O chamado "interesse dos consumidores"
Na sequência da tomada de controle da
Flipkart
pela
Walmart
, ouve-se mais
uma vez um argumento frequentemente já antes encontrado, nomeadamente de
que ter uma grande multinacional nesta esfera, a qual pode fazer
aprovisionamento global dos seus produtos, irá torná-los mais
baratos para os compradores [finais] e é portanto é do
"interesse dos consumidores". Este argumento é tão
velho que remonta mesmo aos tempos coloniais, quando muitos diziam que
importações da Grã-Bretanha as quais haviam
provocado a desindustrialização interna pela dificuldade de
competir dos artesãos locais haviam tornado baratos bens de
consumo e eram portanto do "interesse dos consumidores", na verdade
do interesse dos camponeses uma vez que eles constituíam numericamente o
grosso dos consumidores dos produtos importados. A alegação de
que a importação de bens de todo o mundo pela Walmart para vender
mais barato no mercado indiano serve os "interesses dos consumidores"
é uma mera repetição deste velho argumento.
Há duas coisas erradas com este argumento. A primeira é que,
mesmo assumindo a sua validade, ele equivale a dar prioridade ao interesse dos
consumidores em relação ao dos produtores locais. Na verdade,
equivale a dar um certificado de legitimidade ética à
própria ideia de um "interesse dos consumidores" que
está totalmente despreocupada com a situação
difícil dos produtores locais. Este último ponto foi salientado
por Gandhi há muito tempo atrás quando escreveu: "É
pecaminoso comprar trigo americano e deixar o meu vizinho comerciante de
cereais morrer de fome por falta de clientes. Analogamente, para mim é
pecado usar atavios elegantes da Regent Street quando sei que, se tivesse
vestido as coisas tecidas pelos fiandeiros e tecelões vizinhos, isso
teria vestido a mim e alimentado e vestido a eles". "Pecado" na
linguagem de Gandhi é o que nós chamaríamos eticamente
inaceitável. A sua objecção, no terreno ético,
é quanto à aceitação de um conceito de
"interesse dos consumidores" sem qualquer preocupação
com a situação difícil dos produtores locais.
O segundo problema com este argumento do "interesse dos consumidores"
é analítico, distinto do ético. Ele assume, de modo
totalmente errado, que "consumidores" são uma entidade
distinta dos produtores locais os quais são deslocados por
importações mais baratas. Aqueles que são deslocados
também são consumidores. E mesmo se assumirmos que há
alguns
consumidores que não são imediatamente afectados pela
deslocação dos produtores locais, isto é, que ficam
realmente em melhor situação no imediato devido a
importações mais baratas dos bens que consomem, eles podem no
entanto ser afectados negativamente
durante um período de tempo
pelo deslocamento de produtores locais.
O exemplo da desindustrialização colonial, mais uma vez,
deixará claro este ponto. Quando tecedeiras manuais foram deslocadas
pela importação de vestuário de algodão barato
vindo da Grã-Bretanha, teria parecido no imediato que os camponeses
haviam ficado em melhor situação: eles afinal de contas
não estavam a ser deslocados, enquanto por outro lado os bens que
consumiam se haviam tornado mais baratos. Mas a deslocação das
tecedeiras manuais (e de outros artesãos) levou, não de imediato
mas ao longo do tempo, a um aumento da pressão da
população sobre a terra. No decorrer do século XIX houve
um aumento na magnitude da renda e um declínio na magnitude dos
salários reais na Índia, os quais realmente pioraram a
situação dos camponeses e trabalhadores agrícolas.
Portanto a aparência de uma melhoria nas suas condições
devido a importações mais baratas, sem dúvida bastante
válida no imediato, foi uma ilusão se considerarmos um
período de tempo mais dilatado. A única classe na Índia
britânica que se beneficiou de modo totalmente inequívoco com o
facto da desindustrialização foi a classe dos
proprietários
(landlords),
os quais se beneficiaram tanto com as rendas mais altas como com as
importações mais baratas.
Em suma, aqueles que parecem beneficiar-se enquanto consumidores com
importações mais baratas introduzidas pelas multinacionais devido
ao
efeito preço
imediato também tendem a perder, se não de imediato pelo menos
ao longo do tempo, com
efeito rendimento
adverso de tais importações baratas. A complexidade deste
quadro, onde não há "consumidores" puros completamente
distintos dos produtores deslocados, e não afectados pela
situação destes últimos, é ignorada por todos
aqueles que olham apenas o efeito preço sem olhar para o efeito
rendimento. E aqueles que têm argumentado em favor da invasão do
mercado indiano por retalhistas multinacionais pertencem a esta categoria.
Portanto há dois argumentos
separados
contra a tomada de controle do mercado retalhista indiano por entidades como a
Walmart. Uma que tem sido amplamente discutida é que desloca um vasto
número de pequenos
comerciantes.
