Ponha na primeira página: Já não há
repórteres
por John Pilger
A morte de Robert Parry, este ano, foi como uma despedida da era do
repórter. Parry era "um pioneiro do jornalismo independente",
escreveu Seymour Hersh, que tinha muito em comum com ele.
Hersh revelou o massacre de My Lai no Vietname e o bombardeamento secreto do
Camboja; Parry denunciou o Irão-Contra, uma conspiração de
drogas e de armas que o levou à Casa Branca. Em 2016, eles produziram,
em separado, provas convincentes de que o governo de Assad na Síria
não tinha usado armas químicas. Não foram esquecidos.
Afastado dos media
dominantes, Hersh teve de publicar a sua obra fora dos Estados Unidos. Parry
instituiu uma página de notícias independente,
Consortium News
,
onde, num artigo final, na sequência de um ACV, se referiu à
veneração do jornalismo pelas "opiniões
aprovadas" enquanto as "provas não aprovadas são postas
de lado ou desacreditadas, independentemente da sua qualidade.
Embora o jornalismo sempre tenha sido uma extensão do poder
instituído, alguma coisa mudou nos últimos anos. Os dissidentes
não protestaram quando entrei um jornal nacional na Grã-Bretanha,
nos anos 60, e regressei a um metafórico mundo subterrâneo, quando
o capitalismo liberal avançou para uma forma de ditadura corporativa.
Isto é uma viragem sísmica, com jornalistas a policiar a nova
tendência para o conformismo
("groupthink"),
como Parry lhe chamava, distribuindo os seus mitos e diversões,
perseguindo os seus inimigos.
Observem a caça às bruxas contra os refugiados e imigrantes, o
abandono premeditado dos fanáticos do "Me Too" das nossas
antigas liberdadea, a presunção de inocência, o racismo
anti-Rússia e a histeria anti-Brexit, a crescente campanha anti-China e
a ocultação de alertas quanto a uma guerra mundial.
Com muitos jornalistas independentes, ou a sua maioria, banidos ou expulsos dos
media dominantes, um cantinho da Internet tornou-se uma fonte vital de
divulgação e análise baseadas em provas: o verdadeiro
jornalismo. Páginas como wikileaks,org, consortiumnews.com, ZNet
zcomm.org, wsws.org, counterpunch.org, informationclearinghouse.info,
globalresearch.org, e truthdig.com, são leitura obrigatória para
quem queira perceber um mundo em que a ciência e a tecnologia
avançam prodigiosamente, enquanto a vida política e
económica nestas medonhas "democracias" regridem por
detrás da fachada de espetáculo narcisista dos "media".
Na Grã-Bretanha, só uma página da web
proporciona crítica independente dos "media", de forma
consistente. É a notável Media Lens em parte porque os
seus fundadores e editores, assim como seus únicos redactores, David
Edwards e David Cromwell desde 2001, concentram o seu olhar não nos
habituais suspeitos, a imprensa Tory, mas nos modelos do conceituado jornalismo
liberal: a BBC, o
Guardian,
o Channel 4 News.
O método é simples. Meticulosos na sua
investigação, são respeitosos e delicados quando perguntam
porque é que um ou uma jornalista, produziu uma notícia parcial
ou não revelou factos essenciais ou promoveu mitos desacreditados.
As respostas que recebem são sobretudo defensivas, por vezes ofensivas;
algumas são histéricas, como se eles tivessem atacado uma
espécie protegida.
Eu diria que Media Lens estilhaçou o silêncio sobre o jornalismo
corporativo. Tal como Noam Chomsky e Edward Herman, em
Manufacturing Consent,
eles representam um Quinto Estado que desconstrói e desmistifica o
poder dos media.
O mais interessante é que nenhum deles é jornalista. David
Edwards é um antigo professor, David Cromwell é
oceanógrafo. Mas a sua compreensão da moral do jornalismo
um termo que raramente se usa, chamemos-lhe verdadeira objetividade
é uma qualidade básica das notícias de Media Lens.
Acho que o trabalho deles é heroico e eu distribuiria um exemplar do
livro que acabam de publicar,
Propaganda Blitz
,
em todas as escolas de jornalismo que prestam serviços ao sistema
corporativo, como fazem todas.
Vejam o capítulo, Desmantelamento do Serviço Nacional de
Saúde, em que Edwards e Cromwell descrevem a parte fundamental
desempenhada pelos jornalistas na crise do pioneiro serviço de
saúde britânico.
A crise do SNS é o produto de um conceito político e dos
media, conhecido por "austeridade", com a sua linguagem desonesta e
traiçoeira de "poupanças de eficiência" (o termo
da BBC para os cortes das despesas públicas) e "escolhas
difíceis" (a destruição deliberada dos pilares da
vida civilizada na Grã-Bretanha moderna).
