Marx e o capitalismo
A contribuição de Marx para o entendimento do capitalismo pode
ser vista através de duas visões reveladoras que ele teve deste
sistema. A primeira refere-se à origem do valor excedente
(surplus value).
Num mundo de mercadorias onde a troca entre possuidores mercadorias, dentre as
quais estão também os trabalhadores, ocorre voluntariamente e em
equivalência, sem qualquer trapaça, como pode ocorrer valor
excedente?
A solução para este enigma, descoberta por Marx, jaz numa
distinção entre trabalho e força de trabalho. O que os
trabalhadores vendem não é o seu trabalho mas sim a sua
força de trabalho, isto é, a sua capacidade para trabalhar, a
qual se torna uma mercadoria e como todas as mercadorias tem um valor
igual à quantidade total de tempo de trabalho directo e indirecto que
entra na produção de uma unidade dela, o que neste caso implica
que está incorporada no cabaz de subsistência requerido para a
produção e reprodução de uma unidade de
força de trabalho. A força de trabalho como mercadoria tem
entretanto esta propriedade única de que a sua utilização,
a qual é o dispêndio real de força de trabalho, cria valor.
A origem do valor excedente repousa no facto de que o valor que a força
de trabalho cria é maior do que o seu próprio valor. Portanto,
mesmo com troca equivalente, isto é, mesmo quando todas as mercadorias
são permutadas aos seus valores, emerge um valor ascendente.
Esta visão profunda tem um certo número de
implicações. Primeiro, ela proporciona uma
definição sucinta e rigorosa do capitalismo, como um sistema de
produção generalizada de mercadorias onde a própria
força de trabalho se torna uma mercadoria. Isto também significa
que a dualidade que caracteriza qualquer simples economia produtora de
mercadorias, entre o aspecto "coisificado" de entidades e seu aspecto
relacional, tal como valor de uso valor de troca; processo de trabalho
processo de criação de valor; produto mercadoria;
trabalho concreto trabalho abstracto, torna-se agora ainda mais
generalizado: meios de subsistência capital variável;
produto excedente valor excedente e assim por diante.
Em segundo lugar, o valor excedente neste sistema é criado não na
esfera da
troca
mas sim na esfera a
produção.
Uma vez que as firmas capitalistas como produtoras de mercadorias estão
envolvidas na competição umas contra as outras, onde os
produtores de alto custo são eliminados ao longo do tempo, a
pressão para cortar custos assume necessariamente a forma da
introdução de novos método e novos produtos, isto
é, de revolucionar continuamente os métodos de
produção. Este incessante impulso para revolucionar a
produção é o que distingue o capitalismo de todos os modos
de produção anteriores e está ligado ao facto de que o
valor excedente tem origem na esfera da produção.
Em terceiro lugar, desde que a capacidade para introduzir novos métodos
depende da dimensão da unidade de capital, com os maiores capitais tendo
uma vantagem e expulsando os mais pequenos, toda unidade de capital está
sob pressão para aumentar de dimensão através da
acumulação. A acumulação de capital, em suma,
ocorre por causa da pressão exercida sobre cada unidade de capital
devido à competição dentro do sistema. Mas naturalmente,
muito embora cada unidade de capital actue desesperadamente para evitar
arruinar-se nesta luta Darwiniana pela existência, algumas
necessariamente arruínam-se, pelo facto de haver um processo de
centralização de capital, isto é, a formação
de blocos de capital cada vez maiores que se verificam ao longo do tempo. (Isto
em última análise leva à emergência do capitalismo
monopolista em que acordos de preço explícitos ou
implícitos são alcançados entre capitalistas sem
naturalmente eliminar a competição, a qual agora assume outras
formas).
Em quarto lugar, para a apropriação do valor excedente pelos
capitalistas continuar, o valor da força de trabalho deve ser sempre
inferior ao valor que ela cria, o que significa que o sistema não deve
nunca exaurir-se de força de trabalho. Isto por sua vez exige que haja
sempre um exército de trabalho de reserva em acréscimo ao
exército de trabalho activo empregado pelos capitalistas. Este
exército de reserva é criado pela própria
acumulação de capital a qual, através do processo de
centralização do capital e através da
destruição da pequena produção, empurra
continuamente pessoas para as fileiras dos trabalhadores. Desde que a
dimensão absoluta do exército de reserva se mantenha a crescer,
juntamente com o do exército activo, quando se verifica
acumulação de capital, o crescimento da riqueza num pólo
é necessariamente acompanhado pelo crescimento da pobreza em outro.
