REVOLUCIONÁRIOS, REBELDES
E FALSOS RENOVADORES
(*)
Miguel Urbano Rodrigues
A derrota do golpe na Venezuela voltou a chamar a atenção para a
América Latina como campo de lutas sociais e laboratório
ideológico.
Cientistas políticos e revolucionários, estimulados pelos
acontecimentos na pátria de Bolívar, debatem a nível
continental a questão fundamental do Poder e as estratégias e
tácticas inseparáveis da sua conquista e defesa.
O imperialismo norte-americano Pentágono, Departamento de Estado
e CIA esteve profundamente envolvido na conspiração. A
sua gente acompanhou passo a passo a montagem do golpe.
Chavez foi preso; formaram um governo de extrema direita e desencadearam uma
vaga de repressão. O fascismo andou à solta nas ruas.
E contudo o golpe foi derrotado; durou apenas 47 horas. Chavez está
novamente no palácio de Miraflores.
Significa isso que ficou assegurado o êxito na Venezuela da formula
segundo a qual a revolução é viável pela via
institucional? Longe disso. O saldo de mortos e feridos da intentona
aconselha prudência aos defensores da revolução social sem
violência. Por si só o novo discurso de Chavez confirma que o
pais está dividido. Generais envolvidos no golpe permanecem no Alto
Comando das Forças Armadas. A unidade inquebrantável do
Exército era uma aspiração do Presidente mas não
uma realidade .
A agressiva atitude de Washington dissipa dúvidas. Novas ameaças
impendem sobre a revolução bolivariana.
A CONFISSÃO DE MARCOS
Recentes declarações do subcomandante Marcos contidas numa
entrevista ao jornalista mexicano Júlio Scherer
(1)
vieram reactualizar
uma antiquíssima questão que antes da Revolução
Russa se expressava na antinomia «reforma ou revolução».
Não se pode negar ao líder do EZLN coragem pela forma como, sem
rodeios, colocou as coisas.
«A definição do revolucionário clássico
declarou não se adapta a nós». Foi categórico
e expressivo: «O destino é diferente. O revolucionário
tende a converter-se num político e o rebelde social não deixa de
ser um rebelde social. Um revolucionário pretende fundamentalmente
transformar as coisas de cima e não a partir de baixo, ao contrario do
rebelde social. O revolucionário propõe-se: vamos fazer um
movimento, tomo o poder e a partir de cima transformo as coisas. E o rebelde
social não. O rebelde organiza as massas e a partir da base vai
transformando sem ter que se colocar a questão do poder».
Marcos atribui ao revolucionário uma concepção vertical do
poder que excluiria a participação popular. É uma
definição voluntarista e redutora da qual como comunista
discordo. A afirmação de que o rebelde social organiza as massas
deforma, por generalizante, a realidade. Mas considero importante que o
dirigente do EZLN coloque a questão do poder, para o zapatismo, com
muita franqueza numa perspectiva reformista, embora diferente da
clássica dos austro-marxistas.
Marcos é sincero quando condena o capitalismo e o considera
incompatível com as aspirações do homem. Mas a teoria e a
pratica do seu movimento, ao defender a lenta transformação da
sociedade a partir quase da base zero, não configuram uma ameaça
para o capitalismo. Este não se sente em perigo quando os
adversários o querem derrotar através de reformas graduais. O
projecto afigura-se-lhe utópico. É esclarecedor que
televisões de dezenas de países tenham transmitido para todo o
mundo a marcha dos comandantes zapatistas sobre a Cidade do México e o
discurso que Marcos pronunciou na Praça do Zocalo.
Recordo que Raul Reyes, um comandante das FARC-EP, comentou então: Se
um simples destacamento das guerrilhas colombianas caminhasse cinco
quilómetros por uma estrada, na selva ou na montanha, não haveria
televisões a filma-lo, mas choveriam bombas do céu .
O sociólogo chileno Hugo Zemelman interveio recentemente na polemica
travada em torno da questão do poder, colocando-a numa perspectiva
marxista. «Para mim -- afirmou -- um revolucionário é, por
definição, um rebelde, mas nem sempre um rebelde é um
revolucionário». E, para clarificar as coisas, acrescentou:
«Um rebelde enfrenta o sistema, formula alternativas, cumpre uma
função critica, mas nem sempre coloca a
transformação do sistema nem a tomada do poder. O
revolucionário procura mudar o sistema, não entra no sistema,
trata de o derrubar, de o mudar».
E, abordando a «velha discussão a respeito da
contradição entre o partido e o movimento social» disse o
obvio, que muitos simulam ignorar: «creio que o movimento social, a
rebeldia social, é fundamental para manter os partidos em alerta
permanente, ao mesmo tempo que são necessários os partidos para
levar adiante a transformação».
