiros, pequenos comerciantes, trabalhadores
assalariados. O seu armamento e equipamento variava consoante os bens que
possuíam: lança, cutelo, adaga, machado curto, espaldeira,
gorgeira, escudo. Mas, muitas vezes, era armamento de ocasião:
chuços, machado, etc. Era raro possuírem armamento completo,
dispunham apenas de peças isoladas. Em Aljubarrota, por exemplo, os
peões estavam fracamente armados» muitos deles descalços:
«pobremente e mal armados, porque o que tinha cota não tinha coudel
e o que tinha panceira não tinha bracelotes, e muitos deles bacinetes
sem caras, assim que todas as suas armas, sendo repartidas como cumpria,
não armariam o terço da gente, em tanto que dizem aqueles que os
viram que não pareciam os nossos acerca deles senão um pouco de
escáneo de ver».
O que caracteriza a composição do exército português
não é o facto de os chefes militares serem nobres (cujo
sentimento patriótico os levara a ficar do lado de Portugal). É a
sua composição de classe não privilegiada, popular.
- x -
A táctica que caracterizou a actuação do exército
português na Revolução de 1383-85, foi a de «pé
terra» ou «pé em terra».
Na táctica de «pé terra» empregada pela primeira vez na
batalha dos Atoleiros, em 6 de Abril de 1384, os combatentes apeados ofereciam
à cavalaria inimiga os ferros das lanças bem fincados na
«terra». As lanças suportavam o embate da cavalaria inimiga.
Os cavalos espetavam-se nelas e eram derrubados com os cavaleiros que, de
pesadas armaduras, não têm mobilidade frente aos combatentes
inimigos apeados e, em consequência, são por estes desbaratados,
esmagados, aniquilados.
A disposição dos combatentes era em quadrado: o dispositivo
táctico pretendia anular todo o ímpeto da cavalaria inimiga.
Os lados do quadrado eram guarnecidos à frente pela vanguarda,
atrás pela retaguarda e carriagem ou curral, e aos lados pelas alas.
Nuno Alvares mandava apear a maior parte da sua cavalaria. Esta guarnecia a
vanguarda, as alas e a retaguarda. A cavalaria portuguesa combatia como a
peonagem.
Pelas alas e pela retaguarda eram distribuídos os besteiros e os
archeiros que, umas vezes à frente, outras vezes por detrás dos
homens de armas, (cavaleiros apeados) lançavam os seus virotões e
frechas.
Os peões eram distribuídos pelos quatro lados do quadrado.
A vanguarda, se a frente era rompida pela potência do choque da cavalaria
pesada inimiga, procurava recompor-se, rapidamente, fechando-se sobre as tropas
inimigas que tivessem penetrado no quadrado, a fim de separar estas do resto da
vanguarda inimiga.
Então as alas e a retaguarda caíam sobre o inimigo que estava
dentro do quadrado.
Para melhor utilização do tiro dos besteiros e archeiros sobre a
vanguarda inimiga, as alas podiam estar salientes em relação
às linhas da frente ocupada pela vanguarda do lado amigo. Assim, os
besteiros e archeiros podiam cruzar o tiro, ou seja, as frechas e os
virotões, sobre a vanguarda inimiga que avançava contra o
quadrado.
O quadrado defendia-se também em todo o seu contorno contra ataques do
inimigo, quer pelos flancos quer pela retaguarda (ataques da cavalaria ligeira).
Empregando esta táctica, a batalha que as forças portuguesas
impunham ao inimigo era muito diferente das grandes batalhas da Idade
Média, caracterizadas pelo formidável choque dos cavaleiros, logo
divididos em duelos e recontros parciais de cujas vitórias individuais
dependia a vitória comum.
A nova táctica era profundamente revolucionária, era fruto da
mobilização armada das classes populares, das classes sociais
ascendentes contra o poder feudal.
A nova táctica exigia a subordinação a um comando
único. (Não podemos, aqui, deixar de fazer o paralelo entre o
fortalecimento do poder do rei, apoiado pela burguesia ascendente e o comando
único em campanha, O poder feudal era um poder descentralizado, mais ou
menos dividido entre os senhores. Os exércitos feudais eram hostes de
diferentes senhores; as batalhas da cavalaria feudal rapidamente se
transformavam num somatório de recontros.)
A nova táctica exigia a disciplina das marchas e dos acampamentos, a
escolha cuidada do terreno e do dispositivo e o hábil emprego das tropas.
Era o progresso táctico da peonagem (infantaria) e das armas de
arremesso e a decadência da cavalaria medieval.
Mas estas profundas mudanças da táctica militar não foram
pura consequência de um progresso interno, autónomo, da arte
militar, com base no aparecimento de novos materiais de guerra, por exemplo.
Elas foram um produto do surgimento de novas classes sociais, desenvolvimento
da burguesia, da produção artesanal, da luta de classe entre a
nobreza territorial, latifundiária e as classes não
privilegiadas, da luta armada que estas classes tiveram de travar contra as
forças do Estado feudal.
Se a táctica de «pé terra» surge, antes, na Inglaterra
não é por acaso. Ela corresponde ao ascenso das camadas burguesas
da sua população.
O facto da própria cavalaria portuguesa combater apeada na batalha de
«pé em terra» não nos deve induzir em erro sobre a
permanência da cavalaria medieval. A nossa cavalaria era empregada como
infantaria, não usava lanças de 4 metros nem pesadas armaduras.