Economistas clássicos ingleses atribuíram o facto de os
salários serem mantidos a um nível de subsistência à
tendência entre os trabalhadores para procriarem excessivamente no caso
de obterem salários acima da subsistência. Esta ideia
absolutamente repugnante foi rejeitada por Marx, o qual classificou a Teoria
Malthusiana da População sobre a qual estava baseada como
"uma calúnia à raça humana". Ele aduziu, ao
invés, as razões sociais que mencionámos para os
salários permanecerem cravados no nível de subsistência.
Em quinto lugar, a própria origem do sistema repousa numa
separação dos produtores dos seus meios de produção
e de uma concentração destes meios de produção em
poucas mãos de modo que duas classes de possuidores de mercadorias, uma
com meios de produção e de subsistência em suas mãos
e a outra com nada para vender excepto a sua força de trabalho,
são criadas e ficam "frente a frente e em contacto". Esta
dicotomia fundamental é reproduzida ao longo do tempo através da
operação do próprio sistema.
Em sexto lugar, através do contínuo revolucionamento dos
métodos de produção, a produtividade do trabalho aumenta
ao longo do tempo. Mas a existência do exército de reserva do
trabalho actua sempre,
ceteris paribus,
para manter os salários a um nível de subsistência
historicamente determinado, o qual pode no melhor dos casos aumentar
vagarosamente ao longo do tempo. Uma vez que os salários são mais
ou menos plenamente consumidos, ao passo que só uma
proporção do valor excedente o é, mantém-se baixa a
procura por bens de consumo na economia em relação ao valor
produzido. Se todo o valor excedente não consumido fosse utilizado para
acumulação
unicamente na forma de acréscimos ao stock de capital constante e
variável,
então nunca haveria qualquer problema de deficiência da procura
agregada em relação ao valor produzido, como havia postulado a
Lei de Say
. Mas como a acumulação pode assumir a forma de
acréscimo ao capital monetário, a ascensão da fatia do
valor excedente no valor total produzido dá origem a uma tendência
para crises de super-produção.
Marx chamou a atenção para várias diferentes
espécies de crise que podiam emergir dentro do sistema, inclusive
através de um aumento na composição orgânica do
capital, isto é, no rácio entre o capital constante e o capital
variável. Mas o seu reconhecimento das crises de
super-produção devido à natureza do capitalismo na
utilização do dinheiro, o qual necessariamente faz do dinheiro
uma forma de manutenção de riqueza, não só
assinalou um avanço sobre economistas clássicos ingleses que
haviam aceite a Lei da Say como também antecipou em três quartos
de século a assim chamada Revolução Keynesiana, a qual foi
desenvolvida durante a Grande Depressão da década de 1930 a fim
de compreendê-la.
Esta fundamental visão penetrante da natureza da
exploração sob o capitalismo e o facto de que o sistema reproduz
sua natureza exploradora e as contradições dela decorrentes,
através da sua própria operação, foi integrada por
sua vez dentro da sua descoberta de uma característica básica do
sistema, nomeadamente que é um
sistema espontâneo.
Se bem que funcione através das acções empreendidas por
um conjunto de entidades individuais, estes indivíduos actuam do modo
como o fazem porque são coagidos pelo sistema a assim fazer. O sistema
portanto é essencialmente autónomo
(self-driven),
uma autonomia cuja natureza é mediada por acções
individuais mas acções que são elas próprias
determinadas pela lógica do sistema. Qualquer indivíduo que
não actue do modo exigido pelo sistema perde o seu lugar dentro dele e
dá-se por vencido, tal como por exemplo um capitalista que decida
não empreender acumulação. E as acções de
indivíduos na sua totalidade dão origem a certas tendências
imanentes que caracterizam o sistema, tais como a tendência rumo à
centralização do capital, a tendência rumo à
reprodução ampliada do exército de trabalho de reserva, a
tendência rumo à expropriação de pequenos
produtores, a tendência rumo à produção de riqueza
num pólo e a pobreza em outro e assim por diante.
