As finanças contra o povo
Por vezes mesmo uma pequena notícia obscura pode revelar enormidades
acerca do capitalismo. Como é bem sabido, o mercado de
acções indiano está pujante neste momento: as 30
acções do Sensex fecharam numa nova alta de 38.278,75 na
segunda-feira, 20 de Agosto, e nesse dia o indicador mais vasto do Nifty cruzou
a marca dos 11.500 pela primeira vez. Um dos executivos do sector financeiro
explicou a razão por traz deste boom da seguinte maneira (
The Hindu,
21/Agoto): "A única diferença entre este momento (em
relação a poucos meses atrás) é que a
política parece mais estável as perspectivas de uma
coligação oposicionista parecem um pouco duvidosas". Estes
executivos do sector financeiro sabem muito pouco acerca da macroeconomia e
quando falam sobre o assunto, como é frequente, eles meramente exprimem
platitudes neoliberais. Mas conhecer acerca do "mercado" é o
seu dia-a-dia; de modo que as visões do mencionado executivo devem ter
alguma verdade por trás.
Isto não quer dizer que o "mercado" agora acredite que uma
"coligação da oposição" não
acontecerá de modo algum. Os movimento do "mercado" de hoje
reflectem não o que está em vias de acontecer daqui a meses ou
anos, mas sim o que é provável que hoje ou nesta tarde. Mesmo um
recuo efémero e temporário em esforços para uma
"coligação opositora" entusiasma o "mercado".
Isto impulsiona o mercado porque as pessoas compram acções na
esperança de venderem-nas a um preço mais alto amanhã, a
alguém que possa ainda estar entusiasmado o suficiente amanhã
para comprar na crença de que possa por sua vez vender a algum outro
depois de amanhã a um preço ainda mais alto. A questão
portanto não é a previsão do "mercado" quanto ao
resultado da eleição de 2019; a questão é que uma
"coligação da oposição" amortece o
"mercado". Ou, dizendo isto de outro modo, o "mercado" ama
Modi e o [partido] BJP acima de todos os outros.
A pergunta é por que? Afinal de contas, Manmohan e Chidambaram
não são menos "amistosos para com o mercado" do que
Modi e Sha. Então porque o "mercado" tem esta parcialidade
para com os anteriores? Porque ao contrário do Congresso, que é
um partido de liberais burgueses antiquados a tentar manter o seu rebanho junto
através de toda espécie de negociações e
compromissos mesmo quando permanece firmemente comprometido com o
neoliberalismo, o regime Modi-Sha é simultaneamente implacável na
generalidade e
implacavelmente neoliberal.
E o "mercado" gosta de regimes com
estas ambas qualidades,
regimes que sejam implacavelmente pró corporativos
e também
suprimam implacavelmente toda dissidência e portanto a
dissidência contra grandes corporações.
O "mercado", em suma, tem uma antipatia fundamental em
relação à democracia. Ele ama o autoritarismo e ama ainda
mais o comunal-autoritarismo, porque o segundo, ao contrário do
"mero" autoritarismo, também está imbuído de uma
ideologia com um apelo de massa potencialmente poderoso o qual é
simultaneamente desagregador e anti-esquerda e desvia a
atenção do povo das condições abissais da sua
existência material. Se bem que todos os partidos burgueses no
país sejam neoliberais, os elementos do
Hindutva
emergiram portanto como os queridos das grandes corporações,
tanto internas como estrangeiras. Eles têm feito isso, não
só porque estão a governar o país como se houvesse uma
Emergência não declarada como também porque a sua
actuação está associada a um apelo ao
"nacionalismo"
Hindutva
que pode obter um certo grau de apoio de massa.
Eles podem suprimir oponentes do regime; mas podem também, além
disso, empaná-los como "anti-nacionais" o que transmitir
convicção junto a algumas pessoas, especialmente com o apoio
oferecido ao regime pelos media dóceis. Este facto da sua
"utilidade" é quase instintivamente internalizado por todo os
"participantes do mercado", razão pela qual o Sensex sobe com
a simples menção de qualquer recuo de movimentos políticos
anti-BJP.
Apesar de Modi e Sha terem elevado a sua posição pró
corporatista a novas alturas, ao ponto de Modia louvá-la aberta e
orgulhosamente, a parcialidade aberta do BJP para com o grande capital e
recíproco amor deste último para com o BJP não são
fenómenos novos; eles também estavam ali anteriormente. De facto,
quando, para surpresa de todos, o governo NDA de Atal Behari Vajpayee foi
derrotado nas eleições de 2004 (uma vez que o eleitorado
não pensava que "a Índia brilhava" como afirmavam
Vajpayee e Advani), não só o mercado de acções caiu
como também foram levantadas perguntas no mundo corporativo acerca da
razão porque a Índia gastava tanto tempo com
eleições tão frequentes!