Era uma cavalaria de cavaleiros-vilões, cavaleiros-burgueses. A
própria cavalaria inimiga, nas batalhas de Trancoso e Aljubarrota, por
exemplo, viu-se obrigada a apear-se. Os cavaleiros entregavam os cavalos aos
seus pajens e cortavam as lanças para combater as tropas portuguesas.
Mostravam, assim, que receavam atacar a cavalo (o que caracterizava,
precisamente, o poder da cavalaria feudal) e ser derrubado pelos peões,
pela tropa apeada. Os cavaleiros feudais eram, deste modo, obrigados a aceitar
as condições de combate impostas pelo exército
burguês e popular, mas em condições desvantajosas, pois a
cavalaria feudal combatia a pé, com lanças improvisadas, pesadas
armaduras e reduzida mobilidade.
A cavalaria a pé significa o predomínio da infantaria, das armas
e armaduras ligeiras, das armas de tiro, fruto dos progressos do trabalho
artesanal, manobradas pelos homens das milícias municipais (antepassados
das tropas do contingente dos exércitos de conscrição).
A cavalaria a pé era a cavalaria transformada em infantaria.
Nuno Alvares foi o primeiro chefe militar que entre nós fez batalha de
«pé terra» e venceu (Fernão Lopes).
A táctica do «pé terra» surgiu do próprio
carácter social, de classe, da Revolução de 1383-85: as
classes não privilegiadas não dispunham de cavalaria para opor
aos nobres.
Depois da insurreição de 1383 as classes populares, por todo o
Portugal, combatiam os nobres, espontaneamente, de «pé terra»:
Quando o conde de Viana saiu com quarenta de cavalo do castelo de Penela
«para tomar mantimentos contra a vontade dos seus donos»,
«juntaram-se contra ele os das aldeias e comarcas de redor para lhes
defender todos pé terra».
«Emborilando-se eles com eles remessaram-lhe o cavalo e caiu com ele em
terra; e foi um vilão rijamente que chamavam de alcunha Caspirre e
cortou-lhe a cabeça e assim morreu. E os seus, como o viram morto,
fugiram todos e os da vila tomaram logo voz por Portugal».
Esta descrição dá-nos uma imagem correcta do que era a
táctica de «pé em terra» empregada pelos portugueses,
em Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota. É de admitir que Nuno Alvares
Pereira (e alguns dos seus companheiros) tenha tido conhecimento da
táctica de «pé em terra», do emprego da infantaria,
antes de 1383. Com efeito, já há dezenas de anos que os ingleses
empregavam a infantaria e os archeiros contra a cavalaria feudal. A Guerra dos
Cem Anos deu aos ingleses grande prestígio na arte militar. Tropas
inglesas estiveram em Portugal no reinado de D. Fernando. Nuno Alvares Pereira
disporia, assim, de uma base de conhecimentos teóricos que lhe teria
permitido tirar o maior aproveitamento do modo espontâneo como os
camponeses combatiam os cavaleiros feudais, os senhores dos castelos.
O modo de combater a cavalaria feudal de «pé em terra» surgiu
espontaneamente entre os nossos camponeses como terá surgido em
Inglaterra, em condições de luta social que teriam as suas
semelhanças.
Nuno Alvares Pereira não tinha outra alternativa eficaz para o emprego
das tropas e dos poucos meios de que dispunha. (Quando falamos de Nuno Alvares
Pereira, grande capitão, não devemos esquecer os chefes militares
seus companheiros e entre estes, os chefes militares burgueses.)
Nuno Alvares Pereira soube ligar a táctica de «pé em
terra», ao estudo cuidado do terreno e ao seu hábil aproveitamento,
obrigando o inimigo a adoptar um dispositivo de ataque que não lhe
permitisse aproveitar toda a sua superioridade, como por exemplo, estreitando a
frente de combate, como o fez em Aljubarrota.
Os combates que Nuno Álvares Pereira travou foram, em geral, contra um
inimigo muito superior em número e armamento. Essas circunstâncias
adversas exigiam a nova táctica, adequada aos meios de que as
forças populares dispunham, e um elevado moral dos combatentes. Desse
elevado moral deram os portugueses sobejas provas.
Ele alicerçava-se na justiça da sua causa.
Nuno Alvares empregou uma táctica revolucionária numa guerra que,
para a burguesia e para as classes populares, era uma verdadeira guerra
revolucionária.
- x -
Mas para Nuno Alvares, membro destacado da classe nobre, a guerra pela
independência nacional não era simultaneamente uma guerra
revolucionária. Nuno Alvares Pereira foi o maior chefe militar da
Revolução de 1383-85. De uma coragem indómita ele arriscou
constantemente a vida nas batalhas da Revolução. Mas os
objectivos da sua luta, para além da defesa da independência
nacional, não eram muitas vezes os mesmos, que os da burguesia.
Em 1395 Nuno Alvares pretende constituir seus vassalos alguns seus companheiros
de armas e amigos, ao que se opõem D. João I e os grandes
burgueses, cujos representantes faziam parte do governo do rei. Trata-se de um
verdadeiro afrontamento de classe entre o condestável, de um lado, e o
rei e a burguesia, do outro. Para Nuno Alvares a guerra não podia, pois,
ter um carácter social revolucionário.
- x -
Em estreita ligação com a táctica de pé em terra e
com o emprego de armas de arremesso o exército português
organizava defensivamente o terreno, criando obstáculos (fossos,
trincheiras, abate de árvores, paliçadas) à
penetração do inimigo com o fim de lhe retardar os movimentos,
quer da cavalaria, quer das tropas apeadas, e ainda para o fixar debaixo do
tiro dos besteiros e archeiros.
