por Miguel Urbano Rodrigues
As grandes rupturas revolucionárias produziram-se no desenvolvimento de
crises globais muito profundas que punham em causa a continuidade do sistema de
exploração existente. Isso aconteceu com a
Revolução Francesa de 1789 e com as Revoluções
Russas de 1917. Lenine definiu essas situações limites numa
máxima que ficou famosa: «quando os de baixo não querem
mais ser governados como antes, quando os de cima não podem mais
governar como antes, então abre-se uma época de
Revolução social».
Neste limiar do século XXI assistimos precisamente ao agravamento da
contradição entre a apropriação privada por uma
insignificante minoria das riquezas produzidas e a socialização
crescente da produção. Nunca a desigualdade entre os homens foi
tão ampla e chocante como hoje. As trágicas consequências
do funcionamento dos mecanismos da globalização neoliberal
estão a gerar um movimento de repudio mundial do sistema que encontrou
expressão no lema do Foro Social Mundial:
outro mundo é possível.
Entretanto, os responsáveis pela mundialização do
capital financeiro e do sistema de exploração por ele gerado
proclamam que a era das revoluções findou. Um obscuro
funcionário do Departamento de Estado dos EUA condensou essa
convicção num livro
O Fim da Historia
segundo o qual a vitoria do capitalismo dito liberal seria definitiva,
impossibilitando futuras revoluções.
Não obstante a cada ano, quase a cada dia, a crise do capitalismo se
agravar numa demonstração da sua inviabilidade, uma campanha de
âmbito mundial sustenta que, tendo «o socialismo real»
fracassado e sendo doravante a revolução social uma
impossibilidade absoluta, não restaria à esquerda outra
opção que não fosse a de lutar por reformas do
«capitalismo real».
Essa campanha desenvolve-se em múltiplas frentes através de
discursos diferenciados. Persuadir os que rejeitam a
globalização neoliberal de que o socialismo não passa
de uma utopia, sendo prova disso a desagregação da URSS,
é um objectivo permanente identificável na estratégia
dos teólogos do neoliberalismo que colocam o mercado acima do
Estado, sacralizando-o.
Outro denominador comum na ofensiva que visa a confundir e desmobilizar as
forças progressistas encontramo-lo no esforço da direita para
destruir por dentro os partidos revolucionários.
É um esforço que vem de longe. As suas raízes mergulham
no trabalho realizado no inicio do século passado para recuperar a
social democracia alemã quando ela tinha um programa marxista e um
rumo revolucionário, e para dividir e neutralizar o POSDR russo. Nas
teses de Bernstein, na guinada à direita de Kautsky e dos
austro-marxistas, na condenação do espirito internacionalista de
Zimmerwald, no apoio aos mencheviques e aos socialistas
revolucionários russos durante a Revolução de Fevereiro
encontramos precedentes de fenómenos e comportamentos que ajudam a
compreender as viragens que levaram ao browderismo nos EUA, à
metamorfose do Partido Comunista Italiano, transformando-o num elo importante
do sistema capitalista, e fizeram do Partido Comunista Francês um
dócil instrumento da engrenagem de poder da burguesia francesa.
Num lúcido ensaio que
resistir.info
publicará em breve, o filósofo comunista francês George
Gastaud
[1]
ilumina bem as campanhas anticomunistas que criminalizam as
experiências nascidas da Revolução de Outubro com o
objectivo prioritário de incutir nos espíritos a ideia de que a
dominação planetária do capitalismo se tornou
irreversível. «As coisas -- escreve -- chegaram a tal ponto que
aqueles que continuam a identificar-se com a Revolução, a classe
operaria, Outubro de 17 ou a Comuna de Paris são acusados de
arcaísmo e conservadorismo, quando não os colocam no índex
pelo seu apego ao 'ao regime mais reaccionário da historia' (sic),
segundo Stephane Courtois: o regime soviético».
Quando os comunistas são caluniados pelos dirigentes do seu
próprio partido por serem comunistas, como acontece em França,
é preciso reconhecer que esse partido como organização
política rompeu com os princípios e valores do marxismo e foi
transformado num instrumento da burguesia, independentemente do sentir da
maioria dos seus militantes.
A critica profunda das causas da implosão da URSS e do apodrecimento
progressivo do PCUS está por fazer. Mas o reconhecimento e a
condenação dos erros, desvios e crimes cometidos em nome no
comunismo não implica de modo algum a aceitação do
revisionismo histórico que faz do antisovietismo e do antileninismo o
principal cimento ideológico dos defensores de uma
«renovação» dos partidos comunistas concebida para os
transformar em social democratas (a serviço do neoliberalismo).
