O autor do discurso aqui transcrito mantém há mais de cinquenta anos uma intervenção activa no movimento mundial pela paz, tanto em Portugal como noutros países onde viveu (EUA, França, Itália e Angola). Em sucessivas conferências internacionais Silas Cerqueira tem alertado para os perigos dos pseudo "processos de Paz" impostos pelas chamada "comunidade internacional" (isto é, o imperialismo) que visam negar uma independência genuína à Palestina.

Na recente Conferência Internacional da Sociedade Civil de Apoio ao Povo Palestiniano, realizada em Nova York em Setembro de 2003, Silas Cerqueira interveio a convite do Comité das Nações Unidas para a Palestina. É a segunda vez que um português é convidado por este Comité (o primeiro convite foi ao Marechal Costa Gomes, em 1979). Apesar disso a comunicação social portuguesesa não publicou nem uma linha a respeito.

Assim, resistir.info é o primeiro media português a relatar a denúncia de Silas Cerqueira acerca da nova situação estratégica de ocupação do Iraque e da "remodelação" do Médio Oriente pretendida pelos EUA, em que Bush & Sharon visam — se não encontrarem forte resistência — impor a curto prazo a sua "solução final" da questão palestiniana.

O pseudo "roteiro para a Paz" e a monstruosa muralha de 8 metros de altura e 600 quilómetros de comprimento cercando 50% do território palestiniano são peças sinistras que se conjugam com o objectivo de liquidar o Povo palestiniano. A denúncia e a solidariedade são importantes nestes momentos difíceis que atravessa aquele povo heróico.
resistir.info

Para onde vamos na Palestina?

por Silas Cerqueira [*]

O muro para aprisionar o povo da Cisjordânia num gheto, construído pelos fascistas israelenses, tem 8 m de altura e 600 km de comprimento. Como último orador da última sessão plenária, será que resta algo para dizer?

É melhor pensar em voz alta convosco. Podemos juntos reflectir em três questões, todas elas à volta de uma interrogação: Para onde vamos? Para onde nos dirigimos, os Palestinianos e os movimentos de solidariedade?

Permitam-me que comece por referir o seguinte. Não nos devemos esquecer de que, enquanto estamos confortavelmente reunidos, centenas de milhares de palestinianos continuam a viver abaixo da linha da pobreza, são vítimas de uma crescente repressão de massas, muitos deles são presos, torturados, assassinados. É uma situação que importa ter sempre presente no nosso pensamento e no nosso coração. Encontramo-nos aqui nas Nações Unidas e felizmente o Comité da ONU para os direitos dos Palestinianos, um Comité de Governos – e nós próprios como ONGs – não somos burocratas. Participamos nesta Conferência com o sentimento e com a razão. Viu-se durante os trabalhos.

1- Assim, e dado que oradores anteriores fizeram referência, com razão, ao forte avanço do movimento global pela paz, a primeira questão que deveremos considerar é a do novo contexto internacional e regional da luta do povo Palestiniano e das nossas campanhas de solidariedade. Daí, mas em contraste com o que foi dito anteriormente, a observação seguinte: quanto mais cresce o movimento global pela paz, tanto mais enfrentamos guerras e perigos de guerra. São dinâmicas contraditórias sobre as quais importa reflectir.

Vendo o que aconteceu nos últimos meses, podemos dizer que o sistema democrático ocidental deixa os povos votarem em representantes seus, pronunciarem-se sobre uns tantos assuntos, mas não sobre a guerra e a paz. Talvez porque a guerra e a paz não são um problema importante?! É o modo como funcionam as democracias ocidentais relativamente a uma questão capital. Actualmente, os povos do mundo são vítimas de uma série de guerras sem fim e vêem-se ameaçados por novas guerras potenciais no Médio Oriente, na Ásia, em África e noutros lados. Sem falar daquelas que já tiveram lugar na Europa.

Resumindo, gostaria de sublinhar três pontos. Um decorre do facto reconhecido de que certos governos mentiram ao mundo inteiro acerca da guerra de agressão no Iraque. Serão esses governos aqueles em quem o movimento de libertação da Palestina, e as nossas organizações de solidariedade, têm de confiar para que continue um autêntico processo de paz na Palestina e no Médio Oriente?! Quer o processo de Oslo, quer agora o “roteiro para a Paz”?! Os quais seriam “garantidos”, por assim dizer, pelas mesmas potências que mentiram com conhecimento de causa e não acerca de qualquer assunto secundário, mas acerca da guerra?!

