A resistência palestiniana:
Um direito legítimo e um dever moral
As atrocidades incessantes e insuportáveis perpetradas pelo governo de
Israel deixam-nos poucas oportunidades para reflectir acerca do aspecto moral
da nossa resistência. O mais frequente é nossas
reacções ligadas aos acontecimentos serem imediatas, instintivas
e emocionais. Os poucos que chegam a reflectir sobre os aspectos morais,
políticos e estratégicos da nossa luta vêem-se confrontados
com a falta de perspectivas e os desgastes que o conflito causa na razão
e na consciência.
Como avaliar a resistência palestiniana com o máximo de
justiça, e o respeito que lhe é devido, no quadro da longa
história do conflito palestino-israelense? A ocupação da
Palestina tem por fundamento uma ideologia do século XIX que nega a
existência de um povo. Ela seguiu uma agenda colonial fazendo valer
direitos divinos a "uma terra sem povo". Em resposta a esta
agressão teo-colonial, a resistência palestiniana adoptou a
estratégia "da guerra de um povo" a fim de impor o
reconhecimento da Palestina como uma nação desapossada ao
invés da qualidade de nação "não
existente".
No dia de hoje os palestinianos continuam a não dispor de Estado, nem de
forças armadas. Nossos ocupantes submetem-nos a toque de recolher,
expulsões, demolições de casas, tortura legalizada e toda
uma panóplia altamente elaborada de violações de direitos
do homem. Nada pode justificar uma comparação entre o
nível de responsabilidade oficial à qual os palestinianos
estão adstritos pelas acções de alguns indivíduos e
a responsabilidade de violência sistemática e intensa contra uma
população inteira, praticada com toda a impunidade pelo Estado de
Israel. Os medias americanos chamam "terrorismo" à nossa
busca de liberdade, assim o palestiniano preenche o papel do protótipo
internacional do terrorista. Esta política moldou a opinião
pública ocidental tendo por consequência uma tomada de partido
internacional concretizado na tendência a descrever as violências
cometidas contra civis palestinianos numa linguagem neutra. As vítimas
palestinianas ficam reduzidas a simples estatísticas anónimas ao
passo que as vítimas israelenses são pintadas com palavras e
imagens fortes.
Esta distorção da resistência palestiniana abafou todo
diálogo razoável. Muitos dos nossos esforços para desafiar
o reino arbitrário do ocupante são remetidos à
ameaça do "terrorismo" como se devêssemos desculpar-nos
permanentemente e condenar a resistência palestiniana apesar da
ausência de acordo sobre a definição do termo
"terrorismo" e o facto de que o direito à
autodeterminação pela luta armada é autorizado pelo artigo
51 da Carta das Nações Unidas, referente à autodefesa.
Como é possível que a palavra "terrorismo" seja
aplicada tão à vontade aos indivíduos ou aos grupos que
utilizam bombas artesanais e não aos Estados que empregam a arma nuclear
e outras armas proibidas assegurando a dominação do opressor?
Israel, os EUA e a Grã-Bretanha encontrar-se-iam com toda a
lógica à cabeça da lista dos Estados exportadores de
terrorismo devido às suas agressões militares contra a
população civil na Palestina, no Iraque, no Sudão e
alhures. Mas "terrorismo" é um termo político de que
se serve o colonizador para desacreditar aqueles que resistem do mesmo
modo que os afrikaaners e os nazis qualificavam de "terroristas" os
combatentes negros sul-africanos e os resistentes franceses.
Também há a tendência junto àqueles que se
opõem à resistência palestiniana de utilizar o termo
"Jihad", empregue como sinónimo de "terrorismo". De
facto, eles reduzem a significação desta palavra à
noção de morte. Jihad é um conceito muito mais risco que
significa lutar contra nossos baixos instintos, esforçar-se por fazer
boas acções, opor-se activamente à injustiça e
fazer prova de paciência em períodos difíceis. Jihad
não significa fazer uso de violência para com as criaturas de
Deus, nem a coragem de morrer defendendo os direitos das criações
de Deus. Entretanto, a violência pode ser um meio de defesa de um ser
humano racional. É assim que, por exemplo, quando uma mulher reage
violentamente a uma ameaça de violação isto é uma
forma de Jihad.
Além disso, a Jihad é um valor islâmico e nem todos os
combatentes palestinianos são muçulmanos. Que jovens
palestinianos sinceros e generosos se façam explodir, é um
segredo que eles levam consigo. Talvez seja o fruto misterioso da
vingança lavrando no solo fértil da opressão e da
ocupação, ou a maneira profunda de protestar contra uma crueldade
impiedosa, ou até uma tentativa desesperada de atingir a igualdade com
os israelenses na morte, visto que lhes é impossível ali chegar
na vida. As pessoas que vivem em condições desumanas toda a sua
vida são, infelizmente, capazes de actos desumanos. O que resta aos
milhares de sem abrigo de Rafah senão a resistência? Não
se trata do Islão, trata-se da natureza humana comum a homens e
mulheres, religiosos, seculares e agnósticos. Nossas mulheres kamikazes
certamente não morrem na esperança de se reunirem às 70
virgens que as esperam no Paraíso.
