Lições da insurreição popular
por Miguel Urbano Rodrigues
"Por que os paralelepípedos foram retirados do centro de
Arequipa?" perguntou o jornalista ao comandante da Terceira Região
Militar, general de Divisão Óscar Gómez de la Torre Ovalle.
"Esses paralelepípedos eram utilizados como projécteis
e por isso decidimos retirá-los, informando a municipalidade",
respondeu o general.
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Em Junho, uma insurreição popular insólita alarmou o
governo peruano e durante algumas noites tirou o sono aos generais que no
Pentágono são responsáveis pelo controle daquela
área da América do Sul.
A crise foi de curta duração, mas o presidente Alejandro
Toledo, cuja popularidade já vinha descendo em queda livre, saiu dela
totalmente desprestigiado. Segundo a última sondagem divulgada,
somente conta agora com o apoio de 25% dos eleitores.
No Peru acontecimentos mais espantosos do que os forjados pela
imaginação de Gabriel Garcia Marquez são comuns. Essa
é uma herança do sincretismo histórico resultante da
fusão inacabada de duas culturas antagónicas: a espanhola e a do
incário. Mas desta vez ninguém julgava possível que o
Sul do país se levantasse maciçamente contra o Poder Central,
desafiando-o como não ocorria desde a grande sublevação
dos índios, em 1780, liderada por Tupac Amaru.
NEGOCIATA ESCURÍSSIMA
Tudo começou com a decisão do governo de privatizar duas
empresas responsáveis pelo abastecimento de energia eléctrica a
Arequipa e outras cidades da Região.
No dia 12 de Junho o alcaide de Arequipa - a segunda cidade do país - e
outros sete de municípios do Departamento entraram em greve da fome
depois de terem esgotado todos os recursos legais no combate à lei que
privatizava a Egasa e a Egesur, as empresas em causa. O povo apoiou-os com
firmeza. Os arequipenhos já tinham levado o caso à
Justiça, que na primeira instancia lhes dera toda a razão.
Actuando nos bastidores, Toledo montara, através de gente sua, uma
negociata mediante o qual as citadas empresas passavam a ser propriedade da
Tractebel, uma firma belga de péssimos antecedentes, filial da poderosa
transnacional francesa Suez.
O escândalo já chegara à Europa, onde a Tractebel responde
perante tribunais da Bélgica e da Suíça por
acções de corrupção e suborno de governantes de
países do Terceiro Mundo. No Peru muitos milhões de
dólares tinham corrido por canais invisíveis. E em Arequipa
sabia-se que os gestores da Tractebel já tinham preparada uma lista
grande de despedimentos. Em nome, claro, da modernidade e da racionalidade da
política do governo .
O povo saiu às ruas em apoio dos autarcas .
Toledo o presidente mais bushiano de quantos existem na América
Latina não apreciou o gesto do alcaide de Arequipa e dos que o
acompanharam. Acusou-os de terroristas, de simpatizantes do comunismo, etc, e
deu instruções ao exército para restabelecer a ordem,
tratando a populaça como ela, no seu entender, merecia.
O general comandante da região instalou na praça principal armas
pesadas apontadas contra o povo. Foi declarado o estado de emergência
no Departamento e imposto o toque de recolher. Mas a
intimidação não funcionou. Os protestos aumentaram; a
maré da solidariedade subiu, caudalosa.
Em Arequipa formou-se um Frente Amplio Cívico de solidariedade aos
autarcas e de resistência à privatização da energia
eléctrica.
Washington sentiu que chegara o momento de dar uma ajuda ao aliado
fidelíssimo.
O embaixador dos EUA, cumprindo instruções do Departamento de
Estado, achou oportuno opinar que a privatização era uma
«medida correcta», acrescentando que identifica no presidente Toledo
«um excelente governante».
A intervenção belicosa do representante de Bush caiu muito mal
no Sul do país. A solidariedade com os arequipenhos ampliou-se. As
autarquias dos Departamentos de Tacna, Moquegua, Juliaca, Ayacucho e Cuzco
expressaram o seu apoio ao movimento de resistência popular.
Toledo assustou-se quando o protesto alastrou ao Departamento de Loreto, na
Amazónia, o maior do país.
Uma comissão negociadora ,que incluía um arcebispo, foi recebida
à pedrada em Arequipa.
Percebendo, finalmente, que o movimento liderado pelo Frente Amplio
Cívico assumira em poucos dias os contornos de uma
insurreição local, o presidente Toledo recuou. Fez promessas e
garantiu pessoalmente ao alcaide do Cuzco -- a capital turística do
Peru -- que não privatizaria a empresa eléctrica da cidade.