A confusa mas frenética teorização sobre a morte das
ideologias que a pretexto de diabolizar a União Soviética
criminaliza globalmente todas as revoluções e a própria
ideia de Revolução tornou-se uma componente da ofensiva
anticomunista desenvolvida pela burguesia no seu apoio àqueles que,
afirmando estar empenhados na «renovação» dos partidos
comunistas, preconizam na pratica «mudanças» que levariam
à sua destruição. O entusiasmo com que a
comunicação social saúda em Portugal, por exemplo
as campanhas dos «renovadores comunistas», estabelecendo uma
fronteira entre os bons e os maus comunistas, é por si só
esclarecedor do que os partidos da direita esperam da «modernidade
comunista».
A satanização do comunismo e da sua historia como sublinha
Georges Gastaud «permite hoje criminalizar progressivamente toda a
resistência a essa nova ordem mundial estadunidense que é
precisamente o fruto venenoso da contra-revolução. Não
chegou então a hora para aqueles que querem seguir o caminho
revolucionário de denunciar em conjunto essa revisão da
história que suja as revoluções de ontem para melhor
«vacinar» a jovem geração contra as
revoluções de amanhã?»
Os marxistas europeus que não reagem à
criminalização da Revolução de Outubro, e aceitam
passivamente «o escandaloso amalgama mediático universitário
entre fascismo hitleriano e
socialismo real
» estão, sem o perceber, a abrir caminho ao avanço dos
partidos da extrema direita.
A cavalgada neofascista na Itália, na Holanda, na Áustria
confere actualidade ao ensinamento de Politzer: «o espirito critico, a
independência intelectual não consistem em ceder á
reacção, mas sim em não ceder».
Gastaud recorda uma evidencia esquecida: «todas as capelas do
anticomunismo somente censuraram, a bem dizer, uma única tara a Lenine:
a sua vitoria
; um só erro à ditadura do proletariado:
a expropriação
durante varias décadas das classes possuidoras, despossuídas
pela
populaça
».
Reagan vulgarizou a expressão «o império do mal» para
anatemizar a URSS. Com os olhos postos no império, esquecemos que
André Glucksmann, um dos «novos filósofos franceses»,
então adulado por esquerdistas, soltou um brado necrófilo quando
os EUA instalaram na RFA os mísseis Pershing: «antes mortos do
que vermelhos», e Mitterrand, um presidente que dizia ser socialista,
apoiou aqueles para os quais pela «defesa dos valores ocidentais»
valia a pena arriscar o desaparecimento da humanidade numa guerra nuclear
contra a URSS.
RENASCIMENTO
DO MOVIMENTO COMUNISTA INTERNACIONAL
O ensaio de Georges Gastaud é simultaneamente um trabalho
didáctico e uma reflexão sobre a história que desemboca
no esboço de um projecto estratégico.
Parte do seu estudo é dedicado à temática da luta de
classes no mundo contemporâneo e à necessidade do renascimento do
Movimento Comunista Internacional .
Pela densidade do seu pensamento qualquer resumo empobrece os conceitos
expostos. Afigura-se-me, entretanto, útil recorrer a algumas
transcrições de parágrafos em que aborda a questão
da luta de classes depois de sustentar que os conceitos fundamentais do
marxismo e do leninismo não foram superados pela contra
Revolução e surgem, pelo contrario, como indispensáveis
para procedermos à sua analise.
«Na
aparência
escreve a luta de classes ficou atrás
. Na aparência,
a classe operária minguou e não está mais em
condições de dirigir a resistência ao capitalismo.
Na aparência
o enfrentamento capital-trabalho perde o seu papel central em beneficio dos
problemas «societais».
Na aparência
a «forma-partido» perde a sua justificação em
beneficio do «movimento associativo», da acção
humanitária e da «sociedade civil». Mas, precisamente, o
papel do marxismo consiste em ajudar a superar as aparências enxergando
os processos históricos que não são visíveis .
«Assim a respeito da classe operária.
Claro que se a definirmos como o conjunto dos trabalhadores manuais
assalariados e activos, isto é, a partir de características mais
empíricas do que cientificas, ela parece derreter-se ao escuro sol das
deslocalizações e da informatização da
produção. Mas se incluirmos na
classe dos trabalhadores assalariados
todos aqueles que contribuem directamente à produção da
mais valia capitalista, quer em acto quer potencialmente, se reconhecermos o
caracter simultaneamente nacional e internacional dessa classe, se levarmos
em conta a diversificação do trabalho produtivo moderno (que
penetra os serviços e abrange uma parcela crescente do trabalho
intelectual), se não esquecermos nem os operários reformados, nem
os jovens das escolas técnicas, nem os operários imigrados,
legais e clandestinos, nem a massa dos que procuram emprego e dos
«temporários», candidatos a tarefas de circunstancia, se
não esquecermos também o numero cada vez mais importante dos
operários da industria e dos estaleiros, dos transportes, da energia e
das telecomunicações, então
a classe proletária na acepção marxista da palavra
continua a ser politicamente decisiva
na população dos países industrializados, o que é
ainda mais evidente em escala planetária.