Esta segunda visão penetrante de Marx também tem um certo
número de implicações profundas. Ao contrário da
sua afirmação de que assegura liberdade individual, o capitalismo
é caracterizado pela alienação universal, onde todo agente
económico é coagido a actuar de modos que não são
da sua própria vontade. Mesmo o capitalista é alienado sob o
capitalismo, sem liberdade para actuar de acordo com a sua própria
vontade, mas sim coagido a actuar de modos específicos devido à
luta Darwiniana na qual todos os capitalistas estão empenhados. Marx
chamou o capitalista de "capital personificado", indicando que a
pessoa do capitalista era simplesmente um veículo para a
actuação das tendências imanentes do capital.
Em segundo lugar a "espontaneidade" do sistema significa que ele
não é maleável de modo a que se possa provocar qualquer
mudança no seu funcionamento e resultado económico através
da intervenção política. Na verdade, o papel normal da
intervenção política pelo Estado capitalista é
reforçar a "espontaneidade" do sistema, no sentido de acelerar
as realizações das suas tendências imanentes. Mas mesmo que
possivelmente, sob certas circunstâncias, a "espontaneidade" do
sistema seja restringida através da intervenção
política, tal restrição torna o sistema disfuncional,
necessitando ou de nova intervenção para alterar o sistema ou de
repelir a própria intervenção original a fim de restaurar
a "espontaneidade".
O argumento em favor do socialismo levanta-se precisamente devido a esta
"espontaneidade". Se o capitalismo fosse um sistema maleável
onde quaisquer espécies de "reformas" pudessem ser executadas
com êxito e duradouramente para torná-lo mais humano, mais
"amigo do trabalhador", mais "socialmente
responsável", mais igualitário e mais
"assistencialista"
("welfarist"),
então não valeria a pena argumentar em favor da sua
transcendência por uma ordem socialista. Mas a "espontaneidade"
do sistema impede tal maleabilidade, torna inaceitáveis quaisquer
reformas significativas do mesmo, torna o "capitalismo do bem-estar"
uma contradição em termos como fenómeno
sustentável, razão pela qual ele tem de ser transcendido.
O socialismo consequentemente tem de ser visto como uma ordem totalmente
diferente, uma ordem não-"espontânea". A
diferença entre capitalismo e socialismo jaz não apenas no facto
de que este último está associado à propriedade dos meios
de produção pelo Estado em favor da sociedade como um todo:
se
firmas possuídas pelo Estado competissem umas contra as outras no
mercado como fazem as firmas capitalistas, então elas reproduziriam a
anarquia do capitalismo juntamente com crises, desemprego e muitas das
tendências imanentes do capitalismo. Esta diferença não
repousa apenas no facto de os rendimentos serem melhor distribuídos sob
o socialismo: isso também pode ser desfeito ao longo do tempo se
se
permitir que a tendência para a criação do exército
de reserva do trabalho persista. A diferença jaz no facto de que o
socialismo não é conduzido por quaisquer tendências
económicas imanentes, de modo que os trabalhadores podem conscientemente
modelar o seu destino económico através da
intervenção política colectiva. Uma economia socialista
tem de ser o que torna isto possível.
Mas como pode o socialismo chegar a nascer se o capitalismo coage todos os
indivíduos a actuarem dos modos exigidos pela sua própria
lógica? A resposta de Marx foi que o capitalismo, apesar de promover a
competição, fragmentação e alienação
entre os trabalhadores, também os capacita a actuarem em conjunto
através de "combinações". Isto representa uma
ruptura na representação da sua lógica interna; e esta
ruptura, ajudada por um entendimento teórico que encare o sistema
"do lado de fora", isto é, de uma perspectiva de
"exterioridade epistémica", conduz à praxis em favor do
socialismo.
Uma diferença básica entre o marxismo e o liberalismo é
que este último, não obstante sua ênfase na liberdade
individual, encara esta liberdade como sendo constrangida apenas pelo Estado ou
por alguns indivíduos ou grupos, mas nunca pelo próprio sistema.