A organização do terreno, ou seja, escavar trincheiras e fossos,
abater árvores, construir paliçadas, é um trabalho humilde
que só poderia ser feito por homens pertencentes às classes
populares. De novo se evidencia o carácter popular do exército
português.
A BATALHA
Após a invasão de Portugal pela Beira Alta, a 8 de Julho, e
conhecida a 13 em Abrantes, os movimentos estratégicos das forcas
portuguesas (as hostes de D. João I e de Nuno Álvares Pereira)
são feitos com o objectivo de, conhecida com segurança a linha de
penetração do inimigo, a interceptarem, obrigando-o ao combate. A
batalha foi imposta pelos portugueses.
O combate foi travado duas léguas a norte da aldeia de Aljubarrota.
No dia 12 de Agosto os castelhanos estavam provavelmente em Leiria e os
portugueses em Porto de Mós. Nestes pontos estacionaram os
exércitos.
Nuno Álvares, a 13 de Agosto saiu em reconhecimento do inimigo e deve
ter escolhido nesse reconhecimento a posição que no dia 14 viria
a ocupar para cortar a marcha dos castelhanos. A posição era
situada num pequeno planalto a sul da ribeira de Calvaria, que podia ser
atravessada a vau sem grande dificuldade. Ladeavam a posição os
ribeiros do vale de Madeiros e do vale da Mata, respectivamente à
esquerda e à direita de quem está voltado para norte.
O exército português ocupou o lado norte do pequeno planalto o
qual apresenta muitos esporões praticamente inacessíveis. Entre
dois deles passava a estrada por onde os castelhanos haviam de vir. De forma
geral, só se pode subir da várzea pantanosa da ribeira da
Calvaria para esse pequeno planalto pelos vales que o ladeiam.
Estas condições do terreno limitavam muito a frente em que o
inimigo podia lançar o ataque e ainda permitiam que ele fosse batido de
flanco, por tiros cruzados de atiradores (besteiros e archeiros) postados nos
esporões e colocados nas alas esquerda e direita.
As encostas dos flancos eram impróprias para o emprego da cavalaria
pesada de Castela.
Às dez horas (solares) da manhã do dia 14, os portugueses estavam
instalados na posição sobre a ribeira de Calvaria. Ao meio-dia, a
testa da coluna castelhana «chega acerca dos portugueses» a 1250
metros na crista da encosta fronteira.
Reconhecendo a força da posição portuguesa, o
exército castelhano decide ladeá-la pelo oeste e às 13
horas estaciona onde hoje existe a povoação de Calvaria, que era
visível da posição portuguesa.
Em face do movimento do inimigo, o exército português
começa a abandonar a primeira posição. Inverte a frente e
desloca-se para o sul o suficiente para assegurar o espaço de manobra
à retaguarda e à carriagem, indo ocupar uma nova
posição mais a sul.
«Passou a vanguarda pela retaguarda» relata Fernão Lopes. Quer
dizer, a retaguarda abriu para dar passagem à vanguarda, mas as alas
não cruzaram, ficaram dos lados em que estavam na 1ª
posição.
Andados 2100 metros foi encontrada uma boa posição: o flanco
esquerdo coberto por bons obstáculos; o flanco direito apoiado num
áspero declive.
Às 12 e 45 começa a instalação da frente. Duas
horas depois a nova posição estava ocupada.
Às 15, o trem estava em posição, 1500 metros a sul da
primeira posição que ocupara. A frente do exército
português estava, agora, virada ao sul.
Alcide de Oliveira, no seu livro «Aljubarrota Dissecada», 1979,
propõe a seguinte fita de tempo para os movimentos dos dois
exércitos, no dia 14 de Agosto, até ao início da batalha:
EXÉRCITO DE PORTUGAL
Partida de Porto Mós
|
05:15
|
Chegada à 1ª posição
|
06:45
|
Fim da instalação, começo de armar cavaleiros,
alocuções às tropas
|
10:00
|
Aparecimento dos castelhanos no horizonte
|
11:45
|
Paragem da testa da coluna castelhana em Jardoeira (a norte da rib. de
Calvaria)
|
12:00
|
Recomeço da marcha da col. castelhana, inflectindo para oeste
|
12:15
|
Começo do abandono da 1ª posição pela tropa
portuguesa
|
12:30
|
Começo da ocupação da 2ª
posição
|
12:45
|
Fim da instalação na 2ª posição
|
14:45
|
Chegada do reforço dos cavaleiros da Beira
|
15:00
|
Diálogo com os parlamentares do rei de Castela
|
16:30
|
Recepção da espada mandada pelo conde D. João
Afonso Teles, que vinha na hoste de Castela, a Nuno Alvares
|
17:00
|
Deserção de um grupo da segurança do trem
|
18:15
|
EXÉRCITO DE CASTELA
Chegada da testa à Jardoeira
|
12:00
|
Chegada da testa à Calvaria e paragem
|
13:00
|
Prosseguimento da marcha após reconhecimento da base de ataque
|
14:00
|
Começo da ocupação da base de ataque
|
14:30
|
O rei chega a Chão de Feira (a sul de Calvaria)
|
15:45
|
Saída dos parlamentares
|
16:00
|
Regresso e início do Conselho
|
17:00
|
Chegada da testa do trem (trons)
|
17:15
|
Apear e recolher das montadas
|
17:30
|
Fim da reunião do Conselho
|
17:45
|
Fim da instalação a pé na zona de partida da
1ª batalha (1° escalão de ataque)
|
18:45
|
Recolha das montadas da 2ª batalha (2º
escalão de ataque), chegada da testa da coluna de besteiros e lanceiros
(tropa apeada do 1º escalão de marcha) ao escurecer depois das
19:15 (não chegam a tempo do combate)
|
após
19:15
|
- x -
As tropas que se iriam defrontar eram muito diferentes em efectivos. Os dados
disponíveis correspondem a avaliações prováveis:
A hoste portuguesa terá a seguinte composição aproximada:
MONTADOS
Cavaleiros portugueses (lanças)
|
1 100
|
Cavaleiros ingleses e gascões
|
100
|
Besteiros (escolta do rei)
|
100
|
Archeiros ingleses
|
100
|
APEADOS
Homens de armas (lanças «não bem corrigidas»)
|
500
|
Besteiros
|
700
|
Peões
|
3 900
|
SOMA DOS COMBATENTES
|
6 500
|
Não combatentes (cerca de 1/3 dos combatentes)
|
2 500
|
TOTAL
|
9 000
|
O estandarte indicava a localização do chefe que devia ser visto
pelos combatentes. Capturar ou matar o chefe era um objectivo de primeira
prioridade do inimigo. Por isso o chefe devia ser bem protegido. Tinha a sua
escolta (do rei, do condestável) que era uma pequena força
militar montada. A escolta de D. João I era constituída por 100
besteiros a cavalo. Os não combatentes não estavam desarmados, e
quando a situação o impunha combatiam.
