O óbvio difícil:
Tornar transparente a ameaça à humanidade
por Miguel Urbano Rodrigues
Ignacio Ramonet, de
Le Monde Diplomatique
, chamou a atenção para uma evidência ao afirmar que nunca
a humanidade esteve tão desinformada como hoje apesar do torrencial
fluxo de informação disponível.
A contradição configura uma ameaça. O funcionamento
perverso da comunicação social está na raiz de
acontecimentos alarmantes.
O velho aforismo de Goebbels segundo o qual uma mentira, à força
de repetida, se torna verdade (Salazar dizia "o que parece é")
documenta bem o proveito que o sistema de poder norte-americano tem tirado da
sua capacidade de impor à humanidade as
suas verdades,
desinformando-a e manipulando-a.
Uma das ameaças à própria sobrevivência do homem
resulta precisamente da extrema dificuldade que as grandes maiorias sentem em
compreender fenómenos político-sociais que condicionam
dramaticamente o futuro próximo.
Não estamos perante uma situação sem precedentes, embora
as consequências, essas sim, possam ser inéditas e
trágicas.
O entendimento da História profunda, tal como a concebia Lucien
Fèbvre, raramente é
assimilado pelas gerações que foram protagonistas de
acontecimentos que mudaram a vida nos quais elas emergiram simultaneamente como
sujeito e objecto.
Isso ocorreu com a Grécia do século V antes da nossa era, com a
Roma dos Antoninos, com a Revolução Inglesa de 1648, com a Grande
Revolução Francesa, com a Revolução Russa de
Outubro de 1917, e noutras situações de ruptura e
inovação.
O mesmo fenómeno do atraso na compreensão do movimento e do
significado da história está a repetir-se hoje com a humanidade
mergulhada numa crise de civilização provocada pela
globalização neoliberal e pela estratégia de
dominação perpétua e universal do sistema de poder dos EUA.
O combate eficaz a ameaças devastadoras que impendem sobre a humanidade
e a sua neutralização exigem a assimilação pela
consciência dos povos de uma realidade: o perigo vem precisamente da
engrenagem de poder que se apresenta como guardiã e defensora de
valores eternos da condição humana.
Parece fácil desmontar a inversão da realidade, mas, na
prática, a tarefa é dificílima.
A máquina da desinformação funciona a partir de um falso
axioma maniqueista que divide o mundo em bons e maus.
Vale a pena recordar que Mani, na Pérsia Sassânida, foi há
17 séculos, de certa maneira, um revolucionário, na medida em que
rompeu o imobilismo da religião oficial, apresentando como alternativa
ao mazdeismo uma nova mundividência. Mas os modernos maniqueistas
norte-americanos são ultra-reaccionários.
Os Estados Unidos a sociedade, o modo de vida, as
instituições, os governantes, as suas guerras distantes contra
povos indefesos - encarnariam o bem. Os seus adversários seriam
símbolos do mal. Como nação que se auto designa como
predestinada, os EUA estariam a assumir a defesa da civilização
criada ao longo de milénios contra forças satânicas,
mobilizadas para a destruir.
A mensagem é primária, mas o controlo quase absoluto do sistema
mediático nesta era da informação instantânea e
universal permite atingir em grande parte o objectivo visado.
O discurso maniqueista e farisaico não convence a
intelligentsia
, que o repudia, nem milhões de trabalhadores triturados pelas
políticas neoliberais, mas perturba as grandes maiorias, confunde-as e,
embora não obtenha a sua adesão, neutraliza-as, mantendo-as
passivas.
As forças progressistas, identificado o perigo, têm desenvolvido,
sobretudo após Seattle, um esforço para lhe fazer frente que
assume proporções mundiais. O I e o II Foro Social Mundial, em
Porto Alegre, e os muitos Foros alternativos a conclaves do G-7, do FMI, do
Banco Mundial, da OMC ou seja de instrumentos de acção da
Santa Aliança do grande capital traduzem a consciência da
necessidade de combater a engrenagem de poder montada pelos senhores do mundo
e de estimular o renascimento do espirito de luta em segmentos cada vez mais
amplos das massas que sofrem as consequências do neoliberalismo.