(...)« O verdadeiro problema consiste então menos em
«relançar a luta de classes» do que
permitir que ela se expresse de maneira justa e adequada,
unindo todos os explorados (de um pais, de um continente, do mundo inteiro)
contra a minoria cada vez mais reduzida dos multimilionários
exploradores. Aliás, acontece por vezes, sobretudo quando a classe
capitalista e o seu Estado são obrigados pela pressão
internacional a fazer frente à classe trabalhadora no seu conjunto, que
todos os trabalhadores, ou pelo menos um numero significativo deles, entrem
«em conjunto» na luta: foi o que ocorreu em França em Maio
de 68, ou, em menor grau, em Dezembro de 95, quando Juppé,
forçado a intervir contra os défices da Segurança Social
por Helmut Kohl e os ayatollahs da moeda única, golpeou
simultaneamente as conquistas dos ferroviários e a Segurança.
É isso que poderá acontecer com o governo Raffarin, intimado
já por Bruxelas a «tomar medidas» contra o serviço
publico de energia e certas reformas. Tudo isso somente reforça a
necessidade de uma autentica vanguarda capaz de federar as lutas
«visando» o inimigo principal, o grande capital. É esse
défice de vanguarda
que hoje vivemos onde os partidos da esquerda plural e os seus
micro-satélites erráticos do trotsquismo demonstram ser incapazes
de abrir uma perspectiva aos trabalhadores do sector privado e do publico,
sejam eles activos, reformados ou desempregados, franceses ou imigrados».
Da sua análise do desastre soviético e dos processos usados
por Gorbatchev para destruir na URSS o Estado e o Partido, o pensador
comunista francês conclui que o desenvolvimento da história,
longe de demonstrar a superação do marxismo, confirma, tal como
o rumo da Europa de Maastricht, a modernidade do instrumento materialista e
dialéctico forjado pela filosofia marxista.
«A mundialização capitalista -- afirma -- gera
objectivamente para a humanidade uma solidariedade de destino. O
exterminismo
que constitui uma tendência dominante do imperialismo
contemporâneo com as suas múltiplas dimensões que
ultrapassam de longe a componente militar, faz do capital financeiro, que
actualmente parasita o conjunto das actividades humanas, o inimigo comum de
toda a humanidade. Longe de diminuir o papel do combate de classe
confere-lhe, pelo contrario, um alcance universal sem precedentes. O
comunismo não é somente necessário para emancipar a
classe trabalhadora; se a irresponsabilidade do capital conduz às piores
loucuras militares, sanitárias, alimentares, ecológicas, o
combate anticapitalista está no cerne de todo compromisso consequente
contra a morte e a desumanização da humanidade».
A UNIÃO EUROPEIA E O
RENASCER DO PROJECTO REVOLUCIONÁRIO
Um olhar sobre o mundo hegemonizado pela globalização
imperialista revela-nos um panorama que traz à memória o
principio dialéctico da unidade dos contrários. As forças
em presença, incompatíveis pelos seus objectivos, estão
separadas por uma barricada de classe. De um lado temos -- como sublinha
Gastaud -- «o mundialismo imperialista e os seus subprodutos
reaccionários, os nacionalismos, racismos e outros integrismos; do outro
o patriotismo dos povos que defendem a sua soberania e um internacionalismo
proletário de nova geração solidário contra o
adversário comum dos assalariados da Europa e do mundo».
A rejeição cada vez mais ampla e generalizada do monstruoso
modelo de sociedade que os de cima, os exploradores, pretendem impor aos de
baixo, os explorados, perpetuando-o, empurra a humanidade para uma
confrontação inevitável. De Seattle ao Foro Social
Mundial de Porto Alegre o clamor do protesto assumiu
proporções mundiais, tal como o da esperança, condensada
no lema «Outro mundo é possível».
Perante a pujança dessa autentica rebelião dos povos, Georges
Gastaud lembra-nos que o renascimento do Movimento Comunista Internacional se
apresenta quase como uma exigência da historia. Não se trata
apenas de suprir a falta de organicidade que marca a resistência
universal à globalização imperial. Na sua opinião
somente ele «poderia imprimir ao magnifico movimento
anti-globalização da juventude uma orientação
anticapitalista e antimperialista (...) Esse
renascimento comunista internacional
deveria articular-se com as resistências nacionais dos povos ao
imperialismo (da Palestina às FARC da Colômbia)».