Dessa pergunta decorre outra: no Iraque e noutros lados, mas particularmente no Iraque, há jovens soldados americanos que morrem, por quê? Não pelos princípios e ideais das Nações Unidas! Nem sequer pelo seu país! Morrem pelo petróleo, pelos interesses de um punhado de empresas. Esta é a crua realidade com que nos confrontamos hoje no Médio Oriente.

Pelo que observamos nestes dias uma aparente mudança por parte de um governo dos EUA capaz de dizer tudo e o seu contrário. Dirigiram um “apelo” às Nações Unidas de maneira a que, com uma nova resolução do Conselho de Segurança, outros países possam enviar os seus jovens morrerem na ocupação ilegal do Iraque, em vez dos soldados americanos. Mas com os EUA mantendo o comando militar! - em violação do espírito e da letra da Carta da ONU, em especial o Capítulo VII que atribui ao Conselho de Segurança a competência para constituir o estado-maior e decidir sobre a acção militar de uma força da ONU.

Activistas da paz israelenses pintam inscrições 'No Walls' junto à aldeia palestina de Sawahira. 2- Por conseguinte, e passando a tratar da área que mais nos preocupa, nomeadamente, a situação trágica do Povo Palestiniano sob a ocupação israelense – o que é que temos visto? O que é que vemos? Para responder, consideremos uma segunda questão, a da avaliação dos “processos de Paz”. Mais uma vez estamos perante uma contradição flagrante: seguem-se os “processos de Paz”, um após outro, e a situação dos palestinianos não só não melhora, como se torna cada vez pior! É matéria para reflexão. Porque é que isto se repete? Haverá uma conspiração? Talvez, ou com certeza, mas basicamente o que acontece é que esses “processos de Paz” estão viciados nos seus fundamentos .

Assim o “processo de Paz” de Oslo nunca garantiu efectivamente que no final haveria um Estado palestiniano verdadeiramente independente. Quando o prazo ia terminar, vimos o que vimos. Actualmente, com o chamado “roteiro para a Paz” está a acontecer o mesmo, mutatis mutandis . Apesar de todas as declarações do governo dos EUA, da União Europeia e da ONU - continua longe de estar clara a perspectiva de um Estado palestiniano, incluindo a natureza deste segundo Bush e Sharon. Uma independência genuína continua a ser negada aos palestinianos.

Na verdade, destes “processos de paz” resultaram – em vez da independência – formas de ocupação mais sofisticadas e mais brutais, culminando com a construção do monstruoso Muro. Estes processos originaram mais refugiados palestinianos – em vez de assegurarem o respectivo direito ao regresso. O seu resultado final tem sido o de uma escalada do terrorismo de Estado, da militarização, da violência, dos assassinatos por parte de Israel – em vez da Paz. A Autoridade Palestiniana, pelo seu lado, agiu de boa fé e aceitou sem reservas – tinha de ser – as “garantias” das Grandes potências.

Porém, os palestinianos andam a tratar com “parceiros” que não merecem a mínima confiança, quer o Governo de Israel, em particular Sharon, quer o governo dos EUA, em particular Bush. O antigo primeiro-ministro Rabin, em Israel, poderia a seu modo ter sido de confiança, mas, embora viesse do grupo dirigente, não estava em consonância com este e liquidaram-no.

Os palestinianos também não podiam, durante o Processo de Oslo, voltar-se para as Nações Unidas que foram completamente marginalizadas. Agora, manifesta-se a mesma tendência no “roteiro para a Paz”. Quando recebemos o convite para a nossa Conferência, essa carta sublinhava correctamente, e estou inteiramente de acordo, o “ papel permanente ” das Nações Unidas num processo baseado em princípios para alcançar a independência da Palestina e uma Paz justa na área. Não que a ONU seja sem falhas, ou possa resolver alguns dos grandes problemas internacionais. Contudo, representa em certa medida todos os países do Mundo a nível da Assembleia Geral, que criou o Comité para os direitos dos Palestinianos e que todos os anos aprova um voto de apoio à causa da Palestina.