Forças representativas de quadrantes ideologicamente muito diferentes e
de mundividências culturais também díspares coincidem na
rejeição do neoliberalismo, na condenação da
instrumentalização e domesticação da ONU e das
agressões imperialistas dos EUA. Mas o debate travado e muitas das
acções de protesto empreendidas permitiram também
verificar que entre forças e personalidades unidas em torno de um
diagnóstico comum a convergência acaba quando se procura responder
à pergunta: o
que fazer?
A unanimidade simbolizada no lema «outro mundo é
possível» desfaz-se logo que se coloca uma questão
fundamental: como avançar para esse mundo?
O desacordo principia ao ser abordada a temática da alternativa ao
neoliberalismo. Condenar a globalização neoliberal e o
imperialismo não implica obrigatoriamente a rejeição
liminar do capitalismo. O último Foro Social Mundial, em Porto Alegre,
deixou transparente, através de comunicações apresentadas,
que muitas das destacadas personalidades ali reunidas (apareceram até
aliados da direita como o ex-presidente de Portugal, Mário Soares, e
ministros de governos da União Europeia) acreditam ainda na
possibilidade de uma reforma que humanize o capitalismo, tornando-o
aceitável.
Alguns, sem disso tomarem consciência, cumprem, afinal o papel que Lord
Keynes, conscientemente, desempenhou com muito talento, após a I Guerra
Mundial.
Admito que uma parcela desses intelectuais age de boa fé. As suas
intenções reformadoras estão em muitos casos acima de
suspeita. Mas falta-lhes a experiência vinda da militância em
partidos, movimentos e sindicatos. E essa ensina que o capitalismo é,
por essência, desumanizante e, como tal, insusceptível de uma
reforma que o torne aceitável para as suas actuais vítimas.
É minha convicção pessoal que no grande e positivo debate
gerado pela recusa da globalização neoliberal a prioridade
absoluta dada à procura de uma alternativa subalterniza uma
questão fundamental: o desmascaramento do inimigo. Sem lhe arrancarmos
a máscara não podemos combatê-lo eficazmente.
O objectivo suscita consenso. Mas tendemos a esquecer que esse
desmascaramento, em profundidade, está por fazer.
A exegese das estratégias a serem eventualmente adoptadas perde muito do
seu interesse prático se não for acompanhada de um trabalho de
caracterização da natureza e dos métodos do poder imperial
que forjou a globalização neoliberal e lhe garante o
funcionamento. Tudo o que havia nesse campo a dizer foi dito? Não.
Mas é imprescindível repetir incansavelmente o que tem sido
revelado. A assimilação da história contada é
sempre muito lenta.
Não tenhamos ilusões. Milhares de milhões de pessoas,
talvez a maioria da humanidade, capta uma imagem falsa dos EUA e sobretudo do
seu relacionamento com os países do Terceiro Mundo, imagem muito mais
próxima da difundida por Washington que da real.
Lénine afirmou que somente a partir do inicio de Maio de 17 o povo da
Rússia principiou a compreender que o Governo Provisório da
burguesia, cuja missão oficial consistia em aprofundar as conquistas da
Revolução de Fevereiro, era na prática um governo de
traidores, empenhado em destruí-las.
Noutro contexto histórico, prometendo erradicar da Terra o flagelo do
terrorismo e lançar os alicerces da futura idade do bem estar e da paz
entre os homens os EUA estão, afinal, militarizando o planeta
através de uma estratégia de terrorismo de Estado que hierarquiza
os povos e os divide em bons e maus, fazendo do uso da violência o
instrumento de transformação da historia e do alargamento do
fosso entre ricos e pobres.
Ronald Reagan, no auge da Guerra Fria, criou a imagem do «Império
do Mal», colando o rótulo à União Soviética.