Outro factor decisivo na resistência palestiniana é a
história aflitiva das sucessivas negociações de paz e a
ausência de apoio internacional. As negociações com Israel
não trouxeram senão promessas de autonomia sobre o nosso
empobrecimento, sempre reforçando a vontade do poderoso e consolidando
as desigualdades, enquanto bases de uma ocupação concebida para
durar. A ausência de um negociador honesto nas negociações
de paz é a coisa mais flagrante. As Nações Unidas foram
incapazes de tomar medidas para defender os direitos dos palestinianos. O
mundo inteiro não foi capaz de propor qualquer remédio para as
inúmeras feridas que afligem os palestinianos. Em muitas
ocasiões Washington utilizou o seu direito de veto no Conselho de
Segurança para se opor ao consenso mundial apelando à
presença de observadores internacionais na Cisjordania e em Gaza.
A negação implacável dos nossos direitos, conjugada com a
ausência de solução internacional eficaz, levou-nos a tomar
consciência de que a autodefesa era a nossa única esperança.
O direito internacional concede a toda população combatendo uma
ocupação ilegal o direito de utilizar "todos os meios
à sua disposição" para se libertar e os ocupados
"têm o direito de procurar e de receber apoio" (cito aqui
várias resoluções da ONU). A resistência armada foi
posta em prática pela revolução americana, pela
resistência afegã contra a União Soviética, pela
resistência francesa contra os nazis e pelos judeus resistentes nos
campos de concentração nazis, nomeadamente o célebre gueto
de Varsóvia. Da mesma forma, a resistência palestiniana é
o resultado de uma situação de ocupação ilegal e de
opressão de um povo no seu conjunto. O grau de violência pode
variar, pode acontecer mesmo que a resistência seja essencialmente
não violenta. Apesar de todas as injustiças de que são
objecto, as pessoas continuam resolutamente a viver, a estudar, a orar e a
explorar as suas terras num país ocupado. Em alguns casos, elas
resistem activamente e recorrem a actos violentos. Esta resistência
violenta pode ser quer defensiva (e portanto, no meu espírito,
moralmente aceitável), a defesa por exemplo do campo de refugiados de
Jenin pelos combatentes face ao avanço das máquinas da morte
israelenses; quer tomar a forma de actos ofensivos inaceitáveis, tal
como o bombardeamento de civis israelenses a festejarem a páscoa judia.
Contudo, em todos os casos, são indivíduos que escolhem a forma
de resistência e a escolha que eles fazem não é
obrigatoriamente aquela do conjunto do povo palestiniano. Entretanto, como
já constatámos, quer a resistência seja violenta ou
não violenta, ela é igualmente respondida por uma violência
de Estado deliberada por parte do governo israelense livre e democrático
e do seu exército. A morte da militante pacifista americana Rachel
Corrie é a prova evidente.
"Onde está o Gandhi palestiniano?", perguntam-se alguns. Os
nossos "Gandhis" estão ou na prisão, ou no
exílio ou enterrados. Nós não somos centenas de
milhões. Um povo de 3,3 milhões e sem armas fica
vulnerável face aos 6 milhões de israelenses, todos virtualmente
soldados ou reservistas. Não se trata de uma colonização
económica, os israelenses praticam a depuração
étnica a fim de se apossar da terra dos palestinianos para o
único proveito dos judeus.
É irónico constatar que poucas pessoas, entre aquelas que exortam
os palestinianos a imitar Gandhi, colocam-se questões sobre o sionismo,
a causa primária da ocupação. Entretanto, em 1938 Gandhi
já punha em dúvida os argumentos do sionismo político.
"Minha simpatia não me faz esquecer as exigências de
justiça, o grito por um lar nacional para os judeus não me seduz
particularmente. O princípio deste lar é procurado na
Bíblia e na tenacidade com a qual os judeus cobiçaram o seu
retorno à Palestina. Por que não podem eles, como os demais
povos da terra, estabelecer o seu lar no país onde nasceram e onde
ganham a sua vida?
Gandhi rejeitou claramente a ideia de um Estado judeu sobre a "terra
prometida", notando que "a Palestina de concepção
bíblica não é uma área geográfica".
A resistência violenta é o resultado de uma ocupação
militar desumana; que inflige arbitrariamente castigos quotidianos e sem outra
forma de julgamento; que nega a possibilidade da própria
existência dos meios de existência e destroi sistematicamente toda
perspectiva de futuro do povo palestiniano. Os palestinianos não foram
à terra de um outro povo para destruí-lo ou despojá-lo dos
seus bens. Nossa ambição não é nos fazermos
explodir para aterrorizar os outros. Nós queremos que toda a gente
possa ver, com direito, uma vida decente sobre a nossa terra natal.
