A pressão para privatizar bancos
Desde o primeiro instante, sempre houve uma exigência para desfazer a
nacionalização da banca na Índia. Esta exigência,
naturalmente, ganhou impulso com a adopção das políticas
neoliberais. Para o capital financeiro transnacional era completamente
inaceitável que o grosso do sector bancário num país como
a Índia permanecesse sob propriedade pública. Consequentemente,
"amigos" da Wall Street que trabalhavam na
administração dos EUA, como Tim Geithner e Larry Summers,
visitaram a Índia e exigiram ao nosso governo que, mesmo se não
pudesse privatizar todo o sector bancário, pelo menos enviasse um
"sinal" privatizando o Banco do Estado da Índia.
O governo indiano no entanto objectou porque temia uma reacção de
ira popular. Mais recentemente, contudo, com o aumento de activos não
rentáveis
(non performing assets, NPA)
de bancos públicos, tem havido novas pressões pela
privatização da banca, com um antigo vice-presidente do Niti
Aayog pedindo mesmo a todos os partidos políticos que a inscrevessem na
sua agenda para as eleições de 2019.
Infelizmente para estes advogados da privatização, a vida real
revelou a vacuidade da sua argumentação
mesmo com base nas suas próprias premissas
quase imediatamente depois de eles a avançarem. Assim, o absurdo
da pressão de Summers-Geithner em favor da privatização
foi demonstrado pela crise financeira de 2008 nos EUA. Esta crise, embora
engolfasse grande parte do mundo capitalista, deixou o sistema bancário
indiano excepto o banco ICICI, do sector privado virtualmente
intacto, uma vez que o sector dos bancos públicos, motivados por um
diferente conjunto de objectivos, quase não possuía activos
estrangeiros, muito menos activos "tóxicos". Da mesma forma, o
recente argumento a favor da privatização dizendo que a
vigilância de accionistas privados asseguraria melhor
administração de bancos e não permitiria a espécie
de acumulação de NPA ocorrido nos bancos do sector
público, mostrou-se vazia pelo que aconteceu ao banco ICICI. A sua
executiva chefe foi acusada de "compadrio" ao imobilizar um grande
empréstimo para o grupo Videocon o qual ajudou os interesses de
negócios do seu marido. Ironicamente, os accionistas supostamente
"vigilantes" do banco ICICI nem mesmo lhe pediram para ir de
férias enquanto as acusações contra ela estavam a ser
investigadas. (Informações iniciais de que haviam feito isso
foram negadas posteriormente).
Toda esta pressão, embora tenha falhado em desfazer a
nacionalização, no entanto teve êxito em forçar uma
privatização rastejante dos bancos nacionalizados. Isto tem sido
efectuado com base num argumento completamente espúrio, abaixo descrito.
O capital de base dos bancos do sector público tem de ser fortalecido
para satisfazer as "normas" Basileia III. Mas uma vez que o governo
não tem recursos orçamentais adequados para fortalecer o seu
capital de base, e não deveria utilizar recursos orçamentais
escassos para esta finalidade mesmo se o tivesse, ele deveria obter capital
próprio do sector privado para assim fazer. A fatia accionária do
sector público consequentemente tem vindo a cair drasticamente dos seus
100 por cento originais.
Este argumento a favor da tomada de capital próprio privado é
completamente espúrio por várias razões: primeiro, o
fortalecimento do capital base pode ser exigido no caso de bancos privados, mas
dificilmente no caso de bancos do sector público, uma vez que toda a
gente tem certeza de que o governo sempre viria em socorro dos bancos se eles
enfrentassem uma crise. Vale a pena notar que mesmo recentemente, na esteira do
escândalo do Punjab National Bank, em que Nirav Modi fugiu com 130 mil
milhões de rupias dos recursos do banco, não houve pânico
com retiradas de depósitos do mesmo: os depositantes estavam confiantes
em que os seus depósitos estavam seguros no banco possuído pelo
governo. Portanto, a normas Basileia III não são de todo
relevantes para bancos do sector público.
Segundo, mesmo se o capital de base destes bancos tivesse de ser fortalecido,
os fundos não tinham de vir do próprio orçamento. Uma vez
que na rotina normal bancos não chegam a ser solicitados a recorrerem ao
seu capital de base, e apenas o possuem para um "dia chuvoso" que
nunca chega, se o governo pedisse emprestado a montante requerido para
capitalizar os seus bancos a partir do Banco de Reserva (RBI), então
aquele montante simplesmente permaneceria do RBI. Seria em suma uma pura
transacção contabilística do RBI, a qual, muito embora
aparecesse
como um défice orçamental no orçamento do governo, seria
apenas um défice nocional e
teria efeitos adversos zero sobre a economia.
Portanto, mais uma vez, não há razão real para ir ao
mercado de capitais a fim de fortalecer o capital base de bancos do sector
público.
Contudo, estes argumentos têm sido utilizados para efectuar uma
privatização rastejante. Mas a privatização
rastejante não é suficientemente boa para o capital financeiro
internacional. Ele quer a privatização total, não apenas
uma que abrasse um vasto montante de recursos financeiros para o seu controle,
mas também porque isso sublinharia o ponto ideológico, tão
crucial para o
modus operandi
da finança, de que o interesse social seria melhor servido não
pelo controle do Estado sobre a finança e sim pela concessão de
liberdade plena à finança, ou, dito de modo diferente, pelo
controle da finança sobre o Estado. E para esta finalidade, a crise NPA
dos bancos do sector público está a ser utilizada ao
máximo.