George W Bush, agitando o espantalho de terríveis ameaças
à segurança dos EUA, retoma a fórmula e inventa os estados
bandidos (
rogue states)
agrupados no temível «Eixo do Mal».
O PÓLO DO MAL
Não sou moralista. Sempre me repugnou o maniqueísmo
político. Mas apetece recorrer a uma paráfrase para iluminar a
mentira. Neste inicio do século XXI quem se apresenta à
humanidade com despudor amoral são os EUA. Funcionam como "o
Pólo do mal".
O rol de calamidades desencadeadas pelo sistema de poder dos EUA nos
últimos anos não tem precedentes pela sua amplitude
planetária
Desde o Reich hitleriano, governo algum concebeu como o dos EUA uma
política de relações com o Terceiro Mundo tão
marcada por um pensamento fascistizante.
O inventário dos crimes cometidos pelo Estado norte-americano desde o
desaparecimento da URSS está feito. Em trabalhos de intelectuais
progressistas norte-americanos, como Noam Chomsky, encontramos, alias, as mais
completas descrições e analises das agressões, das
ignomínias, dos golpes ideados e financiados pela CIA, das
intervenções directas e indirectas que em desafio frontal ao
Direito Internacional e à Carta da ONU fizeram dos EUA um Estado
terrorista que se coloca acima das leis.
Essa acumulação recorde de crimes contra a humanidade, os
colectivos e públicos, e os encobertos (CIA, DEA, AID, etc) continua,
entretanto, a ser conhecida e avaliada somente por uma pequena minoria de
habitantes da Terra. O controlo da informação e a cumplicidade
covarde dos Estados da União Europeia, do Japão, do Canadá
e da Austrália (sócios na partilha das riquezas do mundo) e
também da Rússia (terceiromundizada e ela própria
ameaçada) encobre o rosto e muito da crescente agressividade do sistema
de poder onde se localiza o autentico pólo do mal.
É assim que desde a Guerra do Golfo, numa escalada assustadora, a
política da irracionalidade, do antihumanismo, da opressão dos
povos e da sobrexploração dos trabalhadores, da
destruição do ambiente e das culturas nos é diariamente
apresentada como mensageira do bem, patamar superior da democracia,
síntese das conquistas da civilização e baluarte da sua
defesa.
A INVERSÃO DO REAL
A inversão do real, melhor concretizada do que na época de Hitler
porque as instituições que regem a sociedade
norte-americana são ainda formalmente democráticas
configura uma tragédia -- é a palavra -- que tende a embrutecer
os povos e eliminar as suas potencialidades criadoras e o seu espirito de
resistência.
O assalto à razão assume facetas tão absurdas que um
cidadão de escassa inteligência, que erige em religião a
apologia da violência e da vindicta, ocupa em Washington o vértice
do sistema de poder que sonha com uma ditadura planetária e
repito-- ameaça a continuidade da vida na Terra.
Por si só aquilo que, sob o beneplácito imperial, está a
acontecer na Palestina (um genocídio que ultrapassa em horror as
profecias bíblicas veneradas pelos cruzados do novo holocausto) e a
guerra que reduziu a escombros antiquíssimas cidades do
Afeganistão (talvez hoje o museu arqueológico natural mais rico
da humanidade) a irracionalidade dessa estratégia de
indisfarçável barbárie deveria funcionar como alerta
dirigido à consciência dos povos.
Estamos, porem, muito longe de uma compreensão suficiente pelas grandes
massas da gravidade da ameaça. Daí a necessidade urgente de ao
esforço para fazer passar a uma fase superior as lutas contra a
globalização neoliberal somarmos um esforço paralelo
complementar e simultâneo, que ajude centenas de milhões de
pessoas a perceberem que o sistema de poder imperial dos EUA é, como
grande inimigo da humanidade, inimigo de cada cidadão da Terra
desejoso de paz, de liberdade, de progresso, de felicidade.
Tão fácil e tão difícil !
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