Perspectivas imperiais

por Edward W. Said [*]

Uma feroz mãe palestina e os seus filhos ameaçam um pobre soldado israelense. Os grandes impérios modernos nunca se mantiveram unidos graças apenas ao poder militar e sim graças ao motor que activa o referido poder, que o utiliza e o reforça através do exercício diário da dominação, da convicção e da autoridade. A Grã-Bretanha governou os vastos domínios da Índia com uns poucos milhares de oficiais coloniais e uns tantos milhares mais de soldados, muitos deles hindus. A França fez o mesmo no norte de África e na Indochina, os holandeses na Indonésia, os portugueses e o belgas em África.

O elemento chave é a perspectiva imperial, essa forma de contemplar uma realidade distante e estranha subordinando-a ao nosso olhar, construindo sua história a partir do nosso ponto de vista, vendo a sua gente súditos cujo destino não é o que eles decidem e sim aquele que uns remotos administradores consideram melhor. Essa perspectiva deliberada produz ideias reais, como a teoria de que o imperialismo é uma coisa benigna e necessária.

Num dos comentários mais perspicazes que já se escreveram acerca da "cola" conceptual que mantém unidos os impérios, o extraordinário escritor anglo-polaco Joseph Conrad disse que "a conquista da terra, que significa fundamentalmente arrebatá-la àqueles que têm uma pele diferente ou narizes um pouco mais chatos do que nós, não é nada agradável quando examinada em pormenor. A única coisa que a redime é a ideia. Um ideia de fundo; não uma pretensão sentimental e sim uma ideia; e uma fé desinteressada nessa ideia, algo que possamos crer, diante da qual possamos inclinar-nos e à qual possamos oferecer sacrifícios.

Durante algum tempo o sistema funcionou porque muitos dirigentes coloniais acreditaram erroneamente que não tinham outro remédio senão cooperar com a autoridade imperial. Pois bem, uma vez que a dialéctica entre a perspectiva imperial e a local é inevitavelmente conflitiva e passageira, chega um momento em que já não é possível continuar a conter o conflito inevitável entre governante e governado, que explode numa guerra colonial declarada como as da Argélia e da Índia.

Ainda falta muito para chegar a esse momento no caso do domínio estadunidense sobre o mundo árabe e muçulmano. Pelo menos desde a II Guerra Mundial, os interesses estratégicos dos Estados Unidos consistiram em garantir (e controlar cada vez mais) os abastecimentos de petróleo e apoiar, com um custo enorme, o poder e o domínio regional de Israel sobre todos os seus vizinhos.

Todos os impérios, inclusive o dos Estados Unidos, dizem incessantemente a si próprios e ao mundo que são diferentes de todos os demais impérios e que sua missão não consiste em saquear e dominar e em educar e libertar os povos e lugares que governam, de forma directa ou indirecta. Contudo, são ideias não compartilhadas pelos povos governados, cujas opiniões são, em muitos casos, radicalmente opostas. Mas isso não impediu que a maquinaria estadunidense da informação, a estratégia e a política relativas ao mundo árabe e islâmico, imponha seus pontos de vista não só a árabes e muçulmanos como também aos seus próprios cidadãos, cujas fontes de informação sobre o islão e os árabes são tristemente, tragicamente, insuficientes.

A diplomacia estadunidense teve sempre o lastro da agressão sistemática do lobby israelense contra os chamados arabistas. Dos 150 mil soldados norte-americanos hoje presentes no Iraque, só um punhado deles sabe árabe. David Ignatius destaca isto no excelente artigo publicado a 14 de Julho intitulado "Washington paga a falta de arabistas" , no qual cita Francis Fukuyama a dizer que o problema é que "os arabistas não só adoptam a causa dos árabes como têm tendência a enganarem-se a si próprios". Neste país convencionou-se que falar árabe, ter algum contacto com a vasta tradição cultural árabe e mostrar certa compreensão para com ela parecem constituir uma ameaça contra Israel. Os meios de comunicação publicam os piores estereótipos racistas sobre os árabes (ver, por exemplo, um artigo hitleriano de Cynthia Ozick no The Wall Street Journal de 30 de Junho, no qual diz que os palestinos "difamaram a força da vida, um cultismo elevado a espiritualismo sinistro", palavras que poderiam muito bem ser sido ouvidas nas concentrações de Nuremberg).

