As promessas dos veículos eléctricos e a realidade do Peak Oil

por Jorge F. G. de Figueiredo

O governo português anunciou alto e bom som o lançamento do seu projecto Mobi-E, um acrónimo de "mobilidade eléctrica". Com grande orgulho, os seus responsáveis declararam que este é o único projecto de veículos eléctricos (VEs) do mundo efectuado a uma escala nacional.

Em primeiro lugar, deve-se notar a audácia do governo português em lançar um projecto de VEs nesta escala quando mais ninguém o fez. Admitindo que este grande projecto tenha sido estudado maduramente em todos os seus aspectos, convém verificar se o Mobi-E pode atingir um dos seus objectivos: a redução da factura petrolífera nacional.

Como se sabe, o principal problema energético português é a extrema dependência do petróleo, a qual tem fortíssimas implicações macroeconómicas. Em 2009 Portugal importou 14,8 milhões de toneladas de petróleo, a um custo total de 4,8 mil milhões de euros (ou 6,7 mil milhões de dólares). O valor das importações de petróleo corresponde a cerca de 27% do défice da balança comercial portuguesa.

Esta dependência extrema do petróleo importado tem graves consequências e não é por simples acaso que os chamados países PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia, Spain ) são exactamente aqueles que estão mais dependentes do petróleo. Ver gráfico:

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Como também é bem sabido, 53% do petróleo importado por Portugal destina-se à produção de refinados para o sector dos transportes. Este sector depende em 99,1% de produtos petrolíferos – o afunilamento é praticamente total.

Então, pergunta-se, em que medida os VEs poderiam melhorar tal situação? Será que os VEs poderiam reduzir o consumo de refinados de petróleo em Portugal de modo significativo?

Há muitas razões para por em dúvida o potencial dos VEs para a redução do consumo de refinados de petróleo. Algumas delas são as seguintes:

1) Os veículos pesados com motores térmicos (camiões e autocarros) geralmente consomem cerca de cinco vezes mais combustível aos 100 km do que os veículos ligeiros. Ora, os VEs não são aptos para o transporte pesado – todos os VEs existentes ou que se cogita fabricar são veículos ligeiros.

2) Os veículos pesados habitualmente destinam-se a utilizações profissionais e por isso rodam muito mais horas por dia do que os veículos ligeiros. Assim, por isso e pela razão apontada em 1) eles são responsáveis por uma enorme fatia do consumo de petróleo e os VEs nada podem fazer quanto a isso.

3) Dentre as poucas utilizações profissionais de veículos ligeiros está o serviço de táxi. Mas seria impensável vir a substituir os táxis existentes por VEs, até mesmo devido ao tempo de carregamento das baterias: o carregamento normal de um VE demora 6 a 8 horas e o carregamento dito "rápido" demora 20 a 30 minutos! [1]

Dessa forma, por exclusão de partes, deduz-se que o mercado para os VEs em Portugal seria sobretudo o dos cidadãos particulares. Estes, na sua maioria, rodam pouco por dia (de 1 a 2 horas) e geralmente em viagens curtas (cerca de 30-40 km). Quanto poderiam poupar de combustíveis petrolíferos?

Diz o governo que até 2020 cerca de 10% do parque automóvel português seria eléctrico. Admitindo que isso possa ser alcançado (depende de investimentos pesados em infraestruturas e nos próprios carros), teríamos cerca de 500 mil VEs a circular em Portugal. Como já se viu, praticamente todos seriam ligeiros e destinados a cidadãos particulares ou empresas públicas. Assim, vejamos o seu potencial de substituição do petróleo na economia portuguesa.

Se estes ligeiros de particulares utilizassem motores térmicos com combustíveis líquidos cada um deles poderia gastar cerca de 720 litros/ano (rodando 1000 km/mês e gastando 6 litros/100 km). Assim, para os 500 mil veículos o total de combustível poupado seria da ordem dos 360 milhões de litros, o que equivale a 2.264.436 barris/ano ou 6204 barris/dia ou 310.197 t/ano de refinados de petróleo. Considerando uma eficiência média de refinaria de 95%, isto equivale a cerca de 326.523 t/ano de petróleo.

As importações de petróleo de Portugal em 2009 foram de 14.816.000 toneladas. Verifica-se assim que na melhor das hipóteses a poupança permitida pelos tais 500 mil VEs equivaleria a apenas 2,2% do petróleo bruto importado . Digamos que o programa governamental não é excessivamente ambicioso. E mesmo assim essa é a mais extremamente optimista de todas as possibilidades e tudo teria de correr o melhor possível (apetência dos particulares pelos VEs, resolução dos problemas tecnológicos inerentes às baterias e os dos próprios veículos, instalação de redes de tomadas eléctricas e assim por diante).

Na nossa opinião, os VEs até são simpáticos e perfeitamente adequados para determinados nichos de mercado. Nada nos move contra os VEs, não nos incluímos entre os seus detractores. Contudo, pensamos que não deveríamos exigir dos VEs aquilo que eles não podem dar, ou seja, não deveríamos pretender que resolvessem o nosso problema grave da extrema dependência do petróleo bruto importado. Tal dependência é crucial no momento em que se avizinha o fim do actual "plateau" da produção petrolífera mundial e o início do declínio da produção (2015?).

A nosso ver, o erro fundamental do governo português consiste em ignorar a famosa Regra dos 80-20. Se 20 por cento do parque de veículos do país respondem por 80 por cento do consumo de refinados, seria muito mais racional começar a atacar o problema por esse lado. É precisamente o que se passa em Portugal, em que os veículos pesados e os profissionais correspondem ao grosso do consumo. É por aí que se deveria atacar o problema. E é precisamente aí que a solução dos veículos a gás natural (VGNs) tem as respostas de que o país precisa.

A miopia governamental tem sido tão grande que canaliza recursos vultuosos para o projecto Mobi-E (exemplo: subsídio 25 milhões de euros, dando 5000 euros a cada um dos 5000 primeiros cidadãos que adquirirem VEs) e esquece completamente de avançar com os VGNs Isso demonstra-se, por exemplo, pelo facto de o QREN nem sequer prever apoios à aquisição de VGNs ou à instalação de postos de abastecimento de gás natural comprimido (GNC) e gás natural liquefeito (GNL). A Europa e o mundo todo avançam com celeridade nos VGNs, quase sempre com políticas de Estado a apoiarem tais projectos. Só nós aqui andamos a brincar com projectos simpáticos mas marginais em termos de resolução do grande problema nacional — a nossa desmesurada dependência do petróleo.

[1] Tecnicamente seria possível criar um esquema de substituição de baterias de modo que um "pack" ficasse a carregar enquanto o outro estivesse em uso. Mas isso exigiria a instalação de uma infraestrutura onerosa e uma duplicação do número de baterias, as quais podem custar cerca da metade do valor do carro.

O original encontra-se na revista VGN , nº 3 (44,3 MB).

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
03/Mar/11