Mesmo que esta utilização seja marcada por argumentos
absolutamente espúrios. Dois pontos em particular devem ser observados
aqui. Primeiro, a razão mais importante para a crise NPA é o
"saqueio corporativo" dos bancos do sector público, num
contexto em que o governo tem aplicado pressão sobre estes bancos para a
concessão de grandes empréstimos ao sector privado destinados a
investimento em "infraestrutura".
A razão para o governo aplicar esta pressão é ela
própria um argumento espúrio, o qual é como se segue. O
governo não pode empreender o próprio investimento em
infraestrutura porque isso incharia o défice orçamental.
Portanto, este investimento tem de ser feito pelo sector privado e, para isto,
o financiamento bancário é essencial. Agora, se o governo
empreendesse este investimento então teria de tomar emprestado destes
bancos (que é como o seu défice orçamental seria
financiado). Portanto, este argumento equivale a dizer que se o governo tomasse
emprestado dos bancos para investir em infraestrutura então isso seria
mau para a economia, ao passo que se o sector privado toma emprestado dos
bancos para investir em infraestrutura então isso seria bom para a
economia, o que é uma proposição completamente absurda.
Mas, de qualquer modo, por causa deste argumento absurdo, o governo tem estado
a pressionar bancos para emprestarem enormemente ao sector privado corporativo
e várias destas corporações estão simplesmente a
furtar este dinheiro no que deve ser uma nova forma de acumulação
primitiva de capital. Do total de NPAs da ordem dos 8 a 9 milhões de
milhões de rupias, acredita-se que tomadores corporativos representam
cerca de 75 por cento do total. E 75 por cento destes empréstimos
corporativos, por sua vez, acredita-se constituírem puro roubo, isto
é, "saqueio corporativo" puro e simples, o qual portanto monta
a 56,25 do total de NPAs.
É um absoluto desaforo da parte dos advogados da
privatização exigirem que aqueles executaram este saqueio de
fundos bancários fossem premiados pelo proprietário dos
próprios bancos que eles saquearam, com o argumento de que os bancos
estão num estado lamentável (devido a este saqueio). O que
é necessário, ao contrário, não é a
privatização de bancos, mas a sua continuação como
entidades possuídas pelo Estado, argumento que permanece tão
válido hoje como o foi em 1969 quando os bancos foram nacionalizados,
juntamente com medidas punitivas contra aqueles que executaram este saqueio.
Incrivelmente, além de não tomar medidas punitivas, o governo nem
sequer revelou os nomes dos grandes incumpridores de empréstimos de
bancos do sector público
[NR]
. Ele não revelou estes nomes mesmo depois de os empréstimos
destes grandes incumpridores terem sido cancelados
(write off),
o que significa que os mesmos ficaram livres para contrair empréstimos
de outros bancos, mesmo quando se declaram impotentes quanto ao reembolso e,
dessa forma, obtêm prorrogações de alguns bancos.
Na verdade
todas
as medidas governamentais nesta esfera basearam-se em considerar a
firma
como o ponto de referência. Mas em todos os casos de incumprimento
deliberado, isto é, em que é estabelecido através de
investigação que o incumprimento é um caso de
"saqueio corporativo", a propriedade dos promotores deve ser
preservada, incluindo o que eles possuem através de outras firmas no seu
império. Este expediente muito simples seria um grande dissuasor contra
o saqueio corporativo e também recuperaria um montante substancial dos
empréstimos incumpridos.
Mas, pode-se perguntar, já teremos passado o ponto de não retorno
no que se refere à poupança dos bancos do sector público?
A resposta simples é "não". Não só a
crise do NPA é um resultado em grande medida do "saqueio
corporativo" como a própria crise está a ser exagerada a fim
de pressionar a agenda da privatização.
Por que digo isto? Quando Narendra Modi empreendeu sua absurda medida da
desmonetização, os bancos subitamente ficaram repletos de fundos,
uma vez que o povo apressou-se a depositar seus haveres em dinheiro.
Mas este enorme aumento nos recursos dos bancos não levou a qualquer
crédito mais amplo.
Ao invés disso, os bancos optaram por manter estes fundos em
títulos governamentais, para o que tiveram de ser criados novos
títulos do governo cujas receitas de vendas não podiam sequer
serem gastas pelo governo (uma vez que isto teria aumentado o défice
orçamental com grande aborrecimento do capital financeiro).
Assim, o que o exercício da desmonetização mostrou
é que o desembolso de crédito na Índia não
está constrangido pela oferta mas sim pela procura (no sentido de ser
constrangido pela procura de crédito de tomadores
que os bancos considerem como dignos de crédito).
Portanto, a existência de NPAs
não
é um estrangulamento de crédito do lado da oferta, de onde se
segue que se o governo realmente capitalizasse os bancos do sector
público através de tomadas de empréstimos do RBI,
então o montante de tais empréstimos seria simplesmente mantido
pelo próprio RBI (como capital dos bancos). Isto seria apenas uma
transacção contabilística do RBI sem efeitos adversos
sobre seja o que for da economia.
Segue-se portanto que mesmo se a injecção de capital fresco em
bancos do sector público tivesse de ser feita devido aos seus grandes
NPAs, ainda assim não há necessidade de confiar no capital do
sector privado para uma tal injecção. A afirmação
actual em contrário é destinada meramente a ludibriar o povo
levando-o a acreditar que, devido aos NPAs, não há alternativa
à privatização de bancos do sector público. Este
bluff tem de ser chamado pelo seu nome.
10/Junho/2018
[NR] Também em Portugal o governo PS recusa-se a revelar a lista
completa dos grandes devedores faltosos que provocaram graves prejuízos
ao último banco público que resta no país, a CGD.
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/0610_pd/push-privatising-banks
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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