O sistema de poder dos EUA tolera, com muitas restrições, alguns
rebeldes sociais; não aceita os revolucionários, sejam eles
colombianos, palestinos, bolivarianos da Venezuela, sem terra brasileiros, ou
os comunistas fieis à ideologia e aos princípios
O silencio que, de repente, envolveu o zapatismo, não obstante a
repressão na área de Chiapas se ter intensificado, resulta de uma
realidade que abalou o prestigio das teses de Marcos. A audiência
mundial alcançada pelo discurso mediático do subcomandante do
EZLN não pode ocultar uma evidencia: o novo Código
Indígena do México, aprovado pelo Congresso, é ainda pior
do que o anterior. Após uma década de luta, o zapatismo
não conseguiu melhorar a condição dos índios.
PARTIDOS E MOVIMENTOS
Três cientistas sociais de prestigio internacional como o egípcio
Samir Amin, a chilena Marta Harnecker e o mexicano Pablo Gonzalez Casanova
tratam em trabalhos recentes o tema de uma desejada cooperação
no combate ao neoliberalismo e ao imperialismo entre as diferentes
organizações e tendências da esquerda latino-americana.
Marta Harnecker expressa uma aspiração compartilhada pela maioria
da humanidade progressista ao defender a articulação dos partidos
políticos e dos movimentos sociais que coincidem na
rejeição do sistema de dominação que oprime os
povos do Continente. Mas o objectivo que enuncia «construir uma
confluência maior num grande bloco social anti-neoliberal de todos os que
sofrem as consequências do actual capitalismo» é muito
difícil de atingir, para não dizer romântico, porque as
discordarias principiam não apenas na escolha das formas de luta, mas na
questão da atitude perante o sistema, ou seja a sua
destruição ou a sua transformação.
LULA E O PT
As escaramuças que no Brasil precedem a próxima
eleição presidencial são esclarecedoras do que
está em causa no grande debate em curso .
O programa eleitoral do PT, apresentado após a vitoria de Lula nas
previas (85%), não é alentador. Depois de obter da Executiva
Nacional carta branca para alianças eleitorais com partidos do centro
direita, o candidato do Partido dos Trabalhadores esforçou-se na TV por
convencer a classe media de que na Presidência a sua política
não constituiria ameaça para o ordem social vigente. Segundo o
analista Luiz Alberto Magalhães
(2)
, do Observatório da Imprensa,
foi muito hábil, mas suscita preocupação o facto de o
responsável pela estratégia de
marketing
da sua
campanha ser um publicitário que contribuiu decisivamente para a
eleição de Maluf, o ex-governador e prefeito de São Paulo,
um dos políticos mais corruptos da direita brasileira.
Não se pode censurar a Lula que seja cauteloso. A prudência num
quadro como o do Brasil do ano 2002 é, pelo contrario, uma prova de
maturidade política. Mas a linguagem que o candidato do PT utilizou
para se distanciar do MST, sugerindo ainda segundo Luiz
Magalhães que «não vai tolerar
ocupações» justifica a apreensão que as suas
palavras suscitaram num amplo sector do seu próprio eleitorado.
Ninguém responsável espera de Lula, no caso de vencer a
eleição o que será muito difícil uma
política de matizes revolucionários. Um tal projecto é
incompatível com a correlação de forças existente,
mas existe uma enorme diferença entre um programa progressista,
orientado para uma democracia avançada e um programa cimentado em
concessões que inspiram desconfiança em partidos de esquerda
que apoiam Lula, como o Partido Comunista do Brasil e o Partido Socialista.
O PT, na sua actual fase, parece querer assemelhar-se a qualquer outro partido
da burguesia brasileira. E isso é preocupante. Traz à
memória o projecto e a retórica do francês Robert Hue.
Quando um partido de esquerda conquista o poder, ou pelo menos as suas
insígnias, utilizando mensagens conservadoras dirigidas aos seus
adversários, paga sempre uma pesadíssima factura pela
abdicação dos princípios.
A ideia de que «depois», após a vitoria, poderá,
então, desenvolver a sua verdadeira política e reassumir a linha
progressista que lhe proporcionou a confiança e o apoio dos
trabalhadores tal ideia traduz uma postura oportunista.
Se na Venezuela a esquerda, com uma constituição por ela
redigida, e dispondo de maioria absoluta no Congresso, foi confrontada com um
golpe de Estado ao tentar levar adiante reformas de conteúdo
revolucionário, parece evidente que no Brasil, no quadro de uma
constituição imposta pela burguesia, um governo PT esbarraria com
obstáculos intransponíveis se pretendesse introduzir por via
institucional transformações estruturais na sociedade que
apontassem para rupturas revolucionarias.
A consciência dessa realidade não implica porem a necessidade de
um programa eleitoral que nega o programa do partido pela natureza das
concessões feitas à direita. O imperialismo não se deixa
enganar por garantias de bom comportamento e declarações de
intenções vindas da esquerda.
A RENÚNCIA AOS PRINCÍPIOS
Na Europa encontramos precisamente o culto da ambiguidade e a renuncia aos
princípios nas sinuosas manobras políticas que assinalaram a
caminhada ao longo da qual alguns partidos comunistas realizaram através
das suas direcções a complexa metamorfose que os transformou de
marxistas-leninistas em sociais democratas, aliados da direita neoliberal.
Isso aconteceu com o italiano, está a acontecer com o francês.
