por Miguel Urbano Rodrigues
Na América Latina, o fascismo raramente cabe nos moldes tradicionais.
Desde o fascismo boliviano de Unzaga de la Vega, nos anos 30, ao fascismo
castrense de Pinochet todos se caracterizaram, na teoria e na prática,
por uma atipicidade que não facilita o trabalho dos cientistas
políticos e dos historiadores.
No actual presidente da Colômbia pode ser identificado um dos exemplos
mais interessantes desse estranho fenómeno.
Álvaro Uribe Vélez é, pela vocação, sentir,
estilo de governo e opção ideológica, um adepto do
fascismo. Se houvesse vivido na década que precedeu a II Guerra
Mundial, Hitler seria para ele um modelo. O Fuhrer alemão
tê-lo-ia fascinado.
Como a época é outra, toma por referência, adaptando-o
à Colômbia, o neofascismo que inspira o sistema de poder dos
EUA.
Por outras palavras, mantendo intactas as estruturas institucionais do Estado,
trata de as esvaziar do seu conteúdo formalmente democrático. A
fachada persiste, mas a hipertrofia do Executivo impede na pratica o
Legislativo e o Judiciário de desempenharem o papel que lhes cabe.
Resultado: o sistema não pode funcionar; de dinâmico que deveria
ser torna-se estático.
Com a Constituição reduzida a papel quase sem valor, Uribe
desenvolve um projecto totalitário cuja praxis é fascista.
É um projecto complexo, extremamente ambicioso, cujo avanço
exige uma ruidosa orquestração publicitaria. Para destruir a
democracia o Presidente repete exaustivamente que o seu objectivo supremo
é defendê-la e aperfeiçoá-la. Por isso mesmo a
apologia da democracia torna-se constante no seu discurso político.
Neste contexto, a mais recente manobra de Álvaro Uribe é a
ofensiva desencadeada para a sua reeleição.
Um obstáculo a remover é a Constituição que limita
a quatro anos a permanência no Poder do Presidente da Republica.
Uribe acha insuficiente. Nos discursos repete com frequência que o
cumprimento do seu programa, pela ambição e grandeza, exige pelo
menos oito anos, talvez doze...
A senadora liberal Piedad Cordoba concluiu que, pelo estilo, a campanha para
a reeleição traz à memória a que Fujimori
desenvolveu no Peru.
Mas, não obstante contar com fortes apoios no Congresso, a tarefa de
Uribe não será fácil. Serão necessárias
oito votações para que o projecto de emenda constitucional que
visa a reeleição atinja o seu objectivo.
UM DEMAGOGO HÁBIL
Uribe Vélez não se assemelha pelo estilo aos ditadores
tradicionais. Presentemente não existe na América Latina um
presidente responsável por um conjunto de crimes comparável. O
seu curriculum define o homem e o político. Como governador do
Departamento de Antióquia foi ele quem deu ao paramilitarismo o
impulso que permitiu posteriormente aos bandos de Carlos Castaño
transformar-se na mais importante organização terrorista do
continente. A lista dos crimes comprovados que promoveu ou incentivou seria,
noutro país, suficiente para justificar uma condenação
à prisão perpetua. Mas na Colômbia a máquina da
Justiça, corrompida até á medula, tornou-se
cúmplice de Uribe.
Contrariamente a presidentes com a mesma concepção
totalitária do poder, Uribe Vélez não tem um discurso
truculento. Cultiva uma oratória caracterizada pela apologia
permanente da democracia representativa e do humanismo. É
inegavelmente um comunicador. Seria um erro subestimar a sua capacidade de
impressionar os interlocutores que lhe desconhecem o passado e os
métodos . O seu discurso é a antítese da sua pratica
política.
Nenhum dos presidentes que o precederam na Casa de Nariño conseguiu
como ele unificar a direita oligárquica e tornar aceitável para
a pequena e media burguesia um programa tão restritivo das liberdades
e direitos constitucionais.
Gradualmente, sem que milhões de colombianos disso tomassem
consciência, um neofascismo mascarado implantou-se no país
através de medidas e práticas que, permitindo a
sobrevivência da fachada institucional, abriram a porta a uma ditadura de
facto.
Bush, obviamente, identifica no colega colombiano uma alma gémea, com a
qual sente «grande empatia». Mas Álvaro Uribe não
somente obteve algum êxito no relacionamento pessoal com alguns
presidentes democráticos da América Latina como ampliou os
contactos, antes difíceis, com os grandes da União Europeia.
Contou para isso com a ajuda do seu amigo Aznar.
Voltou de mãos vazias no que se refere a ajuda material para o
combate à insurreição armada, mas conseguiu que os
governos da UE alterassem a sua política tradicional perante as
guerrilhas. Os membros das FARC-EP e do ELN encontram-se desde o ano passado
na clandestinidade em toda a Europa, onde são perseguidos pela Interpol
como «terroristas».