O mais perturbador no que se refere às criticas expressas contra a nossa
resistência é que fazem pouco caso dos nossos sofrimentos, dos
nossos despojamentos e da violação dos nossos direitos mais
elementares. Quando somos assassinados, estes críticos permanecem
insensíveis. Nossa luta pacífica quotidiana para levar uma vida
normal permanece amplamente ignorada. Quando alguns dentre nós sucumbem
à represália e à vingança, as
indignações e condenações caem sobre o conjunto da
nossa sociedade. A segurança israelense é julgada mais
importante do que os nossos direitos elementares de existência; as
crianças israelenses são consideradas mais humanas do que as
nossas; e a dor israelense mais inaceitável do que a nossa. Quando nos
rebelamos contra as condições desumanas que nos esmagam, nossos
críticos comparam-nos a terroristas, inimigos da vida e da
civilização.
Mas não é para apaziguá-los que devemos revisitar nossa
resistência. É porque nós nos preocupamos com o
ânimo dos palestinianos e do seu moral.
As leis internacionais e os precedentes históricos de numerosas
nações reconhecem o direito de uma população,
quando elas se encontra sob o jugo de uma opressão colonial, a tomar
armas na sua luta de libertação. Por que a
situação seria diferente no caso dos palestinianos? Não
é este o ponto de vista de uma regra do direito internacional e portanto
de aplicação universal? Os americanos estabeleceram na sua
constituição direitos à vida, à liberdade e
à busca da felicidade. É essencial que o direito à vida
seja mencionado em primeiro lugar. Afinal de contas, sem o direito a
permanecer com vida, a proteger-se dos ataques, a defender-se, os outros
direitos esvaziar-se-iam do seu sentido. A consequência deste direito
é o direito à autodefesa.
Nós palestinianos continuamos a enfrentar uma ocupação
brutal expondo nossos peitos desarmados e nossas mãos nuas. Creio no
diálogo entre palestinianos e israelenses mas as
negociações não bastam por si próprias: elas devem
ser acompanhadas pela resistência à ocupação.
Enquanto os israelenses nos falam, continuam a construir colónias e a
erguer um muro que nos encerrará e violará ainda mais nossos
direitos. Por que deveríamos nós abandonar nossos direitos a
resistir e a continuar a viver no reino do absurdo assassino?
Viver sob a opressão e submeter-se à injustiça é
incompatível com a saúde psicológica. A resistência
é não é só um direito e um dever como também
um remédio para os oprimidos. Independentemente de qualquer
opção estratégica ou pragmática, nossa
resistência permanece a expressão da nossa dignidade humana. A
resistência violenta deve sempre ser defensiva e utilizada em
última instância. Entretanto, é importante distinguir os
alvos aceitáveis (militares) dos alvos inaceitáveis (civis) e
estabelecer limites ao uso das nossas armas. O opressor por sua vez não
deve ser isento destes mesmos princípios.
A história da nossa resistência deve ser explorada e avaliada do
ponto de vista do direito internacional, da moralidade, da experiência e
do aspecto político, tendo em conta acontecimentos cronológicos e
do contexto e concedendo o seu justo lugar aos direitos do homem, às
regras internacionais e às normas de comportamento amplamente admitidas
pela comunidade internacional. Os palestinianos devem ser criativos fornecendo
alternativas não violentas e eficazes como formas de resistência.
Elas poderão persuadir os progressistas de todo o mundo a juntarem-se ao
nosso combate.
Afinal de contas, a força do palestiniano reside na sua moral, nas suas
características humanas; cabe a nós encontrar recursos morais e
humanitários a fim de proteger esta força.
______________
[*]
Samah Jabr é uma médica palestiniana que vive na Jerusalém
ocupada. Filha de um professor universitário e de uma directora de
colégio, foi cronista do
Palestine Report
em 1999-2000 com a rubrica "Fingerprints". Desde o princípio
da Intifada contribui regularmente com o
Washington Report on Middle East Affairs
e com
Palestine Times
de Londres. Além disso recebeu o prémio do Media Monitor's
Network pela sua contribuição sobre a Intifada e alguns dos seus
artigos foram publicados no
International Herald Tribune, Philadephia Inquirer, Haaretz, Australian
Options, The New Internationalists
e outras publicações. A autora deu várias
conferências no estrangeiro, nomeadamente na Universidade Fordham e no
St. Peter's College de Nova York, em Helsinquia e em várias
universidades, mesquitas e igrejas na África do Sul.
O original foi publicado no
The Washington Report on Middle East Affairs
e transcrito em
http://www.solidarite-palestine.org/rdp-pal-031110-1.html
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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