Miguel Urbano Rodrigues
O genocídio que atinge o povo da Palestina será recordado pelo
tempo adiante como uma mancha repugnante na historia da humanidade.
Menos transparente é outra realidade. A criação do
Estado de Israel, responsável pela tragédia que nos reúne
nesta Conferencia, assenta sobre mitos que deturpam a historia.
A acumulação e difusão desses mitos está na origem
de situações, actos políticos e crimes que tornaram
possível a repetição no inicio do século XXI de
uma monstruosidade civilizacional. Apoiado pelos EUA o Estado
construído por vitimas do holocausto nazi concebe e executa um moderno
holocausto.
Uma pirâmide de falsidades e mentiras sinaliza a estrada do tempo que
conduziu a chacinas como as de Sabra, Shatila e Jenin.
Na base delas está o mito básico, o mais trabalhado de todos,
aquele que desencadeou o movimento do regresso dos judeus à «Terra
Santa dos antepassados».
A esmagadora maioria dos israelenses que vivem no Estado de Israel e se assumem
como judeus não descendem do povo que invocam. A saga da
diáspora judaica, alavanca das teses de Theodor Herzl que promoveram
a «volta à pátria perdida», foi edificada sobre uma
inverdade histórica.
Jerusalém era uma cidade pequena quando, por duas vezes, a sua
população, maioritariamente de judeus, foi expulsa pelos Romanos.
Não eram mais do que alguns milhares os que dela saíram
após a revolta esmagada por Tito, no ano 70. Adriano, no século
II, arrasou totalmente Jerusalém como castigo de nova
insurreição. Os judeus deportados após a mortandade foram
também poucos.
Não ha milagres na multiplicação dos seres humanos.
Olhamos hoje para os askenazis, vindos da Alemanha, da Polónia, da
Europa Ocidental e para os sefarditas, chegados de países
muçulmanos, e tudo nos seus traços fisionómicos difere, a
denunciar origens étnicas diferentíssimas. Nuns e noutros, a
percentagem de sangue judaico, após cruzamentos processados ao longo
dos séculos, é mínima. Os primeiros tratam aliás
os segundos com sobranceria, considerando-os cidadãos inferiores. E os
judeus negros da Etiópia e de outros países africanos?
É a religião e não o sangue que estabelece a ponte do
judaísmo entre essas comunidades e a suposta pátria de origem.
Mas, porventura, será hoje a religião o denominador comum
aglutinador da nação que se diz descendente de Abraham? A
resposta é negativa. Muitos judeus israelenses não praticam
actualmente a religião hebraica e as suas convicções
religiosas são, pelo menos, débeis.
A tradição, o culto dos antepassados, o acervo de uma cultura
defendida com tenacidade e condensada na Bíblia (o Antigo testamento)
aí estão as raízes do sionismo e a
explicação da especificidade contraditória de um estado
confessional cujos filhos duvidam (uma percentagem considerável) da
existência de Deus.
É inquestionável que os antepassados dos palestinos árabes
chegaram à Palestina há uns 5000 anos, subindo da
Península Arábica, muito antes das primeiras comunidades
hebraicas. Eram aparentados, como povos semitas vindos de um tronco comum.
Uns e outros assumiam-se como descendentes de Sem e falavam idiomas muito
parecidos que ainda hoje apresentam grandes afinidades.
Os primeiros fundiram-se rapidamente com algumas das tribos que povoavam a
região; os segundos muito menos.
O processo de miscigenação dos antigos palestinos foi
tão complexo que a própria palavra Palestina deriva dos
Filisteus, descendentes dos chamados Povos do Mar, invasores arianos e
não semitas.
Não cabe aqui acompanhar a história dos primitivos hebreus e as
suas aventuras desde o Nilo ao Eufrates, com passagem pelo vale do
Jordão. Encontramos uma síntese muito interessante no livro de
Ernesto Gomez Abascal ,que foi embaixador de Cuba na Síria e na
Jordânia (1).