Isto é a contrapartida exacta, e análoga, da
desindustrialização testemunhada no período colonial,
excepto que estamos a falar aqui não do sector industrial mas sim do
sector de serviços, isto é, do comércio a retalho. O
segundo argumento é que enquanto os pequenos comerciantes compram seus
bens a produtores locais, as multinacionais comprariam os seus por todo o
globo, aos produtores mais baratos, o que significa que produtores locais (e
não apenas comerciantes locais) seriam deslocados. Temos em resumo dois
processos distintos de desindustrialização provenientes da
invasão do mercado indiano pelos gigantes multinacionais do retalho.
Ambos produziriam desemprego e reduziriam o nível da actividade interna.
E um argumento em particular que se apresenta contra esta
afirmação, nomeadamente de que produtores internos serão
então forçados a cortar custos e tornarem-se mais
"eficientes", é um absurdo pois cortar custos na sua
situação significaria simplesmente cortar na sua
subsistência, o que não é senão outro nome para o
que chamamos de "deslocamento".
Entretanto, há um segundo argumento que é avançado contra
a visão de que a entrada de retalhistas gigantes aumentará o
desemprego. O mesmo declara que apesar de o desemprego aumentar naqueles
sectores em que as importações seriam mais baratas do que as
cobradas por produtores locais, haveria de modo correspondente um aumento do
emprego naqueles sectores em que produtores locais cobrariam menos do que
alhures, pois então os retalhistas gigantes comprariam localmente aqui
para vender em outros países. Não será isto afinal de
contas o que significava a famosa "vantagem comparativa" de David
Ricardo? Os retalhistas gigantes multinacionais estão simplesmente a
realizar "vantagens comparativas" através do seu
aprovisionamento global de bens para venda. Se um país particular pode
produzir um bem de modo mais barato do que outros então aquele
país especializar-se-á na produção daquele bem
enquanto alguns outros países produzirão os outros bens que este
país estava a produzir anteriormente.
Este argumento também é completamente falacioso, tal como era o
argumento original de Ricardo o qual estava baseado na infame Lei de Say de que
uma economia capitalista nunca experimenta deficiência da procura
agregada. Dizer que diferentes países se especializam na
produção de diferentes bens e que não há problema
em qualquer país perca emprego por causa do tal aprovisionamento global
pressupõe no mínimo a Lei de Say. Uma vez que abandonemos a
suposição absurda da Lei de Say, torna-se claro que
o total do emprego mundial cairá em consequência do
aprovisionamento global.
O ponto principal do aprovisionamento global é que cada mercadoria
é comprada aos produtores que cobram o mínimo por ela. Este
embaratecimento de bens a nível global, uma vez que também deve
aumentar pelo menos até certo ponto as margens de lucro comparadas com
as da situação pré aprovisionamento global, é
logicamente o análogo exacto de um corte salarial global, isto é,
de uma mudança na distribuição de rendimento dos
produtores em toda a parte do mundo para os retalhistas gigantes. Essa
mudança acrescenta-se à mudança na
distribuição do rendimento dos pequenos comerciantes que
são deslocados pelos gigantes do retalho. Ambas as mudanças
implicam, tudo o mais permanecendo o mesmo, uma redução na
procura global e portanto na produção e no emprego globais.
Dito de modo diferente, para qualquer dado nível de investimento global
em termos reais (o qual não muda no curto prazo), uma vez que as
poupanças globais
devem
igualar o investimento global, e uma vez que o rácio das
poupanças extraídas dos lucros e maior do que as extraídas
dos salários, um aumento na fatia de lucro por unidade de produto deve
levar a uma redução no consumo e produção globais.
E o principal objectivo de retalhistas gigantes como a Walmart que cavalgam o
globo é elevar o montante de lucro por unidade de produto, tanto
através do deslocamento de pequenos comerciantes como através do
aprovisionamento global de produtos junto aos produtores mais baratos. (O
deslocamento de pequenos comerciantes tem um efeito adicional na
depressão da procura pois o rácio das poupanças sobre os
lucros é maior para os blocos de lucro maiores do que para os menores).
Numa tal situação, apesar de ser concebível que um
país particular possa não testemunhar uma queda no emprego, isso
só implica que algum outro país testemunhou uma queda no emprego
ainda maior. Numa situação em que o emprego global se contrai
devido às depredações de tais gigantes do retalho, um
país pode escapar a um declínio no emprego só se o fardo
for passado com ainda maior ferocidade a algum outro país.
Portanto, se possivelmente acontecer que a entrada da Walmart aumente o emprego
na Índia, então não há nada a aplaudir quanto a
isto. Significa apenas que algum outro infeliz país testemunhou uma
diminuição ainda maior no emprego. E alegar "interesse dos
consumidores" neste cenário para defender as
depredações de tais gigantes do retalho é
simplista
ao extremo.
20/Maio/2018
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemoycrac.in/...
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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