A diretora executiva do FMI, Kristalina Georgieva, admitiu agora abertamente que o ano 2023 testemunhará o abrandamento da economia mundial a um ponto em que até um terço da mesma verá uma contração real do produto interno bruto. Isto porque todas as três maiores potências económicas do mundo, os EUA, a União Europeia e a China, testemunharão a um abrandamento, a última devido ao recrudescimento do Covid. Das três, acredita Georgieva, os EUA terão um desempenho relativamente melhor do que as outras duas devido à resiliência do seu mercado de trabalho. Na verdade, a maior resiliência do mercado de trabalho dos EUA proporciona alguma esperança para a economia mundial como um todo.
Há dois elementos irónicos nas observações de Georgieva. O primeiro é que as melhores perspectivas para a economia mundial de hoje, mesmo que o FMI o admita só implicitamente, residem no facto de os rendimentos dos trabalhadores nos EUA não caírem muito. Para uma instituição que tem defendido sistematicamente cortes nos salários, quer sob a forma de remunerações quer de salários sociais, como parte essencial das suas políticas de estabilização e ajustamento estrutural, esta é uma admissão surpreendente, embora bem-vinda. É claro que Georgieva, muitos argumentariam, encara a resiliência do mercado de trabalho dos EUA apenas como o resultado do desempenho económico dos EUA e não como a sua causa. Mas ao considerá-la uma "bênção" (embora não uma bênção não pura por razões que veremos em breve) não deixa dúvidas de que o papel de sustentação da procura dos rendimentos dos trabalhadores também está a ser reconhecido por ela.
Alguns podem argumentar que as políticas de estabilização com ajustamento estrutural do FMI são tipicamente destinadas a economias em crise, como um meio de ultrapassar tal crise, e não como uma panaceia para o crescimento, de modo que ver uma mudança no entendimento do FMI a este respeito pode ser injustificado. Mas o que o FMI está agora a dizer certamente está em desacordo com o que costuma dizer; está de facto a admitir que um mercado de trabalho resiliente nos EUA é benéfico para o seu crescimento, o que levanta a questão: porque é que outras economias também não deveriam tentar ter mercados de trabalho resilientes, mesmo quando estão em crise, e enfrentar as suas crises através de outros meios, mais diretos, como o controlo das importações e o controlo dos preços? Admitindo que a resiliência do mercado de trabalho dos EUA pode ser benéfica para a sua economia, e por conseguinte para a economia mundial como um todo, vai assim fundamentalmente contra o que o FMI geralmente apresenta, pelo menos nos atuais tempos neoliberais.
O segundo elemento irónico nas suas observações é o seu reconhecimento de que um tal mercado de trabalho resiliente, embora benéfico para o crescimento dos EUA, irá simultaneamente manter a taxa de inflação nos EUA, forçando o Federal Reserve Board a aumentar ainda mais as taxas de juro. Isto tem duas implicações claras. Em primeiro lugar, significa que a taxa de crescimento dos EUA, embora seja por enquanto menos afetada, será inevitavelmente restringida nos próximos meses à medida que a Reserva Federal aumentar a taxa de juro. O desempenho relativamente melhor dos EUA em 2023 não é, portanto, um fenómeno que irá perdurar muito tempo. Uma vez que qualquer mau desempenho dos EUA terá um efeito adverso sobre a economia mundial como um todo, isto equivale a dizer que a recessão mundial se agravará nos próximos meses, a menos que a situação do Covid na China melhore substancialmente. Por outras palavras, equivale a dizer que, mesmo que em 2023 apenas um terço da economia mundial enfrente recessão, uma parte muito maior da mesma cairá mais tarde vítima da recessão. Esta é certamente a mais terrível previsão feita sobre as perspectivas do capitalismo mundial na atual conjuntura por qualquer porta-voz importante do mesmo.
O Banco Mundial também tem alertado para uma recessão grave que paira sobre o mundo capitalista e tem discutido em particular as suas implicações para as economias do terceiro mundo. Em Setembro de 2022, publicou um documento no qual esperava um crescimento de 1,9% da economia mundial no ano de 2023. Mas tanto o FMI como o Banco Mundial atribuem a iminente recessão principalmente à guerra da Ucrânia e à inflação a que esta deu origem (e também de passagem à pandemia); a resposta a essa inflação sob a forma de um aumento generalizado das taxas de juro é o que está subjacente à atual ameaça de recessão. Não há reconhecimento por parte destas instituições de qualquer problema decorrente da economia neoliberal que possa estar subjacente à crise que se avizinha.