Os parágrafos mais importantes do ensaio de Gastaud são aqueles
em que estabelece a ponte entre a necessidade desse renascimento comunista e
o papel que ele desempenharia no combate à tirania de um modelo
imperial que ameaça a humanidade, e a formulação de
uma estratégia capaz de mobilizar para a luta as vitimas do sistema,
a massa imensa de proletários de novo tipo, hoje majoritária no
planeta.
Gastaud é um pensador austero, incompatível com o discurso
sensacionalista. Entre muitos outros méritos tem o de ser um criador no
plano das ideias. Não procura a originalidade, mas inova na busca
daquelas opções que, por múltiplos motivos, se apresentam
como aparentemente impossíveis, mas que, com frequência, -- como
dizia o nicaraguense Carlos Fonseca -- contribuem para o avanço da
história.
O debate suscitado pela procura de alternativas para o capitalismo tende
para a estagnação. Existe consenso no tocante à
condenação da globalização imperial. Mas quando
se entra na discussão das saídas para a crise global as
respostas são insatisfatórias. Divergem nos matizes da
fórmula. Mas quase todas admitem tacitamente que o inimigo, pelo seu
enorme poder, não pode, ser derrotado. As alternativas propostas
oscilam, por isso, entre a tímida reforma do sistema e iniciativas
orientadas para o reformismo revolucionário.
Gastaud não teme ser criticado como cavaleiro da utopia: defende a
ruptura. O sistema é insusceptível de ser reformado em
beneficio das suas vitimas; terá de ser destruído.
Como?
O filósofo não generaliza. A ruptura, tal com a concebe, seria a
resultante de múltiplas acções diversificadas no
espaço e no tempo cujo efeito cumulativo desembocaria numa crise
geral à qual o sistema não poderia sobreviver.
Como francês, o seu primeiro campo de luta é a Europa dos 15 e
nela o seu pais. Para ele o grande desafio da classe operaria francesa
é assumir a direcção do «movimento de
convergência popular majoritário contra a Europa de Maastricht
não para «reorientar a Europa num sentido progressista» como
aspiram os adeptos da «mudança» (de Robert Hue) e muitos
ideólogos do trotskismo, mas sim para
romper
com os Tratados de Maastrich, Nice, Amsterdão, com a moeda única
gerida pelo Banco de Frankfurt e com o exército profissional europeu
comandado pela NATO».
É gigantesco o desafio. Gastaud sugere nada mais nada menos do que um
combate orientado para a ruptura da França com a União
Europeia. Não o afirma expressamente, mas ele tem consciência de
que a Europa Comunitária sem a França seria inviável.
Quando propõe a revogação das leis racistas francesas e
europeias, o direito de voto aos trabalhadores estrangeiros, «a defesa das
culturas nacionais dos povos da Europa contra a americanização
das línguas, dos estômagos, dos corações e dos
cérebros, está consciente de que a luta pelo desmoronamento
das altas muralhas erguidas pela UE, autentica Santa Aliança do
capital, seria, afinal, uma luta de contornos insurreccionais rumo à
revolução social.
O combate que antevê passa, obviamente, pelo renascimento do Partido
Comunista Francês.
O desmoronamento da União Europeia implicaria uma derrota esmagadora
do capitalismo. Os EUA não poderiam tirar benefícios desse
terremoto social, político e económico. Gastaud esboça
uma estratégia de choque, de transparente conteúdo
revolucionário.
Os grandes
media
franceses ignoraram o polémico trabalho de Georges Gastaud. Mas
esse silencio não lhe apaga o significado. Estamos perante um ensaio
lúcido que convida à reflexão sobre a historia, sobretudo
aqueles para quem -- é o meu caso -- a era das revoluções
não findou.
O capitalismo não desaparecerá através de reformas.
A própria escalada da estratégia de dominação
planetária do imperialismo norte-americano, ao deixar entrever
já o rosto medonho de um fascismo colonial de novo tipo, tende pela sua
irracionalidade e agressividade a abrir fissuras nas paredes da fortaleza
capitalista .
A Revolução é sempre a luta pelo impossível
aparente. Foi a sua transformação em possível real que,
em momentos decisivos, fez avançar a Humanidade.
________________
[1]
Georges Gastaud,
Refondation Reformiste ou Renaissance Communiste? -
-- trabalho escrito para a Editorial
Le Temps des Cerises,
Paris, Verão de 2002. O sítio web
http://www.chez.com/initiativecommuniste/
contem outros textos do autor.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info