Réquiem por um império: uma antevisão
Assaltado por dissonância cognitiva em todo o espectro, o
Império do Caos
comporta-se como um maníaco-depressivo condenado, apodrecido até
o âmago um destino mais pavoroso do que o enfrentar
revoltas das satrápias.
Apenas zumbis com morte cerebral agora acreditam na sua autoproclamada
missão universal, como a nova Roma e a nova Jerusalém. Não
há cultura, economia ou geografia unificadoras que entrelacem o
núcleo de uma
"sufocante paisagem política árida, seca
, desprovida de paixão e vazia de empatia humana, sob o sol forte do
raciocínio Apolíneo"
[1]
.
Guerreiros frios sem normas ainda sonham com os dias em que o eixo
Alemanha-Japão ameaçava governar a Eurásia e a Comunidade
Britânica mordia a poeira oferecendo assim a Washington, temerosa
de se ver forçada ao isolamento, a oportunidade única na vida de
lucrar com a Segunda Guerra Mundial erguendo-se como Supremo Paradigma Mundial
e erigindo-se a si própria como salvadora do "mundo livre".
Depois houve a década dos unilaterais anos 1990, quando mais uma vez a
auto-denominada Cidade Brilhante no cimo da Colina se deleitou com as
celebrações espalhafatosas do "fim da história"
e com os tóxicos neocons, gerados no período entre guerras por
meio da conspiração do trotskismo de Nova York, planeando a sua
tomada do poder.
Hoje, não é a ameaça da Alemanha-Japão, mas o
espectro de um entendimento Rússia-China-Alemanha que aterroriza o Poder
Hegemónico, o trio Eurasiano capaz de remeter a dominação
global americana para o caixote do lixo da História.
Entremos na "estratégia" americana. É um
prodígio de estreiteza mental, nem mesmo aspirando ao estatuto
infrutífero de um exercício de ironia ou de desespero,
cedendo ao
Carnegie Endowment
, com seu quartel general de fazedores de opinião entre o Dupont e
Thomas Circle ao longo da Massachusetts Avenue em Washington DC.
Fazer a política externa dos EUA funcionar melhor para a classe média
é uma espécie de relatório bipartidário que
orienta a atual e confusa administração tipo
Crash Test Dummy
. Um dos onze relatores envolvidos é o Conselheiro de Segurança
Nacional Jake Sullivan. A noção de que uma estratégia
imperial global e neste caso uma classe média
profundamente empobrecida e enfurecida, partilham os mesmos interesses nem
mesmo se qualifica como uma piada de mau gosto. Com "pensadores" como
estes, o Hegemónico nem mesmo precisa de "ameaças"
eurasianas.
Querem conversar com o Sr.
Kinzhal
?
Enquanto isso, num roteiro digno da canção de Dylan,
Desolation Row
, reescrita pelos Três Patetas
(
The Three Stooges
)
, os proverbiais caniches atlantistas estão a arrancar os cabelos porque
o
Pentágono ordenou a partição da NATO: a Europa
Ocidental deverá conter a China e a Europa Oriental deverá conter
a Rússia.
No entanto, o que realmente está a acontecer nos corredores do poder
europeu que realmente importam não, não é
Varsóvia é que não apenas Berlim e Paris se recusam
a antagonizar Pequim como ponderam mesmo sobre como se aproximarem de Moscovo
sem enfurecer o Hegemónico.
E já basta da microondulação kissingeriana do
"dividir e reinar". Uma das poucas coisas que o notório
criminoso de guerra realmente entendeu foi quando observou, após a
implosão da URSS, que sem a Europa "os EUA se tornariam uma ilha
distante no litoral da Eurásia": viveriam "na solidão,
de um estatuto menor".
A vida é uma chatice quando o almoço grátis (global) acaba
e é preciso enfrentar não apenas o surgimento de um
"concorrente igual" na Eurásia (copyright Zbig "Grand
Chessboard" Brzezinski), mas uma parceria estratégica abrangente.