Simultaneamente cancelou à ultima hora uma viagem aos EUA, programada
com antecedência, durante a qual deveria manter
conversações delicadas com a senhorita Condolezza Rice, a fogosa
assessora de Segurança de George W . Bush.
As ameaças cederam lugar a apelos públicos ao diálogo e
à concórdia. O estado de emergência foi revogado, o toque
de recolher também.
A chamada Declaração de Arequipa expressou um acordo
provisório. O governo comprometeu-se a suspender a
privatização das empresas até que a Justiça se
pronuncie sobre a legalidade do contrato e as acusações de
suborno que atingem a transnacional belga.
O documento é ambíguo como o discurso populista do presidente.
Mas qualquer que seja a evolução dos acontecimentos, as
populações do Sul do Peru tomaram consciência de que a sua
firmeza na luta travada em defesa de uma posição comum foi
decisiva para a vitória alcançada contra o governo central.
O saldo da repressão não será esquecido: um jovem morto,
dezenas de feridos, espancamentos, uma centena de prisões, sindicalistas
torturados.
A insurreição do povo de Arequipa repercutiu intensamente nos
países vizinhos do Peru, sobretudo no Equador, na Bolívia e na
Colômbia. Tendo no início um caracter espontâneo, aquilo
que era um movimento de forças elementares constituiu-se numa
ameaça ao Poder quando assumiu um caracter organizado através de
uma Frente unitária em que participaram diferentes partidos e
personalidades políticas de diferentes quadrantes ideológicos.
VELASCO NÃO FOI ESQUECIDO
Alguns analistas recordaram que todo o processo revolucionário deixa
sementes que podem germinar quando surgem condições
favoráveis.
O Peru -- convém lembrar -- foi cenário de
transformações de caracter revolucionário entre os anos 68
e 75 durante a Presidência do general Velasco Alvarado. Nesse breve
período desenvolveu-se a mais avançada Reforma Agraria que a
América continental conheceu até hoje e foram estatizados os
sectores estratégicos da economia. Uma medida radical e única
na América do Sul foi a expropriação dos grandes jornais
entregues a sectores sociais, como os Sindicatos, a Juventude, a Reforma
Agraria, os Jornalistas, etc.
Um dos grandes erros do processo foi o seu verticalismo paternalista. Velasco
e um grupo de generais e coronéis progressistas tentaram, no
fundamental, impor medidas revolucionarias que destruíam estruturas
capitalistas de uma sociedade oligárquica, sem promover a
participação popular. O SINAMOS, Sistema Nacional de Apoio
à Mobilização Social não funcionou; a sua
prática foi também, desde o inicio, paternalista. O povo peruano
-- sobretudo as massas indígenas -- nunca se sentiu sujeito de um
processo transformador que o libertava de formas de servidão quase
medievais, mas não soube mobilizá-lo para defender aquilo que
obtinha quase sem esforço, vindo de um Poder diferente do que se
conhecia na América Latina.
Muitos intelectuais, recorde-se, cumpriram, então, um papel negativo.
Distantes, desconfiados, os brilhantes sociólogos, historiadores e
cientistas políticos do Instituto de Estudos Peruanos e da Universidade
de São Marcos, incapazes de compreender o significado das medidas de
Velasco Alvarado que golpeavam o imperialismo e o poder económico da
oligarquia crioula preferiram elaborar teses fantasistas sobre a
impossibilidade de um governo de militares levar adiante um projecto de
significado revolucionário. Uns definiram o governo de Velasco como uma
ditadura militar, repetindo, afinal, o que a direita e Washington proclamavam;
outros, mais sofisticados, elaboraram teses sobre a natureza do regime,
qualificando-o de bonapartista ou neo-bismarkiano. Fervilhou então o
disparate teórico entre a talentosa
intelligentsia
académica peruana...
O desfecho foi o que se podia esperar. Sem o apoio organizado de um partido
de esquerda forte e de sindicatos bem implantados entre a classe
operária e as massas indígenas -- as grandes
transformações revolucionárias foram rapidamente anuladas
quando Morales Bermudez, um general reaccionário (que se mascarara de
progressista como ministro de Velasco ) assumiu a Presidência
através de um golpe palaciano, que a URSS saudou como positivo. O corpo
de oficiais acompanhou passivamente a marcha para a direita como antes
acompanhara, também passivamente, a política progressista de
Velasco.
A insurreição do povo de Arequipa traz à memória
lições importantes da história recente. Os que no Peru
combatem pela democracia autentica e pelo progresso não as esqueceram
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