Bush quer a desobediência civil?
Então vamos dar-lhe.

por Naomi Klein

Naomi Klein O presidente dos Estados Unidos está incitando os iraquianos contra Saddam Hussein. É hora de virar o jogo e Voilà! fazer guerra contra a própria guerra.

No Pentágono, isso se tem sido chamado de Voilà Moment, que poderia bem ser A Hora do Vamos Ver. É como se os soldados e civis iraquianos, com bombas caindo sobre Bagdá, de repente coçassem a cabeça e dissessem: "Essas bombas não são para nos matar e à nossa família. São para nos libertar de um ditador malvado!". Nesse ponto, eles agradeceriam ao Tio Sam e baixariam as armas, abandonando seus postos e erguendo-se contra Saddam Hussein. Hora do Vamos Ver! Pelo menos é assim que a coisa funciona, de acordo com os especialistas em "operações psicológicas" que já estão empreendendo uma feroz guerra de informação no Iraque.

A Hora do Vamos Ver fez seu primeiro estrago, no jargão militar, na última segunda-feira, quando um repórter do New York Times citou essa expressão, usada por um oficial não identificado. Esse bombardeio de tiradas militares pode ser o último plano de Colin Powell para obter o apoio francês do Conselho de Segurança. Mas é mais provável que seja mais um produto da administração Bush, voltada ao emprego de executivos de mídia e incipientes consultores administrativos. Essa Hora do Vamos Ver não lembra o tal do Fator Uau, vendido a milhões de executivos como a chave para criar uma marca poderosa? Bem, mas de onde quer que a idéia tenha surgido, o Pentágono está de olho na Hora do Vamos Ver, e não vai poupar gastos para atingir seu objetivo.

Transmissores aéreos estão sobrevoando o Iraque, espalhando propaganda por rádio. Os negócios iraquianos e as autoridades políticas e militares estão sendo bombardeados com emails e telefonemas instando-os a "ver a verdade" e mudar de lado. Os aviões de guerra despejaram mais de oito milhões de panfletos informando aos soldados iraquianos que sua vida será poupada se eles abandonarem seu equipamento militar. "É uma mensagem direta aos que manuseiam as armas", afirma o general T. Michael Moseley, comandante das forças aliadas no Golfo Pérsico. De acordo com o official veterano citado no Times , o comando central vai saber se a Hora do Vamos Ver deu certo quando "virmos uma ruptura na liderança". Em outras palavras, as forças militares dos EUA não querem menos que a desobediência civil em massa no Iraque, uma recusa a obedecer ordens e participar de uma guerra injusta.

Mas será que vai funcionar? Estou cética a respeito. Aliás, houve uma Hora do Vamos Ver durante a última guerra do Golfo. Muitos iraquianos, que moravam perto da fronteira do Kuwait, acreditaram nas promessas estadunidenses de que teriam apoio caso se rebelassem contra Saddam Hussein. Pouco depois, houve a Hora do Danem-se. Os rebeldes foram abandonados pelas forças dos EUA e deixados para serem massacrados por Saddam. Mas esse negócio de Hora do Vamos Ver me faz pensar: a desobediência civil que os Estados Unidos querem provocar é o que o movimento antiguerra precisa em nossos países se queremos realmente parar ou, pelo menos, restringir a devastação iminente no Iraque. O que seria necessário para que uma multidão nos Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Canadá e outros que colaboram com os esforços antiguerra, rompessem com seus líderes e se recusassem a ceder? Será que criaríamos aos milhares a Hora do Vamos Ver em nossos países? Essa é a pergunta que o movimento mundial contra a guerra enfrenta enquanto planeja prosseguir com marchas espetaculares como a de 15 de fevereiro.

Durante a guerra do Vietnã, milhares de jovens estadunidenses decidiram romper com seus líderes quando receberam a convocação. Foi essa disposição de ir além do protesto e praticar a desobediência ativa que, pouco a pouco, varreu a viabilidade doméstica da guerra. Em que os opositores de hoje e aqueles desertores se parecem? Durante toda a semana, na Itália, ativistas bloquearam dezenas de trens que levavam armamentos e pessoal dos EUA para uma base militar perto de Pisa. Trabalhadores portuários recusaram-se a carregar navios com equipamento de guerra. No último fim-de-semana, duas bases militares estadunidenses foram bloqueadas na Alemanha. Isso também aconteceu no consulado dos Estados Unidos, em Montreal, e na base da Real Força Aérea, em Gloucester, Inglaterra.

No próximo sábado, milhares de ativistas irlandeses são esperados no aeroporto Shannon. Apesar de a Irlanda se dizer neutra, ela está sendo usada pelos militares estadunidenses para reabastecer aviões a caminho do Iraque. Em Chicado, na semana passada, mais de 100 alunos do nível médio protestaram do lado de fora da sede da Leo Burnett, empresa de publicidade encarregada da campanha militar voltada aos jovens. Os estudantes alegam que faltam verbas nas escolas de ensino médio em que estudam latinos e afrodescensdentes. Além disso, os recrutas superam em muito o número de alunos matriculados. O plano antiguerra mais ambicioso vem de São Francisco, onde uma coalizão de grupos tem chamado para um urgente contra-ataque não violento no dia seguinte após o início do conflito: "Não vá ao trabalho nem à escola. Diga que está doente, deserte. Vamos impor um verdadeiro custo econômico, social e político, boicotando o comércio até que a guerra pare". Essa é uma idéia de peso: explodir bombas pacíficas onde quer que haja lucro com a guerra, como postos de gasolina, fábrica de armamentos e redes de tevê que adoram guerra. Pode ser que isso não pare a guerra, mas vai mostrar que, entre quem defende o uso da força militar e um pacifista, há a resistência pela proteção da vida.

Para alguns, essa escalada da guerra contra a guerra parece extremismo. Devia haver simplesmente mais marchas nos fins-de-semana. Marchas maiores, tão grandes que fossem impossíveis de ignorar. É evidente que devia haver muito mais marchas. Entretanto, deve ficar claro que não há protesto que nossos politicos ignorem. Eles sabem que a opinião pública, na maior parte do mundo, está contra a guerra. O que nossos políticos estão cuidadosamente analisando antes que as bombas comecem a cair é se o sentimento antiguerra é pra valer ou se é "desencanado". A pergunta não é se as pessoas se importam com a guerra, mas o quanto elas se importam. Isso é uma preferência indulgente do consumidor, que vai evaporar perto das eleições? Ou é algo mais profundo e duradouro? Seria uma disposição, vamos dizer, do tipo Hora do Vamos Ver?

Na outra ponta do grau de importância, a Levi's européia decidiu ganhar dinheiro com o entusiasmo antiguerra e lançou uma edição limitada de um ursinho com um símbolo da paz preso na orelha. Você pode abraçá-lo enquanto assiste aos assustadores alertas contra o terrorismo na CNN. Ou pode desligar a CNN, recusar-se a ser somente um "paz e amor" afável e "desencanado" para levanter-se e parar a guerra.

[*] Escritora, do Canadá, autora de Fences and Windows.

A tradução foi publicada em http://brasil.indymedia.org/

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

28/Mar/03