Um novo Chile recupera a memória
por Miguel Urbano Rodrigues
Duas semanas no Chile foram uma viagem através do inesperado.
Não tinha ideia do que iria encontrar. Mas não foi aquilo que
vi e senti.
Estivera ali pela última vez no ano 98. Para rever amigos sobretudo.
Frei ocupava a Presidência. A atmosfera era deprimente. A tristeza que
marcava o fluir da vida doía. Reencontrei então um Chile no qual
o povo parecia ter perdido a memória.
Com excepção de Volodia Teitelboim, os intelectuais com quem
falei, sobretudo nos meios académicos, exibiam um pessimismo
generalizado. Pensavam o futuro sem esperança.
Voltei agora, transcorridos cinco anos para participar em iniciativas
relacionadas com a passagem do 30º aniversário da morte de Salvador
Allende.
Percebi logo à chegada que o ambiente mudara. Do aeroporto segui
directamente para uma conferencia de imprensa. Quando entrei na sala, Humberto
Martones, um ex-ministro do governo da Unidade Popular, apresentava o programa
do Seminário Internacional «30 anos Allende vive, As
Alternativas Populares e a Perspectiva Socialista na América
Latina». Tinham comparecido vários canais de televisão e
uma meia dúzia de jornalistas. Fizeram muitas perguntas sobre o
Seminário, promovido pelo Instituto de Ciências Alejandro
Lipschutz-ICAL, pela Revista América Libre e pelo Centro Martin Luther
King, de Cuba. Mas no dia seguinte a comunicação social ignorou
o acontecimento.
O Chile forma com a Venezuela o dueto de países latino americanos onde
a desinformação e a perversão mediática atingem
níveis insuperáveis.
Horas depois, no almoço comemorativo do 63º aniversário do
jornal
El Siglo
, impressionou-me a alegria de viver e a confiança das 500 pessoas
reunidas nessa jornada de confraternização.
Nos dias seguintes, em Santiago, em Valparaiso e em Cartagena e San Antonio
apercebi-me de que o movimento da história se havia alterado.
Findara a baixa-mar; a maré subia .
UM PAÍS DIFERENTE
Fora do programa tive a oportunidade de intervir em iniciativas promovidas em
Valparaiso e noutras cidades do litoral, em encontros com trabalhadores, em
convívios fraternais com sindicalistas, em
poblaciones
cujos nomes se tornaram quase legendários pelo combate permanente dos
moradores contra a ditadura.
Revisitei bairros onde estivera nos anos da Unidade Popular, mas também
durante os anos massacrantes da ditadura.
O balanço das conversas mantidas com combatentes da velha guarda e com
jovens é muito positivo. Deixei o Chile optimista. O futuro imediato
apresenta-se carregado de desafios, de interrogações sem
resposta. Mas a recuperação da memória é
transparente. Uma parcela cada vez maior de chilenos, consciente da
herança trágica das décadas da ditadura, enfrenta, em
condições dificílimas, os problemas do presente com
coragem e esperança, forjando na luta uma nova atitude perante a vida.
Para se avaliar a complexidade das transformações em curso na
pátria de Allende é útil não esquecer que no
Sul da vertente ocidental da Cordilheira dos Andes se formou, quase isolada
dos seus vizinhos, uma sociedade muito diferente de qualquer outra da
América Latina.
Para a diferença contribuiu não pouco a influencia
hegemónica que a Inglaterra exerceu na região. O Chile, desde
o final da primeira metade do seculo XIX, apresenta a peculiaridade de haver
construído um Estado moderno para servir uma burguesia em
expansão fenómeno excepcional na América Latina.
Ali os serviços funcionam. Pinochet mentiu ao atribuir-se o
mérito de um sentido da organização. Aquilo que a direita
golpista reivindica como conquista sua não o é. Vem da
época de Diego Portales, das décadas posteriores à
independência.
Ao longo do últimos 150 anos, governos com projectos antagónicos
utilizaram ora para o bem ora para o mal essa excepção chilena
que alguns definem paternalmente como estilo europeu.
Hoje essa fachada de modernidade, sobretudo em Santiago, é
profundamente enganadora porque esconde desigualdades sociais afrontosas da
condição humana. Depois do Brasil, o Chile é na
América Latina talvez o país com distribuição de
riqueza mais injusta. Não obstante, aparece nas
publicações da ONU como apresentando índices de qualidade
de vida muito acima das medias do Continente.
Os bairros da grande burguesia santiaguina, como Santa Maria, La Dehesa,
Vitacura, Las Condes, que pelo refinamento e luxo lembram lugares exclusivos da
Europa, coexistem com
poblaciones
onde a extrema pobreza dos moradores traz à memória as mais
degradadas favelas do Rio de Janeiro.
A ENTREGA DO COBRE
Não cabe no tema deste artigo a desmontagem da campanha insidiosa dos
epígonos da ditadura que caluniam a Unidade Popular e negam as suas
grandes conquistas e projectam do governo de Pinochet a imagem de uma
sábia administração.
Mas para se ter uma ideia dos efeitos devastadores da continuidade das
políticas neoliberais pelos governos da Concertacion nascidos da
aliança da Democracia Cristã com o Partido Socialista e o Partido
por la Democracia, de Lagos vale a pena, como exemplo, citar o que
aconteceu com o cobre.
Salvador Allende chamava ao cobre «o salário do Chile» para
qualificar a importância decisiva daquele metal na vida do país.
Quando em 11 de Julho de 71 o cobre foi nacionalizado, até a direita
aplaudiu a decisão, aprovada no Congresso por unanimidade.
Pinochet não ousou desnacionalizar as minas. Em 1989, 26% do
orçamento nacional era financiado pelo cobre. Entretanto, embora
formalmente não tenha sido revogada a legislação da UP
que garante a posse pelo Estado dos recursos mineiros, o capital privado
controla hoje na pratica as grandes minas de cobre. Um sistema perverso
torna na pratica impossível a expropriação de
concessões atribuídas a empresas privadas. As
indemnizações a pagar incluiriam não somente o total dos
investimentos realizados como o valor do filão explorado.
As transnacionais foram praticamente isentas do pagamento de impostos.
O escândalo é tanto mais chocante quanto o cobre representa 40%
das exportações do pais e as reservas chilenas 37% das
mundiais. Em 1989 a produção do metal atingiu 1 milhão
e 600 mil toneladas no valor de 4410 milhões de dólares. Ao
fisco couberam então 2 223 milhões, isto é metade.
No ano 2001 a produção superou 4 milhões e 550 mil
toneladas, no valor de 6 746 milhões de dólares. O Estado,
entretanto, somente recebeu como impostos 420 milhões de
dólares, menos de 6%, representando apenas 2,6% do orçamento
nacional.
Pinochet não dispôs de tempo suficiente para entregar os recursos
mineiros. Mas os governos da Concertación, submetidos à
pressão de Washington, realizaram o prodígio de desnacionalizar,
na prática, o cobre, que voltou a