Receia que a China esteja comendo o seu almoço, jantar e ceia mas
ainda precisa de Moscovo como o inimigo escolhido, porque é isso que
legitima a NATO.
Chamem-se os três patetas! Vamos enviar europeus para patrulhar o Mar da
China Meridional! Vamos fazer com que essas nulidades do Báltico e mais
os patéticos polacos forcem a Nova Cortina de Ferro! E vamos implantar o
Russofóbico
Britannia Rules the Waves
em ambas as frentes! Controle a Europa ou fracasse. Daí o
Admirável Mundo Novo da NATO: o fardo do homem branco revisitado
contra a Rússia-China.
Até agora, a Rússia-China tem vindo a exibir uma infinita
paciência taoísta ao lidar com aqueles palhaços. Não
mais.
Os principais participantes desta comédia dramática, como uma
série de TV, viram claramente através da névoa da
propaganda imperial. Será uma estrada longa e sinuosa, mas o horizonte
acabará por revelar uma aliança
Alemanha-Rússia-China-Irão que reequilibrará o tabuleiro
de xadrez global.
Este é o pior pesadelo da Noite Imperial dos Mortos-Vivos
daí esses simplórios emissários americanos a correrem
freneticamente por múltiplas latitudes tentando manter as
satrápias na linha.
Enquanto isso, do outro lado do lago, China-Rússia constroem submarinos
como se não houvesse amanhã, equipados com mísseis de
última geração e os Su-57s convidam os
espertalhões
(wise guys)
para uma conversa com o hipersónico Sr. Kinzhal.
Sergey Lavrov, como um aristocrático
Grand Seigneur
, deu-se ao trabalho de esclarecer os palhaços com uma
perfeita e erudita distinção
entre o império da lei e a "ordem internacional baseada em
regras" autodefinidas pelo Hegemónico.
Isso é demais para seu QI coletivo. Talvez o que eles registem é
que o Tratado Russo-Chinês de Boa Vizinhança, Amizade e
Cooperação, assinado inicialmente em 16 de julho de 2001, acaba
de ser prorrogado por mais cinco anos pelos presidentes Putin e Xi.
À medida que o Império do Caos é progressiva e
inexoravelmente expulso das terras centrais do planeta, a Rússia e a
China administram em conjunto os assuntos da Ásia Central.
Na
conferência sobre as relações dos países da Ásia Central e do Sul
, em Tashkent, Lavrov pormenorizou como a Rússia está a conduzir
"a Grande Parceria Eurasiana, um esboço unificador e integrador
entre os Oceanos Atlântico e Pacífico que é tão
livre para o movimento de bens, capital, trabalho e serviços quanto
possível e que está aberto a todos os países do continente
comum da Eurásia e às uniões de integração
aqui criadas".
Depois, há a
Estratégia de Segurança Nacional Russa
atualizada, a qual sublinha claramente que construir uma parceria com os EUA e
alcançar uma cooperação vantajosa com a UE é uma
luta árdua: "As contradições entre a Rússia e
o Ocidente são sérias e difíceis de resolver". Em
contraste, a cooperação estratégica com a China e a
Índia será expandida.
Um terremoto geopolítico
No entanto, o avanço geopolítico definidor do segundo ano dos
Raging Twenties
pode muito bem ser a China a dizer ao Império: "Já
basta". Tudo começou há mais de dois meses em Anchorage,
quando o formidável Yang Jiechi
fez sopa de barbatanas de tubarão
com a desamparada delegação americana. A peça de
resistência veio de Tianjin, onde o vice-ministro das
Relações Exteriores Xie Feng e seu chefe Wang Yi reduziram a
medíocre burocrata imperial Wendy Sherman ao status de croquete fora do
prazo.
Esta
análise cáustica
de um think tank chinês passa em revista todas as questões-chave.
Eis os destaques:
Os americanos queriam garantir que "barreiras e limites" fossem
estabelecidos para evitar uma deterioração das
relações EUA-China, a fim de "administrar" o
relacionamento de forma responsável. Isso não funcionou, porque a
abordagem deles era "terrível".
