Despedindo na surdina

por Naomi Klein [*]

Bremer, o homem certo para o trabalho sujo. As ruas de Bagdade são um pântano de crime e de lixo. Os estabelecimentos locais, já quase em ruínas, vão à falência, incapazes de competir com as importações baratas. O desemprego aumenta, e milhares de funcionários públicos despedidos protestam nas ruas.

Por outras palavras, o Iraque encontra-se como qualquer outro país que tenha passado pelos “ajustamentos estruturais” de disparo rápido prescritos por Washington, desde a infame “terapia de choque” aplicada à Rússia no princípio dos anos noventa até à desastrosa “cirurgia sem anestesia” na Argentina alguns anos depois. A única diferença é que a “reconstrução” do Iraque faz com que aquelas reformas forçadas pareçam um balneário de repouso.

Paul Bremer, o governador do Iraque designado pelos Estados Unidos, já demonstrou, na sua estadia de algumas semanas no país, ser uma espécie de fiasco no capítulo da democracia, anulando os planos de que o povo iraquiano deveria eleger o seu próprio governo interino em favor da equipa de assessores por ele próprio escolhida. Todavia, Bremer demonstrou ter um grande talento quando se trata de desenrolar o tapete vermelho para as multinacionais norte-americanas.

Em poucas semanas, esquartejou o sector público do Iraque, tal como o antigo presidente executivo da Sunbeam — “ Chainsaw ” Al Dunlap [1] — envergando um colete para-balas. Em 16 de Maio, Bremer dispensou das suas funções no governo cerca de 30 mil altos funcionários do Partido Baas. Uma semana depois, dissolveu o Exército e o Ministério da Informação, lançando 400 mil iraquianos no desemprego, sem pensões ou programas de reemprego.

Claro que se os colaboradores e propagandistas de Saddam Hussein tivessem conservado o poder no Iraque ter-se-ia tratado de uma catástrofe em matéria de direitos humanos. A "desbaasificação", como se chamou ao expurgo de funcionários do partido, pode ser a única forma de evitar o regresso de adeptos de Saddam — e o único benefício resultante da guerra ilegal de George W. Bush.

No entanto, Bremer foi mais além de um simples expurgo entre os poderosos fiéis do Partido Baas, atacando em grande escala a própria máquina do Estado. Licenciados que estão ligados ao partido desde crianças e que não têm qualquer afecto a Saddam enfrentam agora o despedimento, ao mesmo tempo que foram despedidos em massa funcionários públicos de escalões inferiores que não têm nenhuma espécie de vínculo com o partido. Nuha Najeeb, antigo director de uma editora em Bagdade, disse à Reuters: "Não tinha qualquer relação com os meios de comunicação ligados a Saddam... então por que me despediram?"

À medida que o governo de Bush é cada vez mais claro nas suas intenções de privatizar as indústrias estatais do Iraque e partes do governo, a “desbaasificação” de Bremer assume um novo significado. Trabalha só para afastar os membros do Partido Baas ou está também a trabalhar para desagregar todo o sector público de forma a preparar hospitais, escolas e até o exército para a privatização por empresas norte-americanas? Assim, tal como a reconstrução é a desculpa para a privatização, a “desbaasificação” assemelha-se muito a uma demolição disfarçada.

INTEGRAÇÃO NO ESCURO

Perguntas semelhantes a esta surgem também do esquartejamento que Bremer fez às empresas iraquianas, já golpeadas por 12 anos de sanções e um mês e meio de saques. Bremer nem sequer esperou que se restabelecesse o fornecimento de energia eléctrica em Bagdade e que o dinar se estabilizasse, ou que chegassem as peças para as fábricas paralisadas, para declarar, em 26 de Maio, que o Iraque estava "aberto ao comércio". Televisores e produtos alimentares isentos de impostos inundaram as fronteiras, empurrando à falência muitos comerciantes iraquianos, incapazes de competir com essas importações. Foi assim que o Iraque se integrou na economia mundial de mercado livre: na escuridão.

