As tecnologias de retaguarda

por John Michael Greer

Uma das piores armadilhas construídas na mitologia contemporânea do progresso, parece-me, é a noção de que o caminho para sair de qualquer dificuldade é continuar a andar pelo mesmo caminho, e fazer isso ainda mais depressa. Pode parecer óbvio que se você a ir por um beco sem saída, a única maneira de sair é voltar atrás. Mas não é preciso muita atenção na actual cena política para perceber que este bocado de senso comum está longe de comum neste momento.

Para ver um bom exemplo, ouçamos os sábios – um apreciável coro deles neste momento – a insistirem em que o único meio de trazer os preços em ascensão do petróleo, alimentos e outras commodities de volta à terra é avançar com o projecto da globalização económica. O problema aqui é que a globalização nunca foi mais do que um artefacto da fanfarronice final da era do petróleo barato — e quando esta era termina, também terminam os factores económicos que fizeram a globalização funcionar.

Durante o quarto de século de 1980 a 2005, o custo dos transportes era tão próximo do desprezível que parecia fazer sentido – e certamente fazia lucros – arbitrar custos trabalhistas com a construção de fábricas super-exploradoras da mão-de-obra em países do Terceiro Mundo e despachar os seus produtos através do globo para mercados no mundo industrial. Longe de ser a onda do futuro, como tantos dos seus promotores afirmavam, ou uma conspiração maligna, como tantos dos seus inimigos insistiam, era simplesmente a solução mais lucrativa numa equação em que os custos do combustível, os salários em vigor e o poder relativo das várias divisas constituíam os factores mais significativos.

Aquela equação agora está a mudar. Um recente artigo do noticiário observava que o custo do despacho de um contentor da China para a Europa agora é três vezes o que era antes de o actual preço do petróleo começar a reforçar-se, e que companhias estado-unidenses que haviam deslocalizado as suas linhas de produção para continentes distantes estavam começando a reabrir fábricas internas fechadas há muito para cortar nos custos de transporte. Quando a era do petróleo barato definhar no espelho retrovisor, companhias que escolherem a mesma estratégia prosperarão a expensas daquelas que se aferraram à miragem da economia global.

A mesma espécie de reversão, chego a pensar, pode afectar muitos outros aspectos da vida no futuro próximo, pois um grande número de ondas aparentes do futuro acabam por ser ajustamentos temporários à aberração de curto prazo que levou os preços da energia a mergulharem a níveis que, em dólares constante, nunca haviam atingido antes – e quase certamente nunca atingirão outra vez. Um grande número de exemplos vem à mente, mas o que gostaria de discutir aqui é a tecnologia.

Poucos aspectos da vida contemporânea estão tão pesadamente carregados com significado mítico como o modo como as tecnologias evoluem ao longo do tempo. É disto, mais do que qualquer outra coisa, que o moderno mito do progresso retira a sua força – a ainda há pelo menos dois processos muito diferentes agrupados sob a etiqueta de "progresso tecnológico".

O primeiro, progresso dentro de uma tecnologia particular, segue uma rota previsível conduzido pela evolução da própria tecnologia. Os primeiros protótipos toscos, experimentais e inconfiáveis são substituídos por modelos cada vez mais eficientes e confiáveis, até que emerge algo como um modelo padrão; a partir daí, mudanças na aparência e uma ligeira melhoria na eficiência constituem as variações que existem. Compare-se uma máquina de costura, um secador de roupas, ou um motor turbo-propulsor da década de 1960 com um saído hoje da linha de montagem, e na tecnologia subjacente as diferenças são praticamente ligeiras.

. A diferença jaz nos sistemas de controle. As máquinas de costura, secadores de roupa e turbo-propulsores da década de 60 utilizavam meios mecânicos relativamente simples de controle, guiados pela qualificação de operadores humanos. Seus equivalentes de hoje utilizam complexa electrónica digital, cortesia da revolução computacional, e exigem muito menos qualificação humana para funcionarem efectivamente. Numa máquina de costura da década de 1960, por exemplo, as casas dos botões são costuradas utilizando uma peça mecânica simples e bastante conhecimento e coordenação da parte da costureira; numa máquina moderna, quase sempre, o mesmo processo é efectuado a teclar uns poucos botões virtuais num écran e deixando a máquina fazer o serviço.

Mudanças desta espécie geralmente são consideradas sinais de progresso. Esta suposição fácil, contudo, pode exigir um segundo olhar. É verdade que os computadores primitivos disponíveis nos anos 60 teriam tido dificuldade em costurar uma casa de botão, e a ideia de por um dos enormes mainframes daquele tempo numa máquina de costura doméstica teria parecido ridícula. Mas a mudança dos controles mecânicos e das qualificações do operador pela electrónica digital não é uma questão de progresso numa tecnologia simples. Ela marca a substituição de uma tecnologia por outra.

É neste ponto que entramos na segunda dimensão da mudança tecnológica. Controles mecânicos e classes de economia doméstica não evoluem gradualmente para a máquina de costura digital. Ao invés disso, uma tecnologia expulsa outra. Além disso, ambas as tecnologias fazem uma tarefa igualmente boa na feitura de uma casa de botão. Os factores que levam à substituição de uma por outra são externos às próprias tecnologias.