Isto acontece porque ele considera todos os relacionamentos económicos
terem sido acordados voluntariamente; ele nunca reconhece que indivíduos
podem ter sido coagidos a entrar em relacionamentos económicos.
A coerção do sistema económico que Marx destacou
não reside apenas na sua actuação como um constrangimento
sobre projectos e acções individuais. Ao contrário, o
capitalismo é conduzido pelas tendências imanentes dentro de cuja
teia o indivíduo é capturado. A liberdade do
indivíduo,
portanto, longe de ser realizada sob o capitalismo, exige para a sua
realização a transcendência do mesmo pelo socialismo, o
qual está livre de quaisquer tendências imanentes. A
existência destas tendências imanentes sob o capitalismo
também explica porque uma condição
necessária
para
toda
emancipação, quer de casta, de género, étnica ou
outra opressão, é a transcendência deste sistema. O
socialismo é uma condição necessária para acabar
com toda a opressão.
A análise de Marx do capitalismo em
O Capital
encara o sistema capitalista em isolamento; suas interacções com
modos de produção pré capitalistas em torno dele
não são discutidas, apesar da sua importância óbvia.
Isto é curioso uma vez que no próprio tempo em que Marx estava a
trabalhar no
Capital
ele também estava a ler extensamente sobre o impacto colonial
britânico sobre a Índia, acerca do qual escreveu uma série
de artigos para o
New York Daily Tribune.
Sua não integração do imperialismo dentro da sua
análise do capitalismo foi talvez porque estivesse preocupado naquele
tempo com um Revolução Proletária na Europa Ocidental, a
qual ele pensava estar iminente. Mas no fim da vida ele voltou sua
atenção para outras regiões, quando as perspectivas de
Revolução na Europa Ocidental recuaram. Apenas dois anos antes da
sua morte ele escreveu uma carta a N.F. Danielson, o economista
narodnik
, onde mencionou uma "drenagem" maciça do excedente da
Índia para a Grã-Bretanha.
Em suma, a análise de Marx do capitalismo deve ser vista como o ponto de
partida da mesma, não de chegada. A tarefa de desenvolver o
marxismo tanto pela incorporação do imperialismo dentro da
análise, no próprio contexto de Marx, e pelo exame dos
desenvolvimentos subsequente, cabe a autores marxistas posteriores, o que
é precisamente o que fez Lenine. E quando tal tarefa é cumprida,
várias das visões penetrantes básicas de Marx acerca do
capitalismo são justificadas ainda mais fortemente.
Exemplo: quando é considerada a persistente
usurpação pelo
capitalismo da economia de pequena produção que o rodeia, a qual
esmaga ou desloca tais produtores sem absorvê-los no exército de
trabalho activo do capitalismo, a visão penetrante de Marx de que o
sistema produz riqueza num pólo e pobreza no outro fica imensamente
fortalecida. De facto, aqueles que argumentam contra o prognóstico de
Marx dizendo que tal polarização não se verificou em
terras onde o capitalismo triunfou em primeiro lugar ignoram tipicamente esta
relação dialéctica entre capitalismo e seu mundo
circundante. As visões penetrantes de Marx são realmente
fortalecidas ao "ir mais além" do que Marx havida escrito
originalmente.
O mesmo é verdadeiro em relação ao projecto
revolucionário de Marx. Quando o capitalismo é encarado na sua
totalidade, incorporando o imperialismo, as perspectivas e possibilidades da
revolução tornam-se imensamente maiores; pois falamos
então não mais apenas de uma revolução
proletária em países capitalistas desenvolvidos mas também
de uma revolução democrática baseada numa aliança
operária-camponesa mesmo em países onde o capitalismo está
menos desenvolvidos, com mesmo nestes últimos a revolução
prosseguindo por etapas rumo ao socialismo. As perspectivas de uma
aliança operário-camponesa que Lenine havia conceptualizado como
decorrente da incapacidade do capitalismo de avançar a
revolução anti-feudal em países onde chegou atrasado, fica
ainda mais fortalecida quando tomamos conhecimento da usurpação
pelo capitalismo da economia dos pequenos produtores, a qual pressiona estes
últimos à indigência e a suicídios mesmo na presente
altamente "moderna" era da globalização.
06/Maio/2018
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2018/0506_pd/marx-and-capitalism
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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