Os efectivos nacionais seriam acompanhados de 200 carros, 1300 azêmolas
de carga e tiro e cerca de 1500 solípedes de sela.
Os valores propostos para os efectivos de pessoal são aproximados, com
um erro de 500 a 1000.
Do estudo do dispositivo provável e do terreno conclui-se que admitir
efectivos superiores conduziria a uma aglomeração de pessoal
incompatível com as dimensões da posição e a
densidade de ocupação incoerente com as habituais na época.
Ao contrário do que diversos autores admitem, o número de
estrangeiros não seria superior a 200 (de acordo com Fernão
Lopes).
«Nos portugueses a protecção consistia apenas numa
espécie de elmo que lhes cobria a cabeça e o pescoço
os bacinetes de camal, e uma indumentária de couro ou de pano
acolchoado para defesa do tronco, chamado solha ou laudel.
«Os privilegiados possuíam cotas de malha de ferro as
panceiras, e fraldões para proteger, respectivamente, o ventre e o corpo
da cintura para baixo.
«Armaduras de chapa de ferro não foram utilizadas pelos portugueses
pelo que nada distinguia os cavaleiros dos outros combatentes.
«Por armamento fundamental tinham a lança, a facha de ferro e a
espada.
«A peonagem trazia chuços, machados, dardos, fundas, etc»
(Alcide de Oliveira, ob. cit.)
Do lado de Castela seriam:
MONTADOS
Cavaleiros (lanças)
|
5 300
|
Cavaleiros franceses (lanças)
|
800
|
Besteiros (escolta do rei, do condestável, etc.)
|
500
|
Ginetes (cavalaria ligeira)
|
1 900
|
APEADOS
Besteiros
|
7 500
|
Peões
|
15 000
|
SOMA DOS COMBATENTES
|
31 000
|
Não combatentes (1/3 dos combatentes)
|
11 000
|
TOTAL
|
42 000
|
Das guarnições e praças portuguesas que estavam por
Castela deveriam vir 500 lanças, 300 besteiros e 1000 peões.
O número de castelhanos era tal que não se deslocavam numa
só coluna de marcha, mas em duas, uma coluna montada e outra apeada.
A coluna montada compreendia 17 400 combatentes e 6000 não combatentes.
A coluna apeada 13 600 combatentes e 5000 não combatentes.
A coluna de marcha do exército português necessitava de 3 ½
a 4 horas para se desenvolver de modo a ocupar a posição.
Cada uma das colunas dos castelhanos de cinco horas e meia.
Quando a batalha teve início, ao cair da tarde, as tropas castelhanas
ainda estavam a chegar à sua posição. A 2ª coluna de
marcha, ainda na Azoia, a norte do local da batalha, quando soube da derrota,
retomou o caminho de Castela.
DISPOSITIVOS
Do lado português a frente teria 350 a 400 metros, do lado castelhano 750
metros, porque o terreno, o pequeno planalto se espraiava para sul da actual
capela de S. Jorge (mandada construir por Nuno Álvares Pereira no local
onde estivera a sua bandeira durante a batalha). O perfil longitudinal do
terreno descia do sul para norte. À frente da posição
portuguesa foram criados obstáculos: uma linha de abatises
diante das faces (alas) que flanqueavam a vanguarda para garantir uma boa
actuação (e defesa) dos besteiros e archeiros e evitar que sobre
a pressão do inimigo aqueles fossem atirados para as encostas dos vales
que ladeavam a posição; uma vala frontal ou fosso de uns
300 a 400 metros para contrariar a progressão inimiga e o obrigar a
combater debaixo do tiro dos besteiros e archeiros das alas. Há ainda
notícia de que a posição portuguesa seria protegida por
uma paliçada de madeira, o arraial de tavoado da Cumieira de Aljubarrota
doado em 15 de Agosto de 1385 por D. João I.