Claro que o oportunismo se disfarça sob o manto de taticismos que o
escondem mal. Mas o seu novíssimo (na realidade bem velho) discurso
carrega no ventre as sementes da destruição do partido ou melhor
da sua total descaracterização. Falam de fidelidade ao projecto
humanista de transformação da sociedade, da sua repulsa pelo
capitalismo, da sua determinação firme de lutar por uma
renovação do partido que, essa sim, seria revolucionaria. Mas o
próprio entusiasmo que esse discurso suscita na direita vale por uma
confirmação daquilo que pretendem: outro partido.
Na Itália, os dirigentes do PCI que promoveram a metamorfose juravam que
permaneceriam eternamente comunistas; hoje lamentam ter sido comunistas. Na
França anunciavam, no inicio da viragem, um partido comunista
renovado, de novo tipo, mais próximo do sonho de Marx. Hoje, no meio
do caminho para a socialdemocratização sem máscara,
aspiram a ser um partido tão igual aos demais quanto possível e
já lamentam a Revolução de Outubro de 17, considerando que
tudo, absolutamente tudo, foi negativo nas sete décadas de
existência da URSS. O diário «L'Humanité»
recusa-se mesmo a publicar noticias sobre sessões comemorativas do 7 de
Novembro.
Nessa família de renovadores de fachada incluo os lideres do
grupo-movimento que em Portugal pretende «renovar» o PCP.
Precisamente por sentir que um partido revolucionário não se
assume como tal se não estiver em permanente renovação,
aspiro a que no Partido Comunista Português se mantenha viva a
consciência de que nunca como agora, ao longo da sua grande historia, se
tornou tão premente a exigência da sua participação
criadora no debate de ideias na busca de respostas aos desafios que a
humanidade enfrenta, na sua luta contra o flagelo da globalização
neoliberal e a ameaça de ditadura mundial vinda do imperialismo
norte-americano. É uma renovação que somente pode
resultar do aprofundamento do dialogo entre a direcção e as
bases, uma renovação que concretize o ideal comunista da
participação do povo como sujeito da historia. É portanto
uma renovação revolucionária incompatível com a dos
falsos renovadores, adulados pela burguesia, ansiosos por se entenderem com
ela, tal como ocorreu na Itália, na França, e noutros
países europeus. A historia recente recorda-nos que cada fornada desse
tipo de renovadores que olham de cima para as bases e temem a verdadeira
participação popular acabou em Portugal nas fileiras do
Partido Socialista.
RESISTIR !
Regressando à América quero explicitar que não me passa
pela cabeça comparar o subcomandante Marcos e muitos rebeldes dos
movimentos sociais do Continente, para os quais vai o meu respeito, com os
lideres da «renovação» do PCP que não me
inspiram qualquer sentimento de respeito.
Nuvens de tempestade adensam-se sobre a América Latina.
Mas não sou pessimista .
A complexidade da situação na Venezuela não pode apagar o
significado do papel decisivo que o povo desempenhou na derrota de um golpe no
qual a participação do Alto Comando das Forças Armadas
surpreendeu o próprio Chavez.
Na Colômbia, a guerra vai intensificar-se após a provável
eleição de Álvaro Uribe, uma criatura da
extrema direita, aliado dos paramilitares. O ouro e as armas de Washington e a
intervenção militar progressiva dos EUA não
conseguirão, porém, vencer as FARC, um exército popular
que se bate há quatro décadas numa epopeia que entrou na
história.
Na Bolívia, no Equador, no Peru, no Paraguai os movimentos
indígenas desafiam as oligarquias.
Na Argentina o povo continua a sair às ruas. No Brasil o MST não
se deixa intimidar e desenvolve novas e originais formas de luta enquanto nos
seus acampamentos e assentamentos lança as sementes de estruturas
sociais, culturais e económicas que deixam entrever os contornos de um
Brasil humanizado e progressista.
A cidadela cubana resiste, com firmeza e heroísmo, demonstrando que
é possível dizer NÃO ao imperialismo.
No contexto do debate criador de ideias que volta a agitar o Continente como
nos anos 60, uma realidade suscita consensos cada vez mais amplos.
Revolucionários e rebeldes sociais registam que a luta de classes
desempenha um papel de crescente importância nos conflitos que irrompem
por todo o Continente, inquietando o poder imperial dos EUA. O golpe e o
contra golpe da Venezuela constituíram uma demonstração
quase laboratorial dessa evidência.
Nunca talvez, desde a época de Bolívar, o verbo Resistir!
expressou com tamanha fidelidade o sentir das forças progressistas do
mundo latino-americano.
19/Abr/02
A versão em espanhol deste artigo está em
http://www.rebelion.org/izquierda/murbano250402.htm
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(1) Citado por Hugo Guzman, Agencia de Noticias de Chile, 06/Abr/02. Júlio Scherer é um dos mais prestigiados jornalistas do México. Foi director do diário «Excelsior» quando este era um dos grandes jornais da América Latina.
(2) Luís Alberto Magalhães foi director do «Observatório da Imprensa», o mais influente jornal electrónico do Brasil. O artigo citado apareceu em http://www.observatoriodaimprensa.com.br
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