No caso das máquinas de costura, tal como em tantas transformações tecnológicas semelhantes dos últimos 60 anos ou mais, a substituição de uma tecnologia por outra promoveu um processo único – a substituição da qualificação humana pela complexidade mecânica. O que conduziu isto, uma por uma, foi uma equação económica estreitamente paralela àquela que guiou a ascensão da economia global: o facto de que durante um certo período histórico, por todo o mundo industrial, a energia era mais barata do que o trabalho humano. Qualquer coisa que pudesse ser feita com uma máquina era portanto mais lucrativo fazer com uma máquina, e a única limitação à substituição do trabalho humano pela energia derivada do combustível fóssil era o refinamento dos sistemas de controle necessários para substituir a base de conhecimento e sistema nervoso de um trabalhador qualificado.

Para a maior parte das pessoas de hoje, tal equação ainda define o progresso. Uma tecnologia mais avançada, por definição, é aquela que exige menos qualificação humana e menos esforço para operar. A curva do progresso parecem então apontar para o género de fantasia de futuro completamente automatizado que costumava aparecer em muitas bandas desenhadas e caricaturas nos jornais de sábado.

Um dos grandes desafios mentais do futuro próximo, em contrapartida, consistirá em abandonar esta imagem do futuro e rever nossas expectativas para que se ajustem a uma realidade muito diferente. Por trás dos robots inteligentes que povoaram a imaginação colectiva, e os menos inteligentes mas mais tangíveis troços de automação doméstica mercadejados tão obsessivamente para as camadas médias nas últimas décadas, jaz a substituição da energia humana pela energia mecânica derivada principalmente de combustíveis fósseis. Durante a era da energia abundante e barata, isto fazia sentido económico, porque a energia – e as máquinas precisavam utilizá-la – era muito mais barata do que o trabalho qualificado que elas substituíam. Nas próximas décadas, quando a energia deixar de ser barata e abundante, aquela regra não vigora mais. O que aparentava ser a onda do futuro, aqui como alhures, pode bem revelar-se um ajustamento temporário a um fenómeno de curto prazo.

É difícil pensar num aspecto da vida moderna que não venha a enfrentar remodelação drástica resultante. O colapso da educação americana, por exemplo, foi uma consequência das mesmas forças económicas que colocaram computadores dentro de máquinas de costura; pois nas últimas poucas décadas era mais compensador transferir serviços de escrituração para computadores e equipar processadores de texto com correctores ortográficos do que ensinar as crianças americanas como fazer aritmética e escrever correctamente. No futuro, isto muito provavelmente não será mais verdadeiro, mas as extensas burocracias que dirigem a indústria da educação de hoje estão fracamente equipadas, e mesmo fracamente motivadas, para tratar da necessidade de ensinar as qualificações que serão necessárias para os humanos substituírem as máquinas.

Naturalmente, nem todas as máquinas precisarão ser substituídas ao mesmo tempo. Muitas tecnologias modernas, contudo, exigem quantidades muito grandes de energia que no futuro não estarão disponíveis de forma confiável. Muitas mais não poderão ser reparadas quanto se avariarem – durante a era da energia barata, era mais compensador jogar fora uma máquina quando se avariava, e comprar um novo modelo, do que pagar salários a um reparador. Além disso, os extraordinários níveis de interconexão que permeiam a tecnologia de hoje significam que a falha de um único componente que não pode ser substituído ou reparado pode inutilizar todo um sistema.

Provavelmente é demasiado tarde para evitar o futuro de falhas sistémicas que as opções do passado recente nos prepararam, mas muita coisa pode ser feita para mitigá-la. A primeira prioridade, parece-me, é precisamente escapar à dúbia suposição de que a espécie de tecnologia que era mais compensadora (cost-effective) numa era de energia abundante e barata será apropriada para a era de energia escassa e limitada que agora principia em torno de nós. A segunda é redirigir a nossa atenção e esforços para aquelas tecnologias melhor adequadas para as novas realidades do nosso futuro.

Dentre os recursos mais aplicáveis neste contexto estão precisamente as tecnologias que se afastam da moda destas últimas décadas extravagantes da era da abundância, e as qualificações necessárias para utilizá-las. Na nossa cultura, buscámos tecnologias de vanguarda por tanto tempo que comutar a atenção para tecnologias de retaguarda (trailing edge) pode parecer quase deliberadamente perverso. No entanto, aquelas tecnologias mais antigas que funcionaram efectivamente com inputs de energia relativamente modestos, e confiavam nas mãos e mentes humanas ao invés de energia e o recurso intenso à electrónica, podem vir a ser muito mais viáveis no longo prazo.

A máquina de costura da década de 60 – concebida para permitir a manutenção e reparação, construída com peças facilmente substituíveis, e relativamente fácil de converter para a energia dos pés no pedal se a electricidade escassear – provavelmente terá uma vida útil muito mais longa na era do declínio do que os modelos computorizados que hoje enchem as lojas. Do mesmo modo, um grande número de tecnologias retro – e as qualificações necessárias para utilizá-las, muitas das quais ainda podem ser aprendidas dos praticantes vivos de hoje – são valores a preservar. A questão, naturalmente, é quantas pessoas farão isso enquanto a oportunidade ainda existe.

O original encontra-se em http://thearchdruidreport.blogspot.com/2008/07/trailing-edge-technologies.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
06/Ago/08