Várias gerações de estadunidenses consideram o mundo árabe, fundamentalmente, como um lugar perigoso no qual brota o terrorismo e o fanatismo religioso e onde uns clérigos mal intencionados, antidemocráticos e violentamente anti-semitas maliciosamente instilam nos jovens um anti-americanismo gratuito. Nestes casos a ignorância converte-se directamente em conhecimento. O que nem sempre se percebe é que, quando surge um dirigente que agrada "a nós" — como o xá do Irão ou Anuar el Sadat —, os Estados Unidos supõem tratar-se de um corajoso visionário que fez coisas por "nós" ou do "nosso" modo, não porque haja compreendido o jogo do poder imperial — que consiste em agradar à autoridade suprema a fim de sobreviver — e sim por estar convicto de alguns princípios que compartilhamos. Quase um quarto de século após o seu assassinato, Anuar el Sadat é, sem exagero, um homem esquecido e impopular, porque a maioria dos egípcios considera que serviu sobretudo os Estados Unidos e não o Egipto. O mesmo se verifica com o xá. O facto de que tanto a Sadat como ao xá terem sucedido no poder governantes ainda mais desagradáveis não é sinal, como gostaríamos de acreditar, de que tínhamos razão e sim de que as distorções da perspectivas imperiais produzem distorções ainda maiores na sociedade do Oriente Próximo, que prolongam o sofrimento e engendram formas extremas de resistência e de reafirmação política.

Este é especialmente o caso dos palestinos, daqueles que agora pensa-se que se regeneraram a fim de deixar que os governo Mahmud Abbas (Abu Mazen) ao invés do vilipendiado Arafat. Mas isso é uma questão de interpretação imperial, não uma realidade. Israel e os Estados Unidos consideram Arafat com um obstáculo a fim de conseguir impor aos palestinos um acordo que apagará todas as suas reivindicações anteriores e representará a vitória definitiva de Israel sobre aquilo que alguns israelenses denominam o seu "pecado original", terem destruído a sociedade palestina em 1948 e terem disposto da nação dos palestinos, cidadãos que ainda hoje continuam sem Estado o sob a ocupação. O que importa que Arafat — a quem venho criticando há muitos anos em meios árabes e ocidentais — continue a ser considerado universalmente como o líder palestino por ter sido legalmente eleito em 1996 e porque adquiriu uma legitimidade à qual não consegue chegar nenhum outro palestino, e muito menos Abu Mazen, um burocrata e velho subordinado de Arafat ao qual falta qualquer apoio popular. Além disso, agora existe um grupo palestino independente e coerente (a Iniciativa Nacional Independente) que se opõe tanto ao governo de Arafat como aos islamistas, mas que não recebe qualquer atenção os estadunidenses e os israelenses preferem um interlocutor maleável que não possa causar problemas. A dúvida de que tudo isso sirva para algo fica para depois. É assim míope — até cego — e arrogante o olhar imperial. E o mesmo modelo repete-se na noção que os Estados Unidos têm do Iraque, da Arábia Saudita, do Egipto e de todos os demais países. O mau de tais concepções é que são incompetentes e ideológicas; não proporcionam os estadunidenses ideias sobre os árabes e muçulmanos e sim opiniões sobre como gostariam que fossem. Que um grande país, imensamente rico, possa produzir uma ocupação tão mal gerida, pouco preparada e incapaz como a que está a ser executada hoje no Iraque é uma farsa intelectual. E que um funcionário moderadamente inteligente como Paul Wolfowitz possa elaborar políticas tão incompetentes e, em simultâneo, convencer todo o mundo de que sabe o que faz é assombroso.

A base desta perspectiva imperial particular é uma antiga concepção orientalista que não permite que os árabes exerçam o seu direito à autodeterminação nacional e considera-os diferentes, incapazes de empregar a lógica e de dizer a verdade, turbulentos e com instintos assassinos. Desde que Napoleão invadiu o Egipto em 1798 tem havido em todo o mundo árabe, baseada nessas premissas, uma presença imperial ininterrupta que levou a uma miséria indizível — e também alguns benefícios — à grande maioria da população. Mas acostumámo-nos tanto às lisonjas de assessores norte-americanos como Bernard Lewis e Fouad Ajami — que lançaram seu veneno contra os árabes de todas as formas possíveis —, que quase pensamos que estamos a actuar como se deve porque os árabes são assim. Com a agravante de que, além disso, trata-se de um dogma israelense que é compartilhado de forma incondicional pelos neoconservadores do governo de Bush. Por tudo isso, restam-nos ainda muitos anos de confusão e miséria numa zona do mundo na qual um dos principais problemas é, simplesmente, o poder dos Estados Unidos. Mas, a que preço? E com que fim?


[*] Ensaista palestino, professor de Literatura Comparada na Universidade de Columbia.

A URL original é http://www.rebelion.org/imperio/030728said.htm


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

29/Jul/03