O "sumidouro" do capitalismo indiano
A desgraça para a qual centenas de milhares de trabalhadores migrantes
foram subitamente atirado pela decisão do governo de Narendra Modi de
anunciar um confinamento de três semanas com um aviso
prévio de quatro horas e zero planeamento destacou um aspecto
crucial da economia indiana. Este consiste no facto de que a aldeia, com a sua
economia baseada na agricultura e no sistema familiar, continua a permanecer a
base de apoio de dezenas de milhões de trabalhadores urbanos, os quais
estão expostos de modo perene às vicissitudes da vida sob o
capitalismo.
Quando subitamente eles foram destituídos de rendimento e de casa, sendo
literalmente lançados às ruas, a ideia avassaladora nas suas
mentes foi retornar às suas aldeias, ainda que isso envolvesse
caminhadas de centenas de quilómetros. Em entrevistas a jornalistas,
muitos disseram que com o retorno à aldeia poderiam pelo menos conseguir
algum emprego na ceifa de cereais. A aldeia, em suma, e o sector
agrícola, permanecem o "sumidouro" do capitalismo indiano.
Ao contrário do mito propagandeado pelos seus porta-vozes, o capitalismo
não absorve todos os pequenos produtores que ele desloca. A
acumulação de capital é invariavelmente acompanhada por
mudanças tecnológicas que poupam trabalho em tal extensão
que impede a absorção de todos aqueles que ela desloca,
juntamente com o aumento natural da força de trabalho. Ela é
portanto invariavelmente caracterizada pela existência de um
"sumidouro", um espaço que reúne toda a
população miserável, os destituídos. No capitalismo
metropolitano este "sumidouro" era fornecido pelas regiões
temperadas de colonização branca para as quais ocorria a
migração em massa da Europa. Nestas novas terras, os migrantes
conseguiam obter um razoável padrão de vida ao, por sua vez,
deslocarem os habitantes originais, os ameríndios, da sua terra.
No debate inglês clássico sobre a pobreza e a
revolução industrial, mesmo os que como Eric Hobsbawm
argumentavam que a pobreza havia aumentado após a
revolução industrial admitiram que as coisas haviam
começado a melhor na Inglaterra na década de 1820 e
atribuíram isto ao facto de a acumulação de capital
finalmente levar a uma redução da miséria. Contudo, de
facto não foi a acumulação de capital mas sim a
emigração a qual aumentou após o fim das guerras
napoleónicas que fez a diferença. O "sumidouro"
do capitalismo europeu, o qual afinal de contas acabou por não ser
tão penoso, era o "novo mundo", as regiões temperadas
de colonização.
Mas em colónias tropicais como a Índia, onde aqueles deslocados
pelo ataque do capitalismo não tinham para onde emigrar, o
"sumidouro" foi o sector agrícola interno, onde a dor e a
miséria continuaram a acumular-se juntamente com a
acumulação de capital na metrópole. Após a
independência, houve um interlúdio de dirigismo quando se
verificou algum aumento na produção agrícola per capita,
embora seus benefícios fossem desigualmente distribuídos entre as
classes rurais. Além disso, verificou-se um aumento das oportunidades de
emprego fora da agricultura que estava um pouco à frente da taxa de
crescimento da força de trabalho. Estes dois desenvolvimentos levaram a
uma melhoria marginal de padrões de vida dentro da agricultura, ao
contrário da pioria que estivera a ocorrer no último meio
século de domínio colonial. Mas agora estamos outra vez com o
capitalismo neoliberal quando aqueles no "sumidouro" estão a
testemunhar uma redução nos seus padrões de vida.
Nenhuma conversa sobre a Índia a emergir como uma
"superpotência económica", ou como uma "economia de
5 triliões de dólares" pode esconder este facto: que a
agricultura camponesa continua a ser um "sumidouro" ao qual os
trabalhadores urbanos aflitos regressam, e que os mesmos estão a
testemunhar um sofrimento crescente ao longo do tempo ao invés de serem
beneficiados por processo de acumulação de capital que afasta
trabalhadores. Por trás dos chamados "êxitos" da
economia indiana sob o neoliberalismo está esta angústia sempre
crescente dentro do "sumidouro" no qual ironicamente está
concentrada a maior parte da força de trabalho do país e que
determina, como argumentamos abaixo, as condições de toda a
força de trabalho indiana.
Uma implicação do facto de que a agricultura actua como um
"sumidouro" para a economia indiana é a seguinte. O poder
negocial dos trabalhadores indianos, incluindo mesmo os organizados,
está estreitamente associado aos rendimentos per capita da
população trabalhadora dependente da agricultura, isto é,
excluindo os latifundiários, os agricultores capitalistas e aqueles
camponeses ricos que diversificaram fora da agricultura.
