O primeiro rei que proibiu a guerra foi um indiano, Achoka, senhor de um
império que no século II Antes da Nossa Era ia da cordilheira
afegã ao médio Ganges. Num edicto histórico baniu-a por a
considerar incompatível com a condição humana.
Achoka foi a excepção num mundo violento. Pelo tempo adiante os
homens continuaram a matar-se uns aos outros numa cadeia ininterrupta de
guerras. Mas, porque a componente de irracionalidade de cada uma era
indissociável de mortes, miséria e ruínas, raramente se
empreendia uma guerra sem consulta aos deuses.
Ficou memória de respostas dos sacerdotes dos oráculos de Delfos,
na Grécia, e de Amon, no deserto Líbico. Se os presságios
eram desfavoráveis os exércitos não entravam em campanha.
As coisas mudaram muito.
O presidente George W. Bush invoca Deus a cada passo nos seus discursos, diz
agir em nome dele, mas não consulta oráculos nem sequer os
gurus e pitonisas que pululam no seu pais. Faz a guerra a outros povos por
decisão pessoal, alegando que os EUA emergem como nação
predestinada, a única em condições de assumir a defesa de
valores eternos. A guerra é apresentada assim como uma exigência
moral. Os mísseis norte-americanos destroem cidades e as bombas
lançadas dos B-52 esfacelam corpos humanos em nome de Deus para
preservar a cultura, em beneficio da civilização e da humanidade.
A repulsa universal e também o sentimento de insegurança
desencadeados pelos atentados terroristas de 11 de Setembro pp abriram o
caminho ao discurso da retaliação e à apologia da guerra
como o instrumento indispensável para a erradicação da
violência e a conquista da paz e da concórdia entre os homens.
A retórica messiânica desse discurso belicista cultiva as
analogias, respeitando tradição norte-americana que não
dispensa nas arengas presidenciais as citações bíblicas e
as referencias à Roma dos Césares.
Não surpreendeu assim que os atentados do 11 de Setembro fossem
comparados ao ataque japonês a Pearl Harbor, em Dezembro de 1941. O
paralelo funcionou como estimulo aos sentimentos patrióticos,
neutralizou à partida eventuais duvidas sobre a justeza da guerra que
iria atingir o remoto povo do Afeganistão, totalmente alheio à
destruição das Torres de Manhattan e de uma ala do
Pentágono, e simultaneamente amorteceu o choque provocado por diplomas
e medidas anticonstitucionais que iriam ferir liberdades e direitos do
próprio povo dos EUA.
Todo o alarido patrioteiro levantado em torno do «Pearl Harbor do
Terrorismo » não tem o poder de ocultar os factos reais. Se os
acontecimentos do 11 de Setembro trazem à memória algum paralelo
seria não a agressão nipónica, mas o incêndio do
Reichstag da Alemanha nazi .
Em ambos os casos o governo do país onde ocorreu o atentado
terrorista tirou benefícios do crime. A vaga de
indignação provocada permitiu-lhe implantar uma política
que noutras circunstancias esbarraria com enormes dificuldades.
É útil recordar que na Alemanha o incêndio do Reichstag em
1933 criou condições para o desencadeamento da feroz campanha
anti-semita e para as perseguições que levaram milhares de
comunistas aos primeiros campos de concentração.
Simultaneamente, a radicalização ideológica do Partido
Nacional Socialista foi acompanhada de uma escalada armamentista e de uma
agressividade crescente na política externa. Os míticos
«perigos judeu e comunista» tornaram-se justificativa para a
repressão e funcionaram como alavanca da política externa que
levaria à anexação da Áustria, a Munique e
à ocupação da Checoslováquia e, finalmente,
à invasão da Polónia e à guerra mundial.
O desenvolvimento da historia nos últimos meses ilumina analogias
transparentes.
