A proposta de uma taxa fiscal global mínima para as
corporações
A seguir ao seu pacote de US$1,9 milhões de milhões
(trillion)
de socorro pelo Covid, a administração Biden anunciou ainda um
pacote de infra-estruturas de US$2,3 milhões de milhões. Mas em
contraste com o primeiro, que deverá ser gasto dentro de meses, o
segundo deverá ser gasto ao longo de um período de oito anos. E
este pacote, por sua vez, deverá ser seguido por um pacote de
"infra-estruturas humanas". Tudo isto constitui um estímulo
maciço para a economia, bem como um programa maciço de
redistribuição, especialmente porque o pacote de infra-estruturas
é proposto para ser substancialmente financiado através de um
aumento das taxas dos impostos sobre as corporações. Donald Trump
havia reduzido as taxas dos impostos sobre as corporações nos EUA
de 35% para 21% e Biden quer elevar a taxa fiscal para 28%, não
imediatamente, claro, mas ao longo de um período de tempo.
Após anos de neoliberalismo, isto representa um regresso a uma agenda
social-democrata, o que não se via há cinquenta anos. A forma
como este programa se desenrola, tanto os obstáculos diante de uma
agenda social-democrata no capitalismo de hoje, como também as
consequências da imposição simultânea de
"austeridade" sobre países do terceiro mundo, mesmo quando
medidas social-democratas são implementadas na metrópole,
serão observadas nos próximos dias. Mas aqui estamos preocupados
com um aspecto específico da mesma.
Os EUA não podem simplesmente, com impunidade, elevar de modo isolado as
suas taxas fiscais sobre o rendimento das corporações. Qualquer
aumento unilateral desta taxa fiscal encorajará uma
deslocalização da actividade dos EUA para outros países
onde as taxas de impostos permaneçam inalteradas e, em
consequência, tornam-se mais baixas em relação aos EUA.
Além disso, as empresas podem sempre apresentar lucros acumulados em
países que não são necessariamente as áreas da sua
actividade principal (que é como surgem os "paraísos
fiscais"). Assim, através da utilização de
práticas contabilísticas adequadas, mesmo que os seus lucros
resultem efectivamente de operações dentro dos EUA, podem sempre
afirmar que a fonte dos seus lucros está alhures e desse modo evadir-se
à taxa de fiscal mais elevada dos EUA sobre corporações.
Por conseguinte, os EUA não podem elevar a sua própria taxa
fiscal sobre o rendimento das corporações sem persuadir outros
países a fazerem o mesmo.
Uma sugestão neste sentido apresentada pela secretária do Tesouro
dos EUA Janet Yellen é ter uma taxa mínima global de impostos
sobre as corporações de 21 por cento. A tendência em todo o
mundo tem sido, de facto, a inversa. Como ela disse, tem havido uma
"corrida para o fundo" entre os países no que diz respeito
à taxa do imposto sobre o rendimento das corporações nas
últimas três décadas: a taxa média mundial do
imposto sobre o rendimento das corporações, que era de 40% em
1980, caiu para 24% em 2020, resultando numa perda considerável de
receitas fiscais. Ironicamente, a perda em percentagem do PIB é mais
elevada nos países de baixo e médio rendimento em
comparação com os países de elevado rendimento. Isto
deve-se ao facto de a percentagem das receitas fiscais das empresas no total
das receitas fiscais ser mais elevada para o primeiro grupo de países em
comparação com o segundo.
Devido a esta perda de receitas, os países do terceiro mundo ou
aumentaram o que obtiveram a partir de outras fontes, nomeadamente impostos
indirectos que têm um impacto regressivo; ou reduziram as suas despesas
com a educação, cuidados de saúde e programas de
assistência social para os pobres. Em qualquer dos casos, há
efectivamente uma redistribuição do rendimento dos pobres para os
ricos. Previsivelmente, o Banco Mundial e o FMI têm estado na vanguarda
deste movimento para baixar as taxas fiscais sobre o rendimento das empresas,
"aconselhando" os países do terceiro mundo a reduzir estas
taxas como meio de atrair maiores investimentos para as suas respectivas
economias, o que é a panaceia neoliberal para a superação
da sua pobreza.
No entanto, não há qualquer evidência a sugerir que a
escala do influxo de investimento directo estrangeiro para os países
pobres ou a taxa global de investimento nestas economias esteja de todo
correlacionada com as taxas de imposto sobre o rendimento corporativo. Isto
não é de surpreender: não há absolutamente nenhuma
razão teórica para esperar uma tal correlação entre
taxas de imposto sobre corporações e o influxo de investimento
directo estrangeiro ou a taxa global de investimento.