Quanto ao que se julgou ser «covas de lobo» encontradas em
escavações feitas no fim da década de 50, as suas
dimensões e disposição em relação à
frente de combate, bem como o tempo e pessoal que havia disponível para
as abrir, levaram Alcide de Oliveira a uma investigação no local,
da qual concluiu: «Não se trata, repetimos, e obras de
organização do terreno mas sim covas feitas pelos oleiros ou
telheiros da época para colheita de barro, e que o Condestável
aproveitou para apoiar a asa oriental da sua ala esquerda, condenada a
instalar-se na aba do esporão de São Jorge cujo terreno
possuía um valor militar manifestamente mais fraco.
«Era um obstáculo ocasional, inteligentemente aproveitado e que
bastaria dissimular... As covas foram, pois, uma determinante da escolha da
posição e não uma sua consequência.»
Os obstáculos criados ou aproveitados diminuíam a frente de
ataque do exército castelhano.
O dispositivo português
[Figura 1]
constituía (aproximadamente) um quadrado, tendo a frente e a retaguarda
cerca de 350 metros de extensão e os lados cerca de 400 metros. À
frente, a vanguarda, sob o comando de Nuno Álvares Pereira era formada
por 600 lanças (cavalaria apeada) dispostas em três linhas, mais
50 peões da escolta do Condestável. De cada um dos extremos da
vanguarda estava formada uma ala, imediatamente contígua à
vanguarda, formando com ela um corpo único, a chamada 1ª batalha,
porque era a que estava à frente.
As alas tinham a forma de um V com o vértice voltado para o inimigo e os
lados do V guarnecidos por tropas. Eram como que dois «baluartes» (em
linguagem da fortificação permanente), salientes em
relação à linha da vanguarda. Os salientes teriam uma
extensão de 100 a 130 metros. Estes salientes permitiam que, pelo lado
de dentro, os besteiros e archeiros fizessem tiro cruzado sobre o inimigo
à frente da vanguarda do exército português quando aquele
assaltasse a posição portuguesa. Do lado de fora, o saliente
permitia a defesa contra os ataques de flanco sobre a vanguarda do
exército português.
A ala direita, do lado ocidental, era constituída por 200 lanças
(das quais 100 estrangeiras) 100 archeiros ingleses, 100 besteiros e 750
peões.
A ala esquerda, a ala dos Namorados, do lado oriental, era formada por 200
lanças, 200 besteiros e 650 peões,
As alas eram formadas em quatro linhas: besteiros na 1ª, peões nas
2ª e 3ª e cavaleiros (apeados) na 4ª. Os besteiros atiram, quer
colocando-se à frente (e recolhendo-se ao quadrado no momento porventura
necessário), quer pelos intervalos entre as lanças.
Atrás da vanguarda e suas duas alas (a 1ª batalha), a cerca de 200
metros, no interior do quadrado, formava a retaguarda, cujo alinhamento era
paralelo ao da vanguarda. Ocupando os lados do quadrado, duas guardas de flanco
no lado oeste, duas guardas de flanco no lado este.
A retaguarda e as guardas de flanco, laterais, constituíam a 2ª
batalha. Era comandada pelo rei D. João I.
A 2ª batalha era formada por 700 lanças (apeada), 300 besteiros
(dos quais 100 da escolta do rei) e 1050 peões.
A retaguarda era formada por três linhas sendo a 1ª de peões,
250, e as 2ª e 3ª de lanças, 500. As guardas de flanco eram
formadas pelos restantes combatentes da 2ª batalha, dispostos em
três linhas, sendo a linha interior e a linha exterior (em
relação ao quadrado) ocupadas pelos peões. Em cada flanco
100 lanças, 100 besteiros e 400 peões.
A missão das guardas de flanco era não só não
permitir ao inimigo que entrasse no quadrado pelos lados perpendiculares
à frente, isto é, pelos flancos do dispositivo defensivo, como
também fechar o cerco ao inimigo e cair sobre ele, caso este tivesse
penetrado no quadrado rompendo a frente, a vanguarda.
Atrás da retaguarda, a uns 150 metros, a carriagem ou o
«curral» fecham o quadrado. Compreendia o trem de acompanhamento. Era
guarnecida por 200 besteiros e 1400 peões. Os carros estacionados, uns
junto dos outros, com os animais desatrelados, os próprios cavalos e
muares de reserva constituíam um obstáculo à
penetração do inimigo por detrás do dispositivo.
No total as nossas tropas combatentes estavam todas instaladas na
posição.
A missão da vanguarda era a de suportar o choque principal do assalto
inimigo. Nela formavam os melhores combatentes.
A missão principal das alas e das guardas de flanco foi referida
atrás.
A missão da retaguarda era a de reforçar a vanguarda, colmatar as
brechas feitas pelo inimigo na frente e, se possível, o contra-ataque.
Alguns cavaleiros inimigos, apresentando-se como parlamentários,
tentaram reconhecer a posição portuguesa antes do combate. Nuno
Alvares Pereira repeliu-os. Mas devem ter verificado que a
posição portuguesa era muito forte. Quando o rei de Castela
reuniu o conselho para decidir sobre dar ou não dar batalha, as
opiniões dividem-se em três correntes:
não dar batalha mas conservar-se no terreno aguardando a
defecção dos portugueses, desmoralizados perante o grande
número de inimigos e esgotados pela marcha de aproximação
da posição e por nela aguardarem há tantas horas, debaixo
de sol escaldante o ataque do inimigo;
não dar batalha e prosseguir a marcha sobre Lisboa, objectivo
que, conquistado, significaria a conquista do reino;
dar batalha imediatamente.