A estratégia do sistema de poder dos EUA que venho definindo como
esboço de uma ditadura militar planetária foi muito facilitada
pelas consequências políticas, económicas e militares dos
atentados do 11 de Setembro.
Da uma situação difícil, de isolamento relativo, o governo
Bush e a extrema-direita norte-americana passaram a uma postura ofensiva,
caracterizada por uma agressividade enorme nas frentes interna e externa. O
discurso do Presidente adquiriu uma agressividade patética. O tom
messiânico ganhou a agressividade de um pregador escocês do
século XVII. As semanas que precederam o lançamento dos
primeiros mísseis contra cidades afegãs funcionaram como tempo de
ensaio geral. A caça aos terroristas no próprio
território dos EUA desenvolveu-se inicialmente num quadro em que a
comunicação social --com poucas excepções--
colaborou no esforço para anestesiar as consciências. O racismo
foi estimulado a nível local, estadual e federal enquanto direitos e
garantias constitucionais eram espezinhados .
A desinformação sobre os monstruosos crimes e chacinas cometidos
no Afeganistão (incluindo o regime tipo Gestapo a que foram submetidos
os prisioneiros concentrados em Guantanamo); a domesticação do
Conselho de Segurança das Nações Unidas; e a falta de
resposta adequada da opinião publica mundial, confundida por campanhas
mediáticas de âmbito planetário -- contribuíram
para reforçar a arrogância e a ambição da extrema
direita norte-americana. O sistema de poder que governa os EUA compreendeu
que podia ir mais longe. Se era possível, ante a passividade
internacional, praticar uma política de genocídio contra um povo
inteiro, invocando o fantasma de Ben Laden e o fanatismo islamita dos Taliban
o projecto de dominação imperial sobre a totalidade do
planeta poderia ir por diante.
Bush está a cumprir, com alegria e orgulho, o papel que lhe foi
distribuído. No México vetou a presença simultânea
de Fidel na Conferencia de Monterrey promovida pelas Nações
Unidas. Em Lima vetou também a presença de Hugo Chavez na
reunião com os presidentes dos países Andinos. Incluiu os
movimentos de libertação na lista das organizações
terroristas e ampliou a intervenção norte-americana na guerra
que o governo colombiano trava há quatro décadas, sem
êxito, contra as FARC-EP.
Foi nesse contexto que o aliado israelense, sentindo-se com as mãos
livres, concebeu e começou a executar um plano monstruoso cuja meta
inconfessada seria o desaparecimento da nação palestiniana, ou
pelo menos a expulsão dos seus filhos do território onde se
formou há milénios.
A apologia publica do novo holocausto, feita por oficiais e políticos
de Israel, coincide com o bombardeamento diário das cidades e aldeias
da Cisjordania e de Gaza e com o cerco ao que resta do Quartel General de
Yasser Arafat, em Ramallah.
Bush assiste, impede qualquer iniciativa eficaz de Conselho de
Segurança, afirma ter duvidas sobre a eficácia do método
utilizado por Ariel Sharon, mas dá-lhe tempo para ampliar o
genocídio.
Surge, entretanto, um luar de esperança. O despertar da
consciência dos povos ameaça abrir pequenas fissuras na
coligação dos países ricos sem a qual a estratégia
de dominação planetária dos EUA não tem pernas para
andar. Aquilo que a tragédia do povo afegão não conseguiu
promover -- um movimento de protesto e solidariedade de âmbito mundial --
está a nascer da tragédia do povo palestiniano.
Lentamente, pela Terra afora, desde as grandes megalópolis da Europa,
dos EUA e do Japão, às cidades milenárias da Índia
e da China, às capitais da América Latina imperializada e
às aldeias das selvas e desertos africanos, os povos principiam a tomar
consciência de que a «cruzada antiterrorista» de Bush mais
não é do que a fachada de um projecto de
militarização do planeta. No ventre desse projecto são
já identificáveis as sementes de um fascismo de novo tipo.
09/Abr/02