A propaganda de Uribe, entretanto, tem ampliado e manipulado os seus supostos
êxitos como negociador. Isso aconteceu após a reunião do
Grupo do Rio, no Cuzco, e depois da reunião de Londres sobre a
Colômbia.
No primeiro caso, o governo de Bogotá afirmou que o Grupo do Rio
tinha decido apoiar a chamada «política de guerra total» de
Uribe. Ora não saiu do encontro do Cuzco qualquer
declaração nesse sentido. A notícia era falsa; foi
inventada.
Quanto à reunião promovida na Inglaterra por iniciativa de Blair
e Aznar,
El Tiempo
e outros medias de Bogotá apresentaram o resultado dos debates, em que
participaram os 15 da UE e alguns governantes de outros países, como
uma vitoria estrondosa de Uribe, cuja política teria recebido apoio
incondicional.
El Tiempo,
num editorial intitulado «
El espaldarazo europeo»
festejou a imaginaria vitória do Presidente usando a tradicional
expressão de César ao comemorar a conquista das Gálias:
«
Vini, vidi, vici
(vim, vi, venci). Uma mentira deslavada. A grande vitoria foi
imaginária.
Omitiram os epígonos de Uribe que qualquer ajuda ao seu governo
será condicionada pela execução das 27
recomendações constantes do relatório de James Lemoyne,
representante na Colômbia do secretário-geral da ONU. Ora, uma
dessas exigências estipula que o governo não poderá
«introduzir na ordem jurídica colombiana normas que permitam aos
membros das forças armadas exercer funções de
polícia judicial nem outras, incompatíveis com a
independência da Justiça».
Acontece que essa ingerência do executivo no terreno do poder judicial
é precisamente um dos pilares do projecto do chamado «Estatuto
Antiterrorista» do governo. Este entende também que pode
decidir, sem intervenção da Justiça, se um cidadão
deve ou não ser extraditado a pedido de Washington.
Na época Uribe criticou com veemência o representante da ONU (e
o próprio secretário-geral) declarando inaceitáveis as
suas recomendações.
É oportuno recordar que a Comissão Interamericana dos Direitos
Humanos da OEA, exige também que todos os Estados membros da
organização se abstenham de «adoptar medidas legislativas
manifestamente incompatíveis com os seus objectivos».
URIBE E OS PARAMILITARES
As negociações em andamento para a reintegração dos
paramilitares na sociedade configuram um dos maiores escândalos
políticos que envolvem a Administração de Uribe.
O paramilitarismo faz parte da política do Estado colombiano. Foi
criado pelo exército para executar as tarefas mais sujas. Observadores
de organizações internacionais comprovaram no terreno muitos dos
incontáveis crimes cometidos pelos bandos assassinos de paramilitares.
Sobre o tema existe uma abundantíssima documentação,
traduzida em muitos idiomas .
Uribe, cujas íntimas relações com o paramilitarismo
motivaram acusações públicas, manifestou desde o
início do mandato o desejo de «reintegrar» os paramilitares.
Não é segredo que o governo pretende colocar no
exército e nas policias alguns dos principais quadros dos bandos de
Carlos Castaño, o chefe máximo dessa escória humana.
Outros irão engrossar o corpo de centenas de milhares de informadores
dos serviços de inteligência, os «sapos»,
correspondentes aos bufos da PIDE.
Nas negociações, os paramilitares são tratados pelos
representantes do governo como patriotas transviados, que recorreram à
violência movidos pelo desejo de proteger as populações
contra as guerrilhas comunistas. Algumas reportagens publicadas na imprensa
de Bogotá apresentam esses rapazes como criaturas ingénuas,
quase angelicais. O general Jorge Mora e a ministra da Defesa condecoraram
recentemente alguns paramilitares com cadastro pesadíssimo.
Na realidade, o historial de crimes do paramilitarismo é medonho, sem
paralelo com o dos piores esquadrões da morte do continente.
Castaño divertia-se a cortar com uma serra mecânica os
braços a guerrilheiros das FARC, antes de os atirar, moribundos,
às aguas do Magdalena, infestadas de jacarés.
Por si só os depoimentos divulgados por diferentes ONGs
relativos às chacinas recentes de camponeses, torturas, e
violações de mulheres praticadas pelos bandos paramilitares na
região de Barrancabermeja, no oriente de Antióquia, constituem um
libelo esmagador contra uma organização criminosa
responsável pelo assassínio de dezenas de milhares de pessoas.
São esses terroristas que Álvaro Uribe, na sua campanha
anti-terrorista, deseja reintegrar na sociedade.
Parcialmente, cabe sublinhar, pois 6 500 paramilitares pertencem a dois grupos
de bandidos que não participam nas negociações. Estas
desenvolvem-se com os bandos de Carlos Castaño e Salvatore Mancuso, os
dois capos.