Os cavaleiros mais experientes, que tinham estado noutras batalhas, eram de
opinião que não se travasse combate, por várias
razões:
a posição portuguesa era muito forte;
as alas tinham dificuldade em tomar parte no combate porque a frente da
posição era estreita e eles eram obrigados a desdobrar-se sobre
as encostas que ladeavam a posição;
era o cair da tarde e eram necessárias ainda horas para que as
tropas se pudessem ordenar sobre a posição e estavam cansadas da
marcha de aproximação.
Mas os cavaleiros mais inexperientes e arrogantes, entre os quais se
encontravam os nobres portugueses, menosprezando o valor e a
posição defensiva do inimigo, bem como as condições
do terreno, defenderam que se devia dar batalha, pois era manifesta a
inferioridade portuguesa. Há um documento escrito pelo rei de Castela,
poucos dias após a batalha, em que ele afirma ter dado ordens para que
não se ferisse o combate. Mas os cavaleiros da vanguarda (entre os quais
se destacava o conde João Afonso Telo, irmão de D. Leonor Teles)
iniciaram o ataque pouco depois das seis horas da tarde. Há aqui que
apontar a falta de unidade de comando do lado de Castela o que, para
além das fracas qualidades pessoais do rei, não é de
estranhar num exército de tipo senhorial, constituído por hostes
do rei, dos grandes senhores e das ordens militares.
Que os castelhanos atacassem era o que pretendia o comando português. Os
movimentos estratégicos e tácticos da tropa portuguesa haviam
tido o objectivo de cortar o caminho ao inimigo, provocando a batalha.
D. João I e Nuno Alvares apresentavam a sua hoste ao invasor,
provocando-o.
A manobra de contorno, por oeste, da 1ª posição portuguesa
ameaçou deitar por terra o ambicioso plano do comando português.
Mas este insistiu, fez inverter a frente do seu exército e de novo se
apresentou aos castelhanos com o objectivo de lhe cortar a
penetração.
Nuno Alvares Pereira tinha consciência da desproporção dos
efectivos e dos seus efeitos sobre a moral das tropas: nos dias que precederam
a batalha procurou evitar que os seus homens conhecessem a enorme superioridade
do inimigo, para que não desmoralizassem. No dia 14 de Agosto, D.
João I e Nuno Alvares Pereira andavam constantemente entre os seus
homens, moralizando-os. De facto, o moral dos portugueses, de tão grande
importância no desfecho da batalha, era grande: quando as tropas viram o
inimigo contornar a 1ª posição, furtando-se ao combate, os
portugueses exclamaram: «o pesar do demo, já se vão e
não querem pelejar».
- x -
Enquanto o dispositivo português era defensivo, o castelhano
era atacante. A frente de ataque tinha cerca de 750 metros. À frente da
vanguarda, 16 trons, com 50 bombardeiros (artilharia primitiva) e uma linha de
200 besteiros, para uma acção de fogo e tiro das bestas,
precedendo o ataque da cavalaria.
A 1ª linha de batalha era formada por 1600 lanças na vanguarda e
700 em cada uma das alas. As. alas estavam alinhadas com a vanguarda. A 1ª
linha estava dividida em 2 escalões. O escalão de reserva tinha
uma profundidade de 120 metros e postava-se 150 metros atrás da
vanguarda. 100 metros atrás da reserva a 2ª linha formava a massa
de manobra. Era constituída por 3000 lanças (cavalaria pesada) e
2000 ginetes (cavalaria ligeira). O rei doente e a sua escolta de 150 homens a
cavalo não se integraram no dispositivo. O total era de 8250
combatentes. O comando do exército castelhano, ao verificar que o
inimigo combatia a pé e de que era pequena a frente de que dispunha,
ordenou que a cavalaria pesada apeasse e combatesse a pé.
Os ginetes, massa de manobra, não apeavam, Avançavam a galope,
lançavam dois, três dardos sobre o inimigo, espadeiravam e, se
estes não cediam, retiravam.
Se compararmos o número de combatentes do dispositivo defensivo
português e do dispositivo atacante castelhano, ou seja, 6500 contra
8250, verificamos que Nuno Álvares Pereira, pela escolha da
posição e pelo tempo de manobra para ocupar o dispositivo
conjugado com o adiantado do dia, reduziu muito a desproporção
dos efectivos combatentes e a superioridade estratégica do
exército castelhano.
- x -
O ataque foi iniciado a pé, o que representava uma grande desvantagem
para a cavalaria atacante cujas lanças (de 4 metros) haviam sido
cortadas e cujas pesadas armaduras lhe reduziam a mobilidade.
Os trons deram o sinal de partida (e fizeram apenas três mortos entre a
hoste portuguesa), mas rapidamente ficaram inoperativos, rebentaram.
A 300 metros da linha portuguesa a cavalaria castelhana acelera o passo.
A vanguarda portuguesa, bem alinhada, inicia um movimento lento, de
avanço, sobre uma dezena de metros. Por razões de ordem
psicológica a vanguarda na defensiva e no combate apeado não
aguardava o inimigo a pé firme. No último momento avançava
«passo a passo». A cavalaria castelhana depara com o fosso à
sua frente. Progride a custo sob o tiro dos besteiros e archeiros do
exército português. Os homens das filas do interior da massa
atacante progrediam sob a protecção física dos que junto
com eles avançavam na periferia dessa massa. A massa atacante perde os
seus alinhamentos e distâncias. Torna-se compacta, informe e afunila.
A vanguarda portuguesa avança. Choque. O combate é um corpo a
corpo à lançada e espadeirada.