"O vice-ministro das Relações Exteriores chinês Xie
Feng acertou em cheio quando disse que a tríade
"competição, cooperação e confronto" dos
EUA é uma "venda nos olhos" para conter e suprimir a China. O
confronto e a contenção são a essência, a
cooperação é conveniente e a competição
é uma armadilha do discurso. Os EUA exigem cooperação
quando precisam da China, mas em áreas onde pensam que têm uma
vantagem, desvinculam-se, cortam fornecimentos, bloqueiam e sancionam e
estão dispostos a entrar em choque e confrontar a China para
contê-la".
Xie Feng "também apresentou duas listas aos EUA, uma lista de 16
itens solicitando que os EUA corrijam as suas políticas, palavras e
ações erradas em relação à China, e uma
lista de 10 casos prioritários de preocupação da China
(...) se estas questões anti-China causadas pelos EUA não forem
resolvidos, o que há então para conversar entre a China e os EUA?
E então a cereja em cima do bolo: eis as três linhas limites
traçadas para Washington. Resumindo:
1. "Os Estados Unidos não devem desafiar, denegrir ou mesmo tentar
subverter a via e o sistema socialista com características chinesas. O
caminho e o sistema da China são a escolha da sua história e do
seu povo, e dizem respeito ao bem estar a longo prazo de 1 400 milhões
de chineses e ao destino futuro da nação chinesa, que é o
interesse central a que a China deve aderir."
2. "Os Estados Unidos não devem tentar obstruir ou mesmo
interromper o processo de desenvolvimento da China. O povo chinês
certamente tem direito a uma vida melhor, e a China também tem direito
à modernização, que não é monopólio
dos Estados Unidos e envolve a consciência básica da humanidade e
a justiça internacional. A China insta o lado dos EUA a suspender
rapidamente todas as sanções unilaterais, altas tarifas,
jurisdição de braço longo e o bloqueio de ciência e
tecnologia imposto à China."
3. "Os Estados Unidos não devem infringir a soberania nacional da
China, muito menos minar a integridade territorial da China. As questões
relacionadas com Xinjiang, Tibete e Hong Kong nunca são sobre direitos
humanos ou democracia, mas sim sobre os aspetos positivos e negativos da luta
contra a "independência de Xinjiang", "independência
do Tibete" e "independência de Hong Kong". Nenhum
país permitirá que sua segurança soberana seja
comprometida. Quanto à questão de Formosa (Taiwan), é uma
prioridade máxima (...) Se "Independência para Formosa"
se atrever a ser provocada, a China tem o direito de tomar todos os meios
necessários para impedi-la".
Será que o Império do Caos registou todos os itens acima? Claro
que não. Assim, a inexorável podridão imperial
continuará, com espalhafato, mas sem um melodrama digno de um
Gotterdammerung
[2]
mal tendo um olhar dos Deuses: "onde eles sorriem em segredo,
olhando para terras devastadas / praga e fome, peste e terremoto, profundezas
rugindo e
areias ígneas / lutas ressoando e cidades em chamas, navios que se
afundam e mãos em oração". Como imortalizou Tennyson.
No entanto, o que realmente importa, no âmago da realpolitik, é
que Pequim já pouco se importa. Tal como foi afirmado: "Os chineses
já estão fartos da arrogância americana e já passou
o tempo em que os EUA tentavam intimidar os chineses."
Agora é o início de um admirável mundo geopolítico
novo e uma antevisão do Réquiem pelo império.
Muitas sequelas se seguirão.
31/Julho/2021
[1] De Apolo, deus da razão e do racional
[2] Crepúsculo dos Deuses, ópera de Wagner, em alemão:
Götterdämmerung.
[*]
Jornalista. As suas obras principais estão
aqui
.
O original encontra-se no
Asia Times
e em
www.informationclearinghouse.info/56676.htm
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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