O que me parece útil recordar é que a agressividade genocida do
estado de Israel tem um precedente na agressividade expansionista dos judeus
vindos do Egipto. Actuavam então por mandato divino, como «povo
especial». Segundo o Antigo Testamento, Jeová informou
Moisés de que seria dos hebreus todo o território desde o
deserto até ao mar e ao Eufrates, isto é, a Palestina, o
Líbano, a Síria e parte do Iraque, isto é, o hoje chamado
Crescente Fértil.
Como tentaram apossar-se de tão vasta e povoada Região?
O livro de Josué iluminou-lhes o caminho: «Quando tiverdes
atravessado o Jordão entrando pela terra de Canaã, afastareis do
vosso caminho todos os moradores do país e destruireis todos os seus
ídolos de pedra, e todas as suas imagens fundidas e destruireis todos os
lugares elevados: e expulsareis os moradores da terra e residireis nela porque
eu vo-la dei para que seja a vossa propriedade (cap. 33, vers 50 a 53 ).
Porque tu és povo santo para Jeová, o teu deus. Jeová, o
teu deus te escolheu como povo especial, mais do que todos os povos que
estão sobre a terra (cap. 7, vers 6). E destruíram a fio de
espada tudo o que havia na cidade; homens e mulheres, moços e velhos,
até os bois, as ovelhas e os burros.» (cap. 8, vers 24 e 26 (...)
Subiu logo Josué e todo Israel com ele de Eglon a Hebron e combateram
esta (...)matou tudo o que tinha vida, como Jeová, deus de Israel, lhe
tinha ordenado.(cap. 10, vers 34 e 40).
Não faltam a Ariel Sharon, como se verifica, fontes bíblicas de
inspiração. Jeová nada tinha de humanista, era um deus
violento, racista, que fazia da guerra e das chacinas alavanca da historia.
A agressividade actual dos dirigentes israelenses não é,
portanto, um fenómeno circunstancial. Tem raízes
antiquíssimas.
O movimento sionista nasceu agressivo numa época em que contou com a
simpatia da intelligentsia europeia, justamente indignada com o anti-semitismo
que se manifestava nos repugnantes pogroms da Polónia e da Rússia.
Nos finais do século XIX, na Palestina, então submetida ao
domínio turco, 91% da população eram árabes
palestinianos. Os judeus, de imigração recente, não
ultrapassavam 50 mil. Quase 99 % das terras pertenciam aos camponeses
árabes. Mas os pioneiros do sionismo já projectavam o futuro
Israel. Theodor Herzl no seu livro «O Estado Judaico», de 1896,
escreveu: «em Basileia fundei o estado judaico (se hoje dissesse isso em
voz alta todos me responderiam com uma gargalhada). Talvez dentro de cinco
anos, mas certamente dentro de cinquenta toda a gente o saberá.»
Em 1914, Chaim Weizman, que seria o primeiro presidente de Israel, escreveu nas
suas Memórias: «Na actualidade somos um átomo mas é
razoável afirmar que se a Palestina cair na esfera da influencia
britânica, e se a Grâ Bretanha incentivar o estabelecimento de um
estado judaico, então como dependência britânica, podemos
esperar ter ali dentro de 25 a 30 anos, um milhão de judeus, pelo menos,
e eles se encarregarão de constituir uma guarda eficaz para o Canal de
Suez».
Weizman tinha os dons dos antigos profetas. O que não previu foi que
ao decadente império britânico sucederia o vigoroso império
norte-americano e que o Estado de Israel, imaginado por ele, se transformaria
no seu cão de guarda para todo o Médio Oriente.
Israel, gerado por decisão do imperialismo britânico ao criar o
chamado Lar Nacional Judaico, nasceu, não se pode negar a evidencia, de
um facto colonial.
Entretanto, transcorrido mais de meio século sobre a partilha da
Palestina aprovada pelas Nações Unidas, Israel é uma
realidade. Os próprios revolucionários palestinos reconhecem
essa evidencia. Os mais de cinco milhões de israelenses que vivem hoje
no Estado judaico ali implantado não são colectivamente
responsáveis pelas políticas que tornaram possível a sua
formação. Israel não pode ser apagado do mapa, por mais
monstruosos que sejam os crimes dos seus actuais dirigentes.