Pelo menos é possível pedir ajuda à ONU, de modo a trazer algum equilíbrio em defesa do Povo Palestiniano. Com uma condição, a de que o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral não se deixem comandar por uma superpotência dominadora – onde, quando e como faça jeito a essa superpotência! A próxima votação do Conselho de Segurança sobre o Iraque pode ser reveladora a este respeito [NR] .

3- Se agora voltarmos a nossa atenção para a situação dramática no terreno, no território palestiniano ocupado – e é a terceira questão a considerarmos – como é que vemos a situação politicamente ? Em primeiro lugar, peço para observar o seguinte: durante anos, durante décadas, temos pensado e temo-nos exprimido no quadro de uma linguagem enganadora. Não obstante todos a utilizamos, ainda que como Organizações Não-Governamentais a nossa linguagem devesse ser diferente da dos governos. Considere-se, por exemplo, o tão mencionado “conflito Israelo-Palestiniano”. Rigorosamente falando não há um “conflito Israelo-Palestiniano”. Há por parte de Israel a conquista, o colonialismo, a ocupação, a violência!

Também quando falamos do “ciclo da violência e contra-violência” – tal como diz a mensagem do secretário-geral da ONU à nossa Conferência, e todos o dizemos – significa isto que a violência é do lado palestiniano e a contra-violência do lado do Estado de Israel?! O processo real é o oposto. É o lado muito mais poderoso, o Estado colonialista de Israel, que pela sua própria natureza tem recorrido desde a origem e sistematicamente à violência, ao terrorismo de Estado. Os palestinianos, materialmente em posição de grande fraqueza, estando a ser esmagados militarmente e em luta pela sobrevivência, defendem-se como podem, com a resistência popular desarmada e com as acções armadas disponíveis.

Não podemos deixar aqui de falar, mais uma vez, das acções que os palestinianos designam por “operações dos mártires” e no Ocidente são designadas por “atentados suicidas”. É uma forma de luta que não advogo. Contudo recuso-me pessoalmente – como na nossa Conferência do ano passado – a “condenar” estas acções derradeiras de palestinianos oprimidos e em desespero. Não concordo com o que ouvimos na presente sessão da tarde acerca dos “extremistas de ambos os lados”. Não. Não é assim. A expressão “ambos os lados” é completamente enganadora. É o próprio Estado de Israel, como Estado, que é extremista. As massas palestinianas, apoiando a resistência armada, não são extremistas! Pode haver tal ou tal tendência, mas não são extremistas.

Concordo, sim, que a vista dos civis israelenses, homens, mulheres e crianças que são mortos, é intolerável. Tal como é intolerável a vista dos homens, mulheres e crianças palestinianos mortos pelo Estado de Israel, e em números muito maiores (quatro vezes mais pelo menos). Contudo, a plena responsabilidade por tão tremenda perda de vidas – nos territórios palestinianos e no interior de Israel – cabe por um lado ao governo de Sharon, e por outro ao imperialismo dos EUA, que utiliza Israel como um peão do seu domínio geopolítico e económico. Esta é a realidade. Não pode ser ignorada, se queremos encarar a situação.

Por último, mas não de somenos importância, a responsabilidade pertence também a uma grande parte da população de Israel, com a sua mentalidade estreita de colonos, incapazes de compreender onde deveria estar o seu interesse a longo prazo (tal como os colonos europeus anteriormente, na Argélia, em Angola, etc). Assim, são presa de manipulação por interesses de grandes empresas, das multinacionais, do imperialismo.

Por conseguinte, seja-me permitido insistir, rejeito o que foi dito por um anterior orador quando chamou “criminosos de guerra” aos jovens palestinianos implicados em ataques suicidas! Equiparando-os com os seus opressores! Seja como for, não é possível “julgar” e “condenar” estes jovens, pois são as primeiras vítimas dessas operações, utilizando os seus corpos como arma de último recurso e dando as suas vidas para que o Povo Palestiniano viva. Quer consideremos esta táctica correcta ou não, tornou-se em anos recentes parte e produto da existência desumana que as massas palestinianas são forçadas a viver sob a ocupação israelense. Isso terminará com o fim da ocupação. A Autoridade Palestiniana, no âmbito das suas responsabilidades institucionais, desaprova a resistência armada no interior de Israel, mas não nos territórios ocupados, contra a ocupação, o terror diário, a violência militar do Estado de Israel.