Paul Bremer é, segundo Bush, "uma pessoa capaz". Certamente que sim. Em menos de um mês ele preparou largas franjas de actividades estatais para serem controladas por empresas, organizou o mercado iraquiano a favor dos importadores estrangeiros, eliminando a maior parte da concorrência local, e assegurou-se de que não haveria quaisquer interferências incómodas por parte do governo iraquiano — efectivamente, assegurou-se de que, durante este momento-chave em que se estão a tomar tantas decisões cruciais, nem sequer haja governo iraquiano. Bremer é, e só ele, o FMI do Iraque.

Como tantos dos agentes da política externa de Bush, Bremer vê a guerra como uma oportunidade de negócio. Em 11 de Outubro de 2001, exactamente um mês depois dos ataques terroristas em Nova Iorque e Washington, Bremer, que foi embaixador de Reagan para o contra-terrorismo, lançou uma campanha concebida para capitalizar a nova atmosfera de medo existente nas administrações das empresas norte-americanas. A Crisis Consulting Practice , uma filial do gigante dos seguros Marsh & McLennan Companies, especializou-se em ajudar as multinacionais a encontrar "soluções abrangentes e integradas para as crises " em todos os sectores, desde os ataques terroristas às fraudes de contabilidade. E, graças à sua aliança estratégica com a Versar Inc., especializada em armas químicas e biológicas, são fornecidos aos clientes de ambas as empresas "serviços totais de anti-terrorismo".

Para vender esta onerosa protecção às firmas norte-americanas, Bremer teve de estabelecer entre o terrorismo e a falhada economia mundial o tipo de relação explícita estabelecida pelos activistas e que os leva a serem chamados de lunáticos. Num documento de Novembro de 2001, intitulado “novos riscos nos negócios internacionais”, Bremer explica que as políticas de comércio livre "requerem o despedimento de trabalhadores, e que a abertura dos mercados ao comércio externo exerce grande pressão sobre os retalhistas tradicionais e os monopólios comerciais". Isto leva a "crescentes diferenças de salários e a tensões sociais" que, por sua vez, pode conduzir a uma série de ataques a firmas norte-americanas, desde terrorismo até tentativas governamentais para reverter as privatizações ou suprimir os incentivos ao comércio.

PROVOCAR O TERRORISMO
E VENDER O SEGURO CONTRA O TERRORISMO


Poderia sem dúvida estar a descrever as consequências que as suas próprias políticas têm no Iraque. Mas as pessoas como Bremer sabem sempre jogar em dois tabuleiros ao mesmo tempo. Tal como um hacker que ataca sítios Internet de empresas para em seguida vender os seus serviços como perito em segurança de redes, daqui a alguns meses Bremer poderá muito bem estar a vender seguros anti-terrorismo às mesmas empresas que acolheu no Iraque.

E por que não? Tal como Bremer disse aos seus clientes da Marsh, a globalização pode ter “consequências negativas a curto prazo para muitos", mas leva também à "criação de riqueza sem precedentes".

Assim foi para Bremer e seus sequazes. Em 15 de Maio, três dias depois da sua chegada ao Iraque, o seu antigo chefe, Jeffrey W. Greenberg, director-geral da MMC, anunciou que 2002 "foi um grande ano para a Marsh — as receitas operacionais aumentaram 31 por cento. A especialização da Marsh em análise de risco e em apoio aos clientes na elaboração de programas de gestão de riscos registou grande procura. As nossas perspectivas nunca foram tão boas".

Muitos chamaram à atenção para o facto de Paul Bremer não ser um perito em política iraquiana. Mas isso não importa. Ele é um perito em lucrar com o terror da guerra e em ajudar as multinacionais norte-americanas a fazer dinheiro em terras longínquas onde não são nem populares nem benvindas.

Por outras palavras, é o homem ideal para este genero de serviço.

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[1] O sr. Al Dunlap adquiriu o pseudónimo de "O Esquartejador" (Chainsaw) , devido aos despedimentos em massa que costuma efectuar quando reestrutura empresas.

[*] Jornalista do Canadá, autora de "Janelas e Grades".

O original encontra-se em
http://www.thenation.com/doc.mhtml?i=20030623&s=klein


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

18/Jun/03