Mas a solidariedade com a Palestina árabe exige a desmontagem do
edifício de mentiras históricas montado pelo imperialismo e pelo
sionismo na tentativa de justificar o injustificável.
Genocídios como os de Sabia e Shatila e o recentíssimo de Jenin
não foram tragédias ocasionais.
Nos últimos anos do mandato britânico as
organizações terroristas israelenses Haganah, Irgun e Stern
cometeram incontáveis crimes numa escalada de violência dirigida
contra os árabes palestinos, então amplamente
majoritárias. Segundo o censo de 46, os árabes palestinos
residentes eram 1 237 000 e os judeus apenas 608 mil. E somente 8% das terras
pertenciam aos segundos. O Plano de Partilha aprovado pela ONU atribuiu
entretanto ao futuro estado judaico 56% da superfície da Palestina.
E que aconteceu? Os israelenses ocuparam 75% do território,
inviabilizando a criação do Estado Palestino. Quando a ONU
tentou fiscalizar o cessar fogo, o bando terrorista Stern assassinou em
Jerusalém o conde Bernardotte, secretario geral da
organização. Em tempo brevíssimo 400 mil palestinos foram
expulsos das suas terras. Quase 500 aldeias foram arrasadas numa orgia de
barbárie. Em poucas horas a Irgun massacrou 254 palestinos na aldeia de
Deir Yassin. Aterrorizar as populações, esvaziar a Palestina de
árabes era o objectivo dessas acções de terror. Mais
tarde, Menahem Beguin, que foi primeiro ministro, comentou assim a chacina por
ele comandada: «O massacre não somente se justificou como o Estado
de Israel não existiria sem essa vitoria».(2)
Sob essa apologia do genocídio transparece a política que Yossef
Weitz, dirigente do Fundo Nacional Judaico, ondenou numa sentença
monstruosa: «Entre nós deve ficar claro que não existe
espaço para dois povos neste país(...) não ha outro
caminho que não seja a transferencia dos árabes para os
países vizinhos, a mudança de todos eles; nenhum deles, nenhuma
tribo deve permanecer aqui(3)
Três guerras com estados vizinhos irromperam desde a
criação de Israel.
Uma Resolução das Nações Unidas, entre todas
famosa, a 242, de 22 de Novembro de 1967, intimou Israel a devolver os
territórios ocupados pela força das armas. Outra, fundamental
também, determinou o regresso dos refugiados aos lugares de onde haviam
sido expulsos pelo exercito de Israel.
A posição israelense sobre essas questões cruciais
encontramo-la condensada num cínico comentário de Golda Meier:
«Como vamos devolver os territórios ocupados? Não existe
ninguém a quem devolver algo. Essa coisa a que chamam palestinos
não existe».(4)
A historia recente é melhor conhecida.
Se ha uma palavra que defina bem os acontecimentos que nas ultimas
décadas tiveram por cenário a Palestina é a palavra
tragédia.
O Estado comandado por Ariel Sharon não renuncia ao cumprimento das
profecias da Torah que apontam o caminho da violência para a
realização do sonho de Eretz Israel, ou seja, a Grande Israel.
Em Tel Aviv as tácticas e o discurso político mudaram ao sabor do
ocupante da Casa Branca, sempre o grande aliado. Mas o objectivo de aniquilar
a nação palestiniana manteve-se.
A Primeira Intifada demonstrou claramente que o povo árabe da Palestina
não renuncia ao direito inalienável de construir o seu
próprio futuro como nação independente, plenamente
soberana, no que resta Cisjordania e Gaza dos territórios
povoados pelos seus antepassados muitos séculos antes da chegada ali
das primeiras tribos de judeus.
Seria uma solução aceitável simultaneamente por
palestinianos e israelenses. Mas para isso seria, obviamente,
necessário cumprir os Acordos. Ora essa nunca foi a
intenção dos dirigentes israelenses.
O aparecimento exibicionista, em acto de provocaçao, de Ariel Sharon na
Esplanada das Mesquitas, na velha Jerusalém, assinalou o inicio da
Segunda Intifada e da actual escalada genocida contra o povo árabe da
Palestina.