Concluindo, para onde vamos na Palestina? Na presente situação intrincada e de mau presságio, destacam-se dois actores palestinianos de primeira importância. Um é o líder da Palestina. Sejam quais forem as diferenças de apreciação que se possam ter em relação a aspectos da sua táctica política ou estratégia, destaca-se como “maior do que ele próprio” — como a personificação de décadas de aspirações, unidade e luta incessante dos palestinianos pela sua libertação e independência. É por isso que Sharon e Bush querem eliminá-lo. Não podemos deixar a nossa Conferência sem aprovar, na esteira da Conferência do ano passado, uma resolução que reitere a nossa solidariedade com o Presidente Yasser Arafat, Presidente eleito pelo seu povo e prisioneiro em perigo no cercado de Ramallah.

O outro actor fundamental é o Povo Palestiniano nos territórios ocupados, três milhões, a maioria dos quais vive em situação de pobreza. No entanto, recusam submeter-se ao colonialismo e ao imperialismo – um caso raro nos dias de hoje. Revelam um nível de consciência política notável. Há uma dialéctica na evolução das suas relações com os dirigentes. As massas palestinianas não seguem sempre a sua direcção, quando parece estar a fazer concessões injustificadas a Israel e aos EUA. Mas apoiam fortemente a mesma direcção quando se mantém firme na defesa dos princípios da luta e resiste com coragem ás pressões e ameaças.

Com acúmen político manifestam-se a favor de autênticas reformas democráticas na Palestina para fortalecer a soberania popular – mas rejeitam pseudo-reformas divisionistas impostas do exterior e que visam derrubar a Autoridade Palestiniana, fragmentar a Nação Palestiniana. São notáveis, os três milhões de palestinianos, pelo seu heroísmo diário e a sua unidade. Tornaram-se o grão de areia que bloqueia o poderio da máquina de guerra de Israel e a estratégia dos EUA na região.

Finalmente, para onde vão os nossos movimentos de solidariedade? No período actual seria muito provavelmente ilusório contar com uma solução justa que traga a independência genuína para a Palestina e uma paz duradoura na área. Pelo contrário, há que recear o pior. Portanto devemos aqui e agora assumir o compromisso de prosseguirmos com o apoio incessante e firme ao Povo Palestiniano, sejam quais forem as reviravoltas e perspectivas da sua trágica condição. Intensifiquemos urgentemente a nossa solidariedade moral, humanitária, material e política com os palestinianos! Porque na sua heróica luta de libertação não lutam somente por si próprios, mas lutam por todos nós!
__________
[NR] A referida votação já se realizou. Os 15 países membros do Conselho de Segurança votaram submissamente a favor da Resolução proposta pelo Governo de Bush que permite aos EUA obterem — sempre sob o seu comando militar, mas agora com a caução da ONU — a participação (para além da Grã-Bretanha) de contingentes de outras nacionalidades na ocupação do Iraque. Assim, a França, a Alemanha, a China, a Rússia, a Síria (país árabe) e outros (africanos, latino-americanos) que se haviam oposto à agressão americana ao Iraque passaram a caucionar a continuada ocupação ilegal daquele país e até, retroactivamente, a sua invasão por Bush & Blair.

[*] Representante da Organização de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos (OSPAA, no Cairo) e do Secretariado Internacional de Solidariedade com o Povo Árabe e a sua causa central, a Palestina (provisoriamente em Lisboa). Discurso pronunciado em 05/Set/2003 em Nova York, na sede da ONU, no IV Plenário da Conferência Internacional da Sociedade Civil de Apoio ao Povo Palestiniano. A conferência foi realizada sob os auspícios do Comité das Nações Unidas para o exercício dos direitos inalienáveis do Povo Palestiniano [tradução do original em inglês, transcrito da gravação].


O press release da conferência encontra-se em
http://www.un.org/News/Press/docs/2003/gapal931.doc.htm .


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

19/Nov/03