A "austeridade" é uma invenção. A
Grã-Bretanha é um país rico com uma dívida por
conta dos seus bancos desonestos, não da população. Os
recursos que financiariam confortavelmente o Serviço Nacional de
Saúde foram roubados em plena luz do dia pelos poucos a quem foi
permitido a fuga a milhares de milhões em impostos.
Usando um vocabulário de eufemismos corporativos, o Serviço
Nacional de Saúde, de financiamento público, está a ser
deliberadamente dirigido por fanáticos do mercado livre, para justificar
a sua liquidação. Pode parecer que o Labour Party de Jeremy
Corbyn se opõe a isso, mas será mesmo? A resposta, muito
provavelmente, é não. Pouco disto se fala nos
media, e muito menos é explicado.
Edwards e Cromwell dissecaram a Lei da Saúde e da Assistência
Social de 2012, cujo título inócuo oculta as suas
consequências desastrosas. Desconhecida da maior parte da
população, a Lei acaba com a obrigação legal de os
governos britânicos fornecerem assistência à saúde,
universal e gratuita: os alicerces sobre os quais foi instituído o SNS,
na sequência da II Guerra Mundial. As empresas privadas podem agora
insinuar-se no SNS, pedaço a pedaço.
Edwards e Cromwell perguntam: Onde estava a BBC quando esta lei
histórica estava a caminho do Parlamento? Com o compromisso
estatutário de "proporcionar uma visão abrangente" e
informar devidamente o público sobre "questões de
política pública", a BBC nunca esclareceu a ameaça
sobre uma das instituições mais acarinhadas pela
nação. Um cabeçalho a BBC disse: "Aprovada a lei que
dá poder ao médicos de clínica geral". Era pura
propaganda de estado.
Há uma semelhança flagrante com a cobertura da BBC à
invasão ilegal do Iraque do primeiro-ministro, Tony Blair, em 2003, que
causou um milhão de mortos e muitos mais na miséria. Um estudo da
Universidade de Gales, em Cardiff, concluiu que a BBC refletiu
"esmagadoramente" a linha do governo, subestimando as notícias
sobre o sofrimento de civis. Um estudo Media Tenor colocou a BBC no fundo de um
conjunto de emissoras ocidentais, no que se refere ao tempo concedido aos
opositores da invasão. O tão gabado "princípio"
de imparcialidade nunca foi considerado.
Um dos capítulos mais impressionantes em Propaganda Blitz descreve as
campanhas de difamação montadas por jornalistas contra
dissidentes, adversários políticos e denunciantes. A campanha do
Guardian
contra Julian Assange, o fundador da WikiLeaks, é a mais perturbante.
Assange, cujas épicas revelações da WikiLeaks deram fama,
prémios de jornalismo e grandeza ao
Guardian,
foi abandonado quando já não lhe era útil. Depois, foi
sujeito a um massacre injurioso e covarde, como raras vezes vi.
Sem que nem um cêntimo tenha sido entregue à WikiLeaks, um
badalado livro do
Guardian
levou a um lucrativo filme de Hollywood. Os autores do livro, Luke Harding e
David Leigh, descreveram gratuitamente Assange como uma "personalidade
degradada" e "insensível". Também revelaram a
password
secreta que ele havia confiado ao jornal, e que se destinava a proteger um
ficheiro digital que continha os endereços telegráficos da
embaixada dos EUA.
Com Assange agora encurralado na embaixada do Equador, Harding, no meio da
polícia cá fora, regozijou-se no seu blogue de que "a
Scotland Yard pode ser a última a rir".
A colunista do
Guardian,
Suzanne Moore escreveu: "Aposto que Assange entupiu-se de cobaias
esmagadas. Ele é realmente o maior monte de merda".
A sra. Moore, que se intitula feminista, queixou-se mais tarde que, depois de
ter atacado Assange, havia sofrido "insultos infames". Edwards e
Cromwell escreveram-lhe: "Realmente, é uma vergonha, lamentamos
ouvir isso. Mas como descreverias chamar a alguém 'um monte de merda? Um
insulto infame?".
A sra. Moore respondeu que não o faria, e acrescentou:
"Aconselho-vos a não serem tão arrogantes".
O seu antigo colega do
Guardian,
James Ball, escreveu: "É difícil imaginar o cheiro da
embaixada do Equador, em Londres, mais de cinco anos e meio depois de Julian
Assange lá ter entrado".
Esta perversidade de atrasado mental apareceu num jornal descrito pela sua
editora, Katharine Viner, como "ponderado e progressivo". Qual
é a raiz deste revanchismo? É inveja, o reconhecimento perverso
de que Assange conseguiu mais furos jornalísticos do que os seus
franco-atiradores poderão arranjar durante toda a vida? É por ele
se recusar a ser "um de nós" e envergonhe aqueles que
há muito venderam a independência do jornalismo?