Nem a imaginação de um Sófocles ou de um Shakespeare
concebeu tragédia comparável à que se abateu sobre as
cidades e aldeias dos territórios governados pela Autoridade Nacional
Palestiniana. Os bombardeamentos diários de áreas urbanas e
rurais, a destruição das estruturas básicas da sociedade,
como escolas, hospitais, edifícios administrativos, estabelecimentos
comerciais, serviços de luz, agua e comunicações, o
assassínio de mulheres e crianças, o cerco à sede de
Yasser Arafat em Ramallah, e chacinas colectivas como a de Jenin
serão pelo tempo afora recordados como exemplos da barbárie de um
estado confessional responsável por uma das paginas mais repugnantes da
história da humanidade.
James Petras encontra para Jenin, como analogia, o gueto de Varsóvia
destruído pelas SS de Hitler. A José Saramago, a aldeia
palestiniana eliminada traz à memória Auschwitz, paradigma da
loucura assassina nazi.
A mim faz-me recordar ambos. O buldozer Sharon, como já lhe chamam,
é, pelos, métodos e pela ideologia, um discípulo eficiente
de Hitler. Creio enunciar uma evidência ao afirmar que em cada um de
nós, aqui reunidos no México, por iniciativa do Partido do
Trabalho e da OSPAAAL, a angustia e a indignação provocadas pelo
genocídio que atinge a nação palestiniana são
acentuados pela consciência de que esse crime de lesa humanidade
não seria possível sem a cumplicidade e o apoio ostensivo dos EUA
Por si só, Ariel Sharon não teria condições
mínimas para empreender o seu plano de destruição da
Palestina. Os seus crimes contam com o respaldo de Washington, mais
exactamente do sistema de poder que governa os EUA, um sistema igualmente
monstruoso cuja estratégia de dominação mundial deixa
já transparecer o perigo de uma ditadura militar planetária, ou
seja uma ameaça global á humanidade.
Os povos condenam com firmeza crescente o genocídio palestiniano. Mas a
matança prossegue.
É financiada. Ultrapassa 3 mil milhões de dólares anuais
a ajuda norte-americana ao estado assassino de Ariel Sharon. A passividade dos
governos da União Europeia perante o genocídio é outra
indignidade. Afirmam lamentá-la, mas a sua atitude é de
submissão à estratégia dos EUA, que transformaram o
Conselho de Segurança da ONU em dócil instrumento da sua
política imperial.
A intima aliança entre a extrema direita israelense e o governo dos EUA
contribui para evidenciar o significado internacionalista e humanista da luta
heróica do povo árabe da Palestina. Essa pequena e valente
nação, ao resistir com firmeza homérica à tentativa
de holocausto contra ela comandada pelos filhos e netos das vitimas do
holocausto judeu da Segunda Guerra mundial -- essa Palestina de raízes
milenárias assume na realidade a defesa de valores eternos da humanidade.
A Palestina resiste. O seu povo sobrevive e multiplica-se sob o vendaval de
metralha do fascismo israelense. Segundo um estudo da Universidade judaica de
Haifa, no ano 2020 a população total de Israel ,da Cisjordania e
Gaza terá ultrapassado os 12 milhões. Desse total 58%
serão árabes palestinos. De maioria que são hoje os
israelenses terão nessa época passado a minoria.
Represento nesta Conferencia o
Partido Comunista Português
. É com
orgulho que aqui lembro ter sido permanente, fraternal e incondicional ao longo
do tempo a solidariedade dos comunistas portugueses com o povo épico da
Palestina. Ao reafirmá-la calorosamente desta tribuna, expresso a nossa
confiança inabalável na vitoria final desse pequeno-grande povo
que se bate hoje pela humanidade inteira.
Vocês vencerão, companheiros da Palestina.
________________
(1) Ernesto Gomez Abascal, Palestina Crucificada la Justicia, Editora
Politica, Havana, Abril de 2002
(2) OB.ctda, pg 203
(3) Idem, pg 32
(4) Idem, pg 54
(*) Intervenção na II Conferencia Internacional de Solidariedade
com o Povo Palestiniano, realizada no México em 15/Maio/2002.
Este texto encontra-se em http://resistir.info