O
Wall Street Journal
saiu-se de facto com a mais bizarras das ideias. Um artigo nele publicado
argumentava que a decisão acerca de quem deveria governar um país
deveria ser deixada não apenas ao povo desse país, mas a todas as
partes interessadas (stake-holders)
desse país, incluindo os investidores estrangeiros que haviam investido
tanto dinheiro no país. Portanto, investidores institucionais
estrangeiros e corporações multinacionais que têm projectos
no país também deveriam determinar quem deveria formar o governo
e não apenas o povo.
Isto foi um exemplo notável de inversão da razão, ou o que
Marx havia chamado de "reificação", quando
relações sociais aparecem numa forma invertida. O ideal da
democracia é que o povo deve decidir as disposições
sociais sob as quais ele vive. A propriedade privada, incluindo a forma
extremamente concentrada da finança globalmente móvel, a qual
surge na época actual, é uma disposição social cuja
existência e operação deve idealmente ter a
sanção do povo numa democracia. A soberania do povo é
primária; disposições sociais podem derivar sua
legitimidade, se alguma, só da vontade do povo soberano. Dizer que as
finanças devem ter um voto juntamente com o povo porque todos eles
são "partes interessadas" é colocar
criações do povo, nomeadamente as disposições
sociais, acima (ou pelo menos a par) do próprio povo, que é o que
a reificação implica.
Mas o que toda esta atitude revela, antes e hoje, é a profunda antipatia
das finanças em relação à democracia. As
finanças, quando forçadas a tolerar democracia, procuram
subvertê-la pela utilização de grandes quantias de dinheiro
em eleições, pela utilização desenfreada e
inescrupulosa dos media controlados pelas corporações e pela
mercantilização geral da política e dos políticos.
Quando por acaso, apesar de todos estes esforços, acontece ser eleito um
governo comprometido com uma agenda diferente daquela aprovada pelas
finanças, ela torna qualquer transição para um regime
económico alternativo tão difícil, através de todo
um conjunto de medidas que vão desde a fuga de capitais até a
imposição de sanções pelas potências
metropolitanas, que o novo governo é habitualmente forçado a
abandonar a sua agenda alternativa e fazer as pazes com as finanças.
Mas do seu ponto de vista é extremamente conveniente uma
situação em que um governo que lhe é extremamente
próximo consegue perpetuar-se no poder pela utilização de
uma retórica religiosa que distrai o povo dos seus problemas
quotidianos. Num caso assim, as finanças dominam dentro da fachada da
democracia mesmo quando o povo é incitado a centrar-se no ódio a
alguma infeliz minoria, ao mesmo tempo que aceita este domínio das
finanças.
"Finanças contra o povo", em suma, não é algo
confinado apenas ao âmago da economia. Naturalmente a hegemonia das
finanças, a qual manifesta-se num processo implacável de
acumulação primitiva de capital através de um assalto aos
pequenos produtores e à agricultura camponesa, a qual incha o
exército de trabalho de reserva, tem o efeito de piorar, em termos
absolutos, as condições materiais do povo trabalhador, isto
é, dos trabalhadores urbanos, trabalhadores agrícolas,
camponeses, pescadores, artesãos, pequenos comerciantes e outros. Mas
este conflito necessariamente transcende as fronteiras do âmbito
económico para abraçar o âmbito da sociedade
política
(polity).
As finanças querem que o poder do povo seja reduzido. E uma vez que a
democracia, apesar de todo o seu enfraquecimento, proporciona algum poder ao
povo, as finanças querem democracia reduzida ou, melhor ainda, abolida.
Esta simples proposição é ignorada pelo pensamento
liberal, o qual professa sua crença tanto na democracia como no
capitalismo neoliberal cuja principal característica é a
hegemonia das finanças. Há contudo uma contradição
irreconciliável entre os dois, o que é apenas uma
expressão do irreconciliável antagonismo de classe que
caracteriza o capitalismo. Esse facto brilha fugazmente quando o
"mercado" mostra exuberância com a remoção de um
desafio ao comunal-autoritarismo. Mas este facto é central para o
capitalismo.
26/Agosto/2018
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/0826_pd/finance-versus-people
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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