Os estudantes de jornalismo deviam estudar isto para perceber que a origem das
"notícias falsas" não é só
enganação
(trollism),
ou os cromos dos noticiários Fox, ou Donald Trump, mas um jornalismo
untado de falsa respeitabilidade: um jornalismo liberal que afirma questionar o
poder do estado corrupto mas, na realidade, corteja-o e protege-o e pactua com
ele. A amoralidade dos anos de Tony Blair, do qual o
Guardian
não conseguiu reabilitar-se, é o seu eco.
"É uma época em que as pessoas anseiam por novas ideias e
alternativas frescas", escreveu Katharine Viner. O seu colaborador
político, Jonathan Freedlan, desvalorizou o anseio dos jovens que
apoiaram a modesta política do líder Labour, Jeremy Corbyn, como
"uma forma de narcisismo".
"Como é que este homem
", zurrou Zoe Williams, do
Guardian,
"conseguiu chegar às urnas?" Juntou-se-lhe um coro de
fala-baratos precoces, que fizeram fila para empunhar espadas afiadas, quando
Corbyn esteve perto de ganhar as eleições gerais de 2017, apesar
dos media.
Noticiam-se histórias complexas, numa fórmula enviesada, de ouvir
dizer e de omissão, como um culto: o Brexit, a Venezuela, a
Rússia, a Síria. Na Síria, só as
investigações de um grupo de jornalistas independentes contaram
isto, revelando a rede de apoio anglo-americano aos jihadistas na Síria,
incluindo os que estão ligados ao ISIS.
Apoiado por uma campanha de "operações
psicológicas", financiada pelo Foreign Office britânico e
pela USAID, o objetivo é iludir o público ocidental e acelerar o
derrube do governo de Damasco, apesar da alternativa medieval e do risco de
guerra com a Rússia.
A Campanha da Síria, montada por uma organização de
relações públicas de Nova Iorque, a Purpose, financia um
grupo conhecido como os Capacetes Brancos, que afirma, falsamente, ser a
"Defesa Civil da Síria" e é apresentado, sem qualquer
crítica, nos noticiários da TV e nas redes sociais, aparentemente
a salvar vítimas de bombardeamentos que filmam e editam, embora os
espetadores não sejam informados disso. George Clooney é um dos
seus fãs.
Os Capacetes Brancos são apêndices dos jihadistas com quem trocam
endereços. Os seus uniformes e equipamentos inteligentes são
fornecidos pelos tesoureiros ocidentais. O facto de as suas proezas não
serem questionadas pelas maiores agências noticiosas é indicador
da grande influência daquela empresa de relações
públicas, apoiada pelo estado, que governa hoje os
media. Como fez notar Robert Fisk, recentemente, nenhum repórter dos
media dominantes transmite notícias da Síria diretamente da
Síria.
Num ataque insidioso, Olivia Solon, uma repórter do
Guardian,
com base em San Francisco, que nunca esteve na Síria, pôde
difamar o trabalho investigativo é fundamentado das jornalistas Vanessa
Beeley e Eva Bartlett, sobre os Capacetes Brancos, como "propagado
online
por uma rede de ativistas anti-imperialistas, teóricos da
conspiração e
trolls
com o apoio do governo russo".
Este abuso foi publicado sem permitir qualquer correção, nem
sequer o direito de resposta. A página de comentários do
Guardian
foi bloqueada, como documentam Edwards e Cromwell. Eu vi a lista de perguntas
que Solon enviou a Beeley, que parece uma folha de acusação de
McCarthy "Já foi convidada a ir à Coreia do
Norte?"
Quão baixo já desceram os media
predominantes. O subjetivismo é tudo; slogans e insultos são
provas suficientes. O que conta é a "perceção".
Quando era comandante dos EUA, no Afeganistão, o general David Petraeus
declarou que chamava "uma guerra de perceção
travada
continuamente, usando os media
". O que interessava não eram os factos, mas a forma como a
notícia funcionava nos Estados Unidos. O inimigo não declarado
era, como sempre, o público bem informado e crítico da
nação.
Nada mudou. Nos anos 70, conheci Leni Riefenstahl, cineasta de Hitler, cuja
propaganda hipnotizava o público alemão.
Disse-me que as "mensagens" dos seus filmes não dependiam de
"ordens superiores", mas do "vazio submisso" de um
público mal informado.
"Isso inclui a burguesia liberal, instruída?" perguntei.
"Toda a gente", disse ela. "A propaganda ganha sempre, se a
permitirmos".
20/Setembro/2018
O original encontra-se em
www.informationclearinghouse.info/50300.htm
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Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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