Esta análise, acima de tudo, é errónea. Muito antes da guerra da Ucrânia, a inflação havia levantado a cabeça quando a economia mundial começava a recuperar da pandemia. Nessa altura, tal inflação fora atribuída à perturbação das cadeias de abastecimento causada pela pandemia, embora muitos tivessem discordado desta análise mesmo então. Haviam salientado que, mais do que qualquer perturbação real, o recrudescimento da inflação se devia em grande parte ao aumento das margens de lucro por parte das grandes corporações, em antecipação da escassez. A guerra da Ucrânia ocorreu contra este pano de fundo de uma inflação contínua, e acrescentou-se-lhe de forma bastante desnecessária quando as potências ocidentais impuseram sanções contra a Rússia.
Um olhar sobre o movimento dos preços do petróleo bruto confirma esta conclusão de que a guerra da Ucrânia não é a génese do recrudescimento da inflação. O aumento dos preços do petróleo bruto Brent ocorreu principalmente em 2021, quando a economia mundial começou a recuperar da pandemia: o aumento entre o início de 2021 e o final desse ano foi de mais de 50%, de 50,37 dólares por barril para 77,24 dólares por barril; o aumento correspondente em 2022, durante o qual verificou-se a guerra da Ucrânia, foi de 78,25 para 82,82, ou seja, de 5,8%, o que é menos do que a taxa de inflação atual na maioria dos países capitalistas avançados, apesar de geralmente se afirmar que a inflação tem sido impulsionada pelos preços do petróleo. É verdade, imediatamente após a imposição de sanções contra a Rússia, os preços mundiais do petróleo subiram, atingindo um máximo de 133,18 dólares por barril durante 2022, mas depois desceram bastante abruptamente como vimos, de modo que culpar simplesmente a guerra da Ucrânia pelo aumento dos preços não só é enganador (uma vez que não é a guerra em si, mas as sanções é que foram responsáveis), mas também erróneo (uma vez que os preços deveriam ter descido quando o aumento de preços induzido pelas sanções diminuiu).
Não é apenas a análise das instituições de Bretton Woods que é enviesada. Ainda mais notável é o facto de não terem qualquer percepção, mesmo dentro dos termos da sua própria análise, de como esta recessão mundial vai acabar. Se, como eles acreditam, é a guerra da Ucrânia que é responsável pela crise recessiva que se aproxima, então deveriam, no mínimo, ter esperado um fim precoce da mesma. Contudo, isso é inaceitável para o imperialismo ocidental o qual pretende que a guerra se arraste para que a Rússia "sangre" até à submissão. É por isso que as instituições gémeas não exprimem opiniões sobre a necessidade de pôr fim à guerra. Mas ainda que optassem por permanecer em silêncio sobre a questão de acabar com a guerra, elas poderiam ter exprimido alguma opinião acerca do combate à crise inflacionária de alguma outra forma que não fosse através do aumento das taxas de juro e do desencadeamento de uma recessão. O FMI e o Banco Mundial estão, porém, tão empenhados em mercados livres que não podem contemplar qualquer outra medida de controlo da inflação (tal como o controlo direto dos preços), ainda que lamentem os efeitos recessivos da subida das taxas de juro.
Da mesma forma, mesmo que o presidente do Banco Mundial, David Malpass se compadeça com os países do terceiro mundo sobrecarregados de dívidas que vão ser gravemente atingidos nos próximos meses, e diga até que uma grande parte da sua carga de dívidas surgiu devido às elevadas taxas de juro em si, não há uma só palavra no seu discurso a favor da redução das taxas. Por outras palavras, ambas as instituições de Bretton Woods são prolixas para apresentar compaixões mas lacónicas quanto a medidas concretas para ajudar os pobres do mundo.
Isto não é apenas um sintoma de timidez. Aponta para algo mais profundo, nomeadamente o verdadeiro impasse em que o capitalismo mundial hoje se encontra. Para que a estrutura do imperialismo ocidental, tal como tem evoluído ao longo dos anos, se mantenha intacta, então os países metropolitanos têm de manter em andamento a guerra da Ucrânia, caso em que a inflação ao ritmo atual torna-se inevitável na ausência de uma recessão engendrada e do consequente desemprego. O facto de o capitalismo mundial enveredar por esta via não deve, portanto, causar qualquer surpresa; a questão é resistir-lhe.