Uma extensa entrevista com o último, publicada na edição
de 20 de Julho p.p., de
El Tiempo
, ilumina bem a mundividência do segundo e permite ao leitor formar uma
ideia sobre a atmosfera de hipocrisia da vida quotidiana na Colômbia
actual.
Julgo útil esclarecer que tanto Castaño como Salvatore Mancuso
são riquíssimos. Nunca o exército os incomodou,
não obstante se apresentarem com frequência em publico e entrarem
e saírem do país sem dificuldade.
Mancuso, ligado a famílias tradicionais, não está
preocupado com o pedido de extradição que o visa, apresentado
pelos Estados Unidos.
Expressando espanto, Salvatore, lugar tenente do Padrinho, acha que se trata
de um equívoco. Garante não ter relações com o
narcotráfico (deslavada mentira ) e diz não perceber sequer
porque o consideram narcotraficante nos EUA. Mas não duvida de que o
equívoco acabará logo que tenha a oportunidade de conversar sobre
o tema com os norte-americanos. «Quanto mais clara for a ideia deles
afirmou sobre quem somos e qual o nosso horizonte, mais
claramente perceberão o papel que lhes cabe desempenhar na
solução pacifica do conflito armado nacional». Talvez
nesse particular não lhe falte razão... As comadres vão
entender-se.
O mesmo cinismo transparece da resposta dada ao jornalista sobre os seus
planos para o futuro.
Salvatore é quase romântico no seu desabafo. Quando depuserem
as armas, os seus paramilitares querem «dedicar-se às
famílias e voltar à vida normal que levavam anteriormente».
Ele, pessoalmente, poderá, com prazer e alívio pelo dever
cumprido, entregar-se à sua «vocação de agricultor,
de industrial, de empresário».
Mancuso, como Castaño, é um mafioso. A hipocrisia escorre de
cada parágrafo do discurso desses Tartufos. As suas palavras prescindem
de comentários. Eticamente pertencem à mesma família de
Uribe, seu protector.
As FARC e a ONU
No dia 17 de Julho pp, o Secretariado do Estado Maior Central das FARC-EP
tornou pública uma Carta Aberta dirigida das Montanhas da
Colômbia ao secretário-geral das Nações Unidas.
No preâmbulo explicam o motivo da iniciativa: o apoio condicionado que a
ONU ofereceu à luta do presidente da Colômbia «contra o
terrorismo e o narcotráfico».
Registou a organização revolucionaria de Manuel Marulanda que a
ONU se absteve de usar a linguagem de Uribe para qualificar as guerrilhas
colombianas .
O Estado Maior das FARC esclarece e reivindica:
«As FARC-EP são povo em armas, uma organização
revolucionária político militar de oposição ao
Estado e ao regime político colombiano, uma força beligerante
com opção de poder. Ao tomarem conhecimento pela imprensa dos
resultados das entrevistas, fóruns e seminários de
emissário dos governo da Colômbia na União Europeia (...)
solicitam igual tratamento, espaço e garantias para explicarem a sua
proposta de Novo Governo para a Paz, contida na Plataforma Política e
transmitir directamente, de viva voz , os argumentos políticos
indispensáveis para que o senhor e a organização mundial
que representa, no uso do seu bom julgamento, possam analisar e concluir com
segurança se realmente convém dar apoio ao senhor Uribe
Vélez, ou se, pelo contrário, essa não é a
contribuição ao conflito interno da Colômbia».
Acrescenta o Secretariado do Estado Maior que a entrevista solicitada
permitiria informar a ONU do propósito das FARC de procurar uma
«solução política para o conflito social e armado
,pela via diplomática».
Para surpresa e preocupação de Uribe Vélez, Koffi Annan,
em declarações à comunicação social,
manifestou-se aberto ao diálogo com as FARC, que propuseram como seu
representante num eventual encontro o comandante Raul Reyes. Como é do
domínio público, as FARC exigem negociações
directas com o Governo, recusando a mediação das
Nações Unidas para solução dos problemas internos,
nomeadamente a troca de prisioneiros. Em confronto estão dois conceitos
de soberania nacional. Isso não impede que as FARC estejam empenhadas
em informar a ONU das suas posições reais, desmontando as
calúnias contra elas forjadas.
Entretanto, aprofunda-se a contradição entre o discurso de
Uribe, enfeitado com as flores da Paz, e a militarização do pais,
e a sua política de Guerra Total. No plano militar, as coisas correm
mal, aliás, para o presidente. O general Ospina, o comandante chefe,
continua a prometer vitórias decisivas sobre as guerrilhas. Mas nas
ultimas semanas as FARC infligiram duras derrotas ao exército e aos
paramilitares.
Os factos desmentem a gritaria triunfalista de Uribe exibindo-se nos seus
jogos de trapezista .
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