Os dois blocos de combatentes sofrem pressões desiguais das suas
respectivas retaguardas. A frente portuguesa cede entre o centro e a esquerda,
no sector onde se encontra Nuno Alvares Pereira, provavelmente por ter sido em
direcção ao estandarte do Condestável que maior
esforço fizeram os castelhanos, pois capturar ou aniquilar o comandante
inimigo era um objectivo prioritário.
Metade das forças atacantes entra de roldão no quadrado
português, progride em direcção ao rei. Então as
alas portuguesas dobram-se sobre o inimigo e ficam entre a vanguarda e a
retaguarda portuguesas. O rei D. João I lança-se sobre o inimigo.
As guardas de flanco da 2ª linha portuguesa completam o cerco. Besteiros,
archeiros e peões das alas mantêm as suas posições.
A 2ª linha castelhana, em organização, ao longe,
avança.
A vanguarda portuguesa consegue restabelecer a frente. O inimigo que penetrara
no quadrado português é cercado, submerge ante a enorme
superioridade do número de lanças, besteiros e peões que o
envolvem e é esmagado.
Quinhentos castelhanos conseguem escapar ao envolvimento, vêm ao encontro
da reserva do seu exército ainda não completamente organizada.
Contra-ataque de Nuno Alvares Pereira com o que resta da 1ª linha
portuguesa, 2300 homens. Exploração do sucesso até ao trem
do inimigo. A perseguição é feita a cavalo.
Os ginetes de Castela tentam um ataque sobre a retaguarda do quadrado
português mas são repelidos.
O pânico gera-se entre os castelhanos: de um lado entre os cavaleiros
apeados da 1ª linha, que recuam; do outro, no seio das unidades mais
atrasadas na coluna de marcha e que só agora se aproximavam da frente. O
dispositivo castelhano não foi restabelecido. Os castelhanos fogem
desordenadamente em todas as direcções, a cavalo e a pé.
O rei de Castela foge a caminho de Santarém.
Os ginetes aguardam a noite para, a coberto dela, retirarem em
segurança. Juntam-se-lhe mais de 1000 homens a cavalo.
A população rural da região cai sobre os fugitivos, como
sucede sempre que uma guerra é nacional e popular. Mata grande
número deles, sendo de admitir que foram mais os que morreram às
mãos dos camponeses (5500) que durante o combate.
Terão sido mortos na batalha cerca de 2500 cavaleiros do exército
do rei de Castela entre os quais dezenas de grandes fidalgos e, destes, alguns
eram portugueses.
A fita do tempo (da batalha) desde a partida para o ataque terá sido
aproximadamente a seguinte (A. Oliveira,
Aljubarrota Dissecada
):
Salva de trons e partida do escalão de ataque
|
18:15
|
Abordagem da posição portuguesa
|
18:25
|
Rotura da frente e começo do envolvimento da bolsa
|
18:30
|
Reconstituição da vanguarda portuguesa e contra-ataque
|
18:40
|
Debandada da reserva castelhana e fuga do rei
|
18:45
|
Último ataque dos ginetes ao curral
|
18:50
|
Fim do aniquilamento na bolsa
|
18:55
|
Exploração do sucesso e saque do trem castelhano
|
18:55
|
Reagrupamento dos ginetes depois de repelidos (escurecer)
|
19:10
|
Identificação dos mortos pelo rei de Portugal até às
|
20:00
|
Partida dos ginetes (noite cerrada)
|
20:25
|
Chegada de D. João de Castela a Santarém
|
24:00
|
Chegada dos ginetes a Santarém (15 Agosto)
|
08:00
|
Partida de D. João I para Alcobaça
|
16/Agosto,
manhã
|
Graças à hábil escolha e organização da
posição portuguesa apenas a vanguarda castelhana pôde ser
empenhada na acção principal do combate enquanto do lado
português todos os efectivos foram empenhados. Assim a inferioridade
estratégica do exército português foi transformada em
superioridade táctica.
A cavalaria portuguesa não se distinguia, praticamente, da infantaria.
Estava ligeiramente armada e equipada.
A peonagem da retaguarda sob o comando de D. João I (que combateu a
pé) teve papel decisivo no aniquilamento da vanguarda castelhana que
havia penetrado no quadrado português.
Embora tenha sido possível que os oficiais ingleses presentes em
Aljubarrota tenham aconselhado a execução da
fortificação de campanha, o certo é que já em 1384
o Condestável, acampado junto a Estremoz, mandara «abrir
trincheiras e construir defesas à volta do arraial». Deve,
portanto, considerar-se que a conjugação do dispositivo das
tropas com as obras de fortificação de campanha era já uma
aquisição da arte militar portuguesa antes de Aljubarrota.
Depois de Aljubarrota, as praças fortes e povoações
ocupadas por partidários do rei de Castela entregaram-se quase todas.
A esquadra castelhana que pairava diante de Lisboa, aguardando a chegada do
exército, parte, levando vários fidalgos portugueses, entre os
quais alguns que desempenhavam os cargos de Alcaides de castelos ao
serviço do inimigo.
A vitória de Aljubarrota representou uma viragem decisiva na guerra
contra Castela, que se prolongou, entremeada de combates e de tréguas,
até 1411.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A batalha de Aljubarrota foi uma expressão concentrada das
características políticas, socioeconómicas, militares,
morais, da Revolução de 1383-85.
Em Aljubarrota esteve bem patente a luta pela independência nacional
empreendida pela burguesia, pelas classes populares e por alguns nobres
patriotas.
Esteve patente a traição a Portugal pela classe dominante de
então, a nobreza territorial e latifundiária, que não
hesita, para defender as suas posições privilegiadas, a sua
riqueza, em pedir o auxílio da nobreza castelhana, do estrangeiro,
comprometendo de modo decisivo a independência da sua Pátria.