A magnitude do investimento destinado ao mercado interno realizado pelo sector
corporativo privado numa economia do terceiro mundo depende do crescimento
esperado da procura interna. A redução da taxa dos impostos sobre
as corporações apenas aumenta o montante dos lucros após
impostos das companhias mas não tem qualquer efeito sobre o crescimento
esperado da procura interna (de facto, se as despesas governamentais forem
reduzidas por causa disso, então o crescimento esperado da procura
interna diminuirá, dando origem a uma redução do
investimento privado das corporações). Uma redução
na taxa do imposto sobre as corporações, portanto, simplesmente
coloca mais dinheiro nos bolsos das empresas sem aumentar o investimento para o
mercado interno.
O investimento para o mercado global, por outro lado, depende do crescimento
esperado da procura mundial; e este também não é acrescido
através de uma redução das taxas dos impostos sobre as
corporações. Mesmo a alegação de que ocorre uma
maior deslocalização do investimento para o terceiro mundo se as
taxas do imposto sobre as corporações forem reduzidas, tem pouca
validade. A diferença entre as taxas salariais dos países
avançados e as do terceiro mundo, e portanto a diferença entre as
taxas de lucro na localização de uma fábrica no segundo em
comparação com os primeiros, é tão grande que
qualquer deslocalização que o capital metropolitano deseje
empreender acontece de qualquer forma; as alterações das taxas de
imposto na margem têm pouco efeito sobre ela. Localizar fábricas
no terceiro mundo, e em que medida, depende de outras
considerações como a disponibilidade de infra-estruturas, a
disponibilidade de uma força de trabalho instruída e treinada e
afins; dificilmente depende de ajustamentos das taxas de imposto na margem.
Entre os países capitalistas avançados, onde outras coisas, tais
como a disponibilidade de uma força de trabalho treinada ou de
infra-estruturas, são mais ou menos iguais, as alterações
nas taxas de impostos fariam uma diferença na decisão sobre a
localização das instalações (que é, afinal,
a razão pela qual os EUA não podem simplesmente tomar uma
decisão unilateral sobre a taxa de imposto sobre as
corporações); mas as alterações nas taxas de
impostos fariam pouca diferença no montante do investimento para o
mercado global que se pretenda localizar no terceiro mundo. Portanto,
não é surpreendente que o investimento corporativo total em
países do terceiro mundo e também o montante do influxo de
investimento directo estrangeiro tenham sido empiricamente considerados serem
insensíveis a uma redução da taxa do imposto sobre as
corporações nestes países.
Além disso, quando as taxas de imposto estão a ser reduzidas de
forma generalizada, na maior parte dos países do mundo, como parte da
"corrida para o fundo", qualquer vantagem que o terceiro pudesse ter
decorrente de uma redução da sua taxa fiscal é anulada por
uma redução semelhante noutros países.
Também a Índia tem assistido a uma redução
progressiva das taxas do imposto sobre o rendimento corporativo. De facto, a 1
de Abril de 2019, o governo anunciou novas taxas que baixaram o imposto sobre
as sociedades para as empresas que não procuraram quaisquer
incentivos/isenções de 30% para 22% (o que, juntamente com as
sobretaxas e a cessação da educação, chega a uma
taxa de imposto efectiva de 25,17%), e para as novas empresas de 25% para 15%.
A proposta de Janet Yellen, seria de esperar, deveria ter sido bem acolhida
pela Índia, uma vez que põe fim à queda livre das taxas do
imposto sobre o rendimento das corporações. Mas, estranhamente, o
governo indiano tem permanecido notavelmente reticente em subscrevê-la. A
única explicação que se pode pensar para esta
reticência é que o governo Modi, ao contrário da
administração Biden, não está interessado em
adoptar quaisquer medidas de bem-estar para o povo, que não está
interessado em prosseguir qualquer agenda social-democrata e que continua a ser
um devoto do falso argumento de que a redução das taxas de
imposto sobre as empresas aumenta o investimento e o crescimento, utilizando
esse argumento para enriquecer os seus acólitos.
Apesar do apoio de muitos países capitalistas avançados, a
proposta Yellen não tem sido geralmente aceite dentro do círculo
de países nos quais a tomada de decisões sobre esta
questão permanece até agora confinada. Em vez de as
Nações Unidas terem uma discussão sobre esta
questão envolvendo todos os países e chegarem a alguma
conclusão acordada, o que deveria ser o curso lógico num mundo
pós-colonial de iguais, são apenas os G-20 e outros fóruns
ricos que estão a decidir acerca da questão e a relegarem os
demais países a aceitar a sua decisão.
Devido à oposição dentro deste círculo restrito,
mesmo os EUA parecem estar a suavizar a sua demanda, dos 21% de taxa
mínima global de imposto sobre as corporações, tal como
inicialmente proposto, para 15%. Resta saber qual seria o resultado final, mas
estamos claramente a assistir ao fim da fase neoliberal do capitalismo mundial.
30/Maio/2021
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2021/0530_pd/proposal-minimum-global-corporate-tax-rate
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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