Mesmo os trabalhadores sindicalizados na Índia não estão
totalmente desligados das suas raízes rurais e a sua capacidade para
fazer uma greve sustentada nos sectores em que estão empregados depende
muitas vezes do grau de apoio que conseguem obter a partir de "casa".
Depende, por outras palavras, das condições materiais que
prevalecem no país, pelo que tomamos como índice o rendimento
real per capita da população activa na agricultura.
Podemos portanto visualizar as condições de vida de todos os
trabalhadores da economia, constituída por trabalhadores, camponeses e
operários agrícolas, a moverem-se para cima e para baixo em
sincronia. O disparador deste movimento sincronizado pode vir tanto do lado do
crescimento agrícola como do lado do crescimento do emprego urbano e
ambos estão inter-relacionados. Se o rendimento agrícola real per
capita da população activa na agricultura diminuir devido
à retirada de apoios governamentais ao sector agrícola, isto
então provoca um movimento descendente sincronizado das
condições de todos os trabalhadores na economia. Do mesmo modo,
se a capacidade da economia urbana para proporcionar emprego descer abaixo
mesmo da taxa natural de crescimento da força de trabalho, então
haverá um movimento descendente sincronizado para toda a
população trabalhadora. Estes dois factores, como já foi
mencionado, estão inter-relacionados e sob o neoliberalismo
operam ambos os factores.
Mas isso não é tudo. Há uma dinâmica cumulativa sob
o neoliberalismo, a qual se mantém a pressionar a economia cada vez mais
na direcção de um agravamento dos padrões de vida dos
trabalhadores. Vamos assumir, para começar, que a capacidade da taxa de
crescimento que prevalece no sector não-agrícola para gerar
emprego caia abaixo da taxa de crescimento natural da força de trabalho.
Esta capacidade, pode-se recordar, depende não apenas da própria
taxa de crescimento mas também da taxa de progresso tecnológico
que a acompanha.
Se o crescimento natural da própria força de trabalho não
pode ser absorvido pelas oportunidades de emprego criadas pelo crescimento,
então as condições de vida da população
trabalhadora caem por todo o espectro. Isto significa necessariamente um
aumento da taxa de exploração na economia, o qual, em termos da
habitual contabilidade nacional do rendimento, é manifestada num aumento
na fatia do excedente económico no PIB total.
No entanto, a própria taxa de progresso tecnológico poupador de
mão-de-obra depende da proporção do excedente
económico no produto total, uma vez que o padrão de procura dos
que vivem do excedente está mais próximo dos estilos de vida
metropolitanos. Tais estilos de vida são não só muito
menos intensivos em termos de emprego como também estão sujeitos
a uma rápida transformação com novas maquinarias que
utilizam e reduzem o emprego. Assim, com um aumento inicial da taxa de
exploração, a tendência é para um novo aumento da
taxa de exploração.
Estamos a falar aqui do rendimento real per capita dos trabalhadores, de modo
que este aumento cada vez mais crescente da taxa de exploração
significa um agravamento dos seus padrões de vida absolutos, o que
representa um aumento da extensão da pobreza absoluta.
Isto é exactamente o que está a acontecer na Índia, onde a
proporção da população que não tem acesso
às normas nutricionais de referência utilizadas oficialmente para
definir a pobreza na Índia aumentaram durante o período
neoliberal. Estas normas, recorde-se, são de 2200 calorias por pessoa
por dia nas zonas rurais e de 2100 calorias por pessoa por dia nas zonas
urbanas. De acordo com o National Sample Survey, a proporção de
pessoas incapazes de aceder a este nível de referência na
Índia rural aumentou de 58 por cento em 1993-4 para 68 por cento em
2011-12. Do mesmo modo, a proporção de pessoas incapazes de
aceder à norma de 2100 calorias por pessoa por dia na Índia
urbana aumentou de 57 por cento para 65 por cento entre estas duas datas.
A pandemia do Covid-19 irá agravar grandemente a magnitude da pobreza,
uma vez que levará a um aumento maciço do desemprego urbano como
já está a acontecer. Mas o mecanismo através do qual este
aumento da pobreza ocorre em todo o espectro foi demonstrado durante o
confinamento, nomeadamente, pela migração em massa de volta
às aldeias daqueles que subitamente se tornaram indigentes nas zonas
urbanas.
19/Abril/2020
Ver também:
Migrant workers in India
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2020/0419_pd/%E2%80%9Csink%E2%80%9D-indian-capitalism
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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