No exército castelhano vinham, à frente, os maiores senhores da
nobreza portuguesa. E foram precisamente estes que, com o maior desprezo pelo
exército português, mais incitaram o rei de Castela a dar batalha.
Em Aljubarrota esteve, também, patente a luta contra a opressão
feudal: os humildes componentes do exército português viam, diante
de si, nos nobres traidores que estavam com o rei de Castela, os mesmos que os
oprimiam, exploravam e violentavam, havia gerações e
gerações.
A batalha de Aljubarrota é o momento mais alto da arte militar de Nuno
Álvares Pereira e dos seus companheiros, dos chefes militares da
Revolução de 1383-85, uns deles pequenos nobres, outros de origem
plebeia (burgueses do campo e da cidade).
Uma arte militar que tinha uma grande inspiração das lutas
populares, que por todo o Portugal eclodiram a partir de Dezembro de 1383, uma
arte militar que, fundamentalmente, era a maneira de fazer a guerra das classes
sociais ascendentes contra o poder feudal em decadência.
Aljubarrota é o confronto entre a infantaria portuguesa, de pobre gente,
dos ventres ao sol e a aristocrática cavalaria feudal. Aljubarrota
impôs definitivamente, entre nós, o triunfo da infantaria sobre a
cavalaria medieval (por esta razão o dia 14 de Agosto foi consagrado
como o dia da Infantaria Portuguesa).
A importância da consciência da justiça da guerra
está bem patente no moral das tropas portuguesas, no seu espírito
de sacrifício, na serenidade de que deram provas diante de tão
grande número de inimigos, bem montados e armados.
A justiça da guerra que os portugueses faziam, alicerce da unidade entre
o povo e o exército está patente ainda na
determinação de que as populações rurais deram
provas ao perseguirem e aniquilarem os fugitivos do exército castelhano,
incluindo os traidores portugueses que com ele tinham vindo a Aljubarrota.
Deve também salientar-se a unidade e coesão entre os combatentes
portugueses. Esta coesão e unidade tinham por base objectivos nacionais
e sociais comuns; independência da Pátria, a defesa dos bens e
haveres, a limitação dos privilégios dos nobres, a luta
contra a opressão feudal.
A justiça desses objectivos comuns era também a base da unidade
entre o comando e as tropas. A batalha de Aljubarrota é por todas as
razões apontadas atrás, um marco dos maiores da História
de Portugal.
Ela contém, como expressão concentrada que é da
Revolução de 1383-85, lições de grande actualidade
acerca da luta pela independência nacional, acerca da luta de classes e
da guerra.
- x -
De todas estas lições uma das mais pertinentes, neste momento,
é, sem dúvida, a da posição das classes dominantes
face à defesa dos seus privilégios e à independência
nacional.
Em 1383-85 a nobreza portuguesa procurou a intervenção da nobreza
de Castela na política portuguesa, oferecendo ao rei castelhano o trono
de Portugal e combatendo ao lado das forças invasoras.
- x -
A classe dominante de hoje, a burguesia monopolista e latifundiária foi
profundamente abalada, no seu poder económico e político, depois
do 25 de Abril pelas conquistas democráticas alcançadas pelo Povo
português.
A política de restauração capitalista, de
restauração dos privilégios da grande burguesia, conduzida
pelos sucessivos governos constitucionais, tem sido uma política de
subordinação, dia a dia mais grave, da política e da
economia portuguesas ao grande capital internacional, à banca
internacional privada, às empresas transnacionais, à CEE,
à política diplomática e militar dos EUA e da NATO, etc.
Que significado tem esta política?
A grande burguesia procura no estrangeiro o apoio de que necessita para se
manter no Poder, para restabelecer os seus antigos privilégios. Mas o
apoio que procura e obtém junto dos meios imperialistas e da grande
burguesia internacional faz correr graves riscos à capacidade de os
portugueses decidirem da sua própria vida, do seu próprio
presente e futuro.
Como a nobreza portuguesa em 1383-85, a grande burguesia monopolista dos
nossos dias não hesita em comprometer a independência nacional
à restauração, conservação e reforço
dos seus interesses de classe, que são o seu enriquecimento e o seu
domínio da sociedade portuguesa, tendo por base a opressão e a
exploração das mais amplas camadas do nosso povo, ou seja, das
camadas não monopolistas.
Hoje, são a classe operária, os trabalhadores, as camadas
não monopolistas da nossa população os legítimos
herdeiros da tradição patriótica dos burgueses, dos
mesteirais, dos camponeses sem terra, dos assalariados que lutaram pela
independência da nossa Pátria contra a classe dominante do seu
tempo, a nobreza de Portugal e de Castela, e venceram.
Bibliografia
Crónica de D. João I, Ferrão Lopes.
História do Exército Português, Ferreira Martins.
Portugal Militar, Carlos Selvagem.
Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel
Serrão.
A Revolução de 1383, António Borges Coelho.
As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média,
Álvaro Cunhal.
De Estremoz a Aljubarrota, Augusto Botelho da Costa Veiga.
Aljubarrota, A. B. Costa Veiga, G. Mello de Matos e Afonso do
Paço.
A Evolução Económica de Portugal, Séculos
-XII a XV, vol. XI, Armando de Castro.
História Económica de Portugal, II vol., Armando de Castro.
Aljubarrota Dissecada, Frederico Alcide de Oliveira.
Os esquemas dos dispositivos são os propostos por A. de Oliveira em
«Aljubarrota Dissecada».
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info
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