A pauperização por trás da recuperação

por Prabhat Patnaik [*]

Apesar de se referir especificamente à realidade indiana este artigo pode ter uma leitura mais geral.   A argumentação apresentada pelo governo do sr. Modi é igual ou semelhante à de muitos outros governos reaccionários do mundo todo.   Quando eles dizem haver alguma recuperação económica – após uma queda vertiginosa – esta é acompanhada por uma pauperização dos povos.   Não há um retorno à situação anterior e sim um agravamento das condições dos trabalhadores.   Assim, esta análise lúcida e rigorosa de Patnaik é válida também para outros países.   É por esta razão que resistir.info a publica.

Ministros que vão desde Narendra Modi até Nirmala Sitaraman estão a falar acerca da recuperação da economia indiana da crise induzida pela pandemia. Mesmo o banco central da Índia (RBI), o qual estimou que no segundo trimestre o crescimento do PIB foi de -8,6 por cento, viu sinais de recuperação no mês de Outubro.

Naturalmente tinha de haver uma recuperação do abismo profundo para o qual o confinamento havia empurrado a economia, pois algum grau de normalidade retornou. Isto não é reflexo de qualquer virtude do governo. Mesmo a queda de 8,6 por cento no PIB do segundo trimestre (em comparação com o período homólogo do ano anterior), representa um retorno em direcção à normalidade à luz da queda de 23,9 por cento no PIB do primeiro trimestre, em comparação mais uma vez com o período homólogo do ano anterior.

Mas apesar de a economia, não surpreendentemente, estar a ascender para fora do abismo, quão longe subirá depende da natureza da própria ascensão. E aqui a conclusão inescapável é que como a recuperação é acompanhada por remoção significativa do trabalho e por um esmagamento da taxa salarial por hora de trabalho, levando a uma ascensão na taxa de mais-valia, ela será abortada em breve.

O número do RBI de uma queda de 8,6 por cento no PIB no segundo trimestre de 2020 é uma estimativa econométrica, não estatística, da espécie que o Gabinete Nacional de Estatística (NSO) do governo apresenta normalmente. A primeira, ao contrário da segunda, depende de um exercício de modelização no qual foram alimentados alguns dados limitados. Ainda assim, é pouco provável que as estimativas do NSO fiquem demasiado longe das que o RBI forneceu. Mas as estimativas da Organização Internacional do Trabalho para o mesmo trimestre Julho-Setembro de 2020 mostram que no Sul da Ásia, onde a Índia tem um peso esmagador, houve uma queda de 18,2% nas horas trabalhadas em comparação com o trimestre de Outubro-Dezembro de 2019; pelo que podemos esperar que tenha ocorrido uma queda aproximadamente semelhante em comparação com o trimestre de Julho-Setembro de 2019. A queda do PIB entre Julho-Setembro de 2019 e Julho-Setembro de 2020 pode portanto ser considerada certamente muito inferior à queda das horas trabalhadas para produzir este PIB. Ou, apresentando as coisas de forma diferente, a recuperação do abismo para o qual o confinamento havia empurrado a economia foi acompanhada por uma redução considerável do volume de mão-de-obra por unidade de PIB.

Esta redução obviamente não foi causada por qualquer progresso tecnológico da espécie que poupa mão-de-obra, uma vez que estamos aqui a falar de um período demasiado curto para o progresso tecnológico. Assim, só pode haver duas explicações possíveis para este fenómeno de a recuperação do PIB do abismo em que caíra ser maior do que a recuperação das horas de trabalho prestadas.

A primeira é através de uma redução do trabalho da categoria "despesas gerais" que anteriormente não era redutível. Qualquer redução observada no input mão-de-obra pode ter sido conseguida economizando estas despesas gerais as quais consistem acima de tudo de mão-de-obra assalariada. Os trabalhadores assalariados, e mesmo um segmento dos trabalhadores com remuneração horária, cujos pagamentos não costumam variar de acordo com a quantidade de produção, mas constituem uma componente das despesas gerais, são agora tratados em pé de igualdade com os trabalhadores contratados: são reduzidos quando a produção é reduzida devido ao confinamento.

O segundo meio pelo qual uma recuperação na produção pode ser acompanhada pela redução do input de trabalho por unidade de produção é se se verificar uma mudança na composição sectorial desta produção, isto é, se a recuperação for concentrada em sectores com mais baixos inputs de trabalho, ao passo que aqueles sectores que são mais trabalho-intensivos continuam a arrastar-se. Há boas razões para acreditar que isto deve ter desempenhado um papel importante uma vez que o sector informal fora da agricultura, o qual é altamente trabalho-intensivo e foi atingido duramente pelo confinamento, ainda está por recuperar, enquanto qualquer recuperação que tenha ocorrido está confinada principalmente ao sector corporativo da economia, tanto público como privado, que é menos trabalho-intensivo.

Além do aparentemente reduzido input de trabalho por unidade de PIB, há também uma redução nas taxas salariais. O próprio relatório do banco central declara que o sector corporativo tem estado a cortar custos. Um elemento muito importante de tais cortes de custos é a redução no custo do salário horário (wage-cost), o qual ascende por causa da redução nas horas trabalhadas por unidade de produto e também nos ganhos por hora trabalhada. É por causa de tais cortes de custos que há, pela primeira vez após vários meses, um lucro líquido positivo neste sector. Este decorreu do facto de as vendas terem-se recuperado ao passo que os custos não aumentaram de modo correspondente.

Agora, se o sector informal continuar a mofar, então isto significa considerável perda de empregos. De igual modo, se houver redução de trabalhadores assalariados, ou um corte salarial imposto sobre a massa de trabalhadores, sejam eles de colarinho azul ou branco, então isto significa perda de rendimento por hora de trabalho. Estes dois caminhos implicam uma redução no rendimento do trabalho por unidade de PIB, isto é, uma pauperização (immiserisation) absoluta dos trabalhadores no processo da recuperação do PIB do abismo induzido pelo confinamento. Mesmo quando a recuperação do PIB ainda se mantém abaixo do nível pré-pandemia, a média das condições de vida do povo trabalhador permanece numa ainda maior extensão abaixo do nível pré pandemia. Isto implica um aumento da taxa de mais-valia no próprio processo de recuperação.

Duas pequenas evidências confirmam este quadro. Uma, já mencionada, é a ascensão drástica dos lucros operacionais do sector corporativo, como se revela no desempenho das 887 companhias não-financeiras listadas em bolsa que representam quatro quintos da capitalização total de todas as companhias não-financeiras listadas. Comparando um trimestre com o trimestre homólogo do ano anterior, o Boletim mensal do banco central diz: "As despesas destas companhias... caem mais rapidamente do que as vendas no trimestre terminado em Setembro de 2020, o que resulta numa ascensão drástica dos lucros operacionais após dois trimestres consecutivos de contracção".

A outra evidência é o aumento drástico do número de pedidos de emprego sob o MGNREGS . Este número aumentou em 91,3 por cento em Outubro, o que é uma indicação da inacessibilidade de empregos alhures. Tem havido uma migração reversa da cidade para o campo durante o confinamento e qualquer que seja a reanimação que esteja a ocorrer na economia ela não melhorou a super-saturação de empregos em mercados rurais decorrente desta migração reversa. Isto também dá crédito à sugestão feita acima de que o sector informal urbano do qual veio a maior parte destes migrantes ainda não está a testemunhar qualquer recuperação significativa.

Se no entanto estiver a ocorrer alguma recuperação apesar da pioria absoluta das condições dos trabalhadores em relação ao PIB, a razão para isto deve ser que a procura por bens de consumo é sustentada pela tomada de empréstimos ou pela utilização de reservas de cash. Mas isto não pode perdurar por muito tempo. O agravamento absoluto da condição dos trabalhadores devido ao desemprego e rendimentos reduzidos em breve deve afectar a procura por bens de consumo e, portanto, a procura agregada. Neste ponto a recuperação chegará a um fim.

Apesar de repetidas alegações de economistas e grupos da sociedade civil, e de vários partidos políticos, incluindo acima de tudo a esquerda, o governo Modi nada faz para colocar poder de compra nas mãos do povo. A advertência de que não fazer isso põe a pique a recuperação tem caído em ouvidos moucos. A maior parte das medidas anunciadas nos pacotes de estímulo apregoados pelo governo de tempos em tempos, incluindo o mais recente, além de serem absolutamente reles, tratam primariamente da tarefa de tornar a vida mais fácil para os capitalistas. Mas não importa quão fácil a vida seja feita para eles, não importa quão grande se verifique uma medida no índice da "facilidade-de-fazer-negócios" da Índia, os capitalistas não vão investir neste país a menos que haja um aumento na procura agregada.

O vigor com que o coronavírus tem feito um reaparecimento em lugares de onde aparentemente havia desaparecido, e o facto de nem mesmo temporariamente ter desaparecido em muitos países inclusive notavelmente os Estados Unidos, sugere que a recuperação através de um aumento nas exportações líquidas simplesmente não é possível.

Portanto, a única possibilidade de reanimar a economia é através de um aumento da procura, especialmente a procura do consumidor, internamente. Isto é importante tanto para o bem-estar do povo apanhado nas garras de uma pandemia como para a reanimação da economia. Mas o governo não tem feito virtualmente nada para reanimar tal procura. Ao contrário, verificamos um aumento da mais-valia a acompanhar mesmo a limitada recuperação que tem ocorrido, a qual está destinada a travar esta recuperação.

22/Novembro/2020

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2020/1122_pd/immiserisation-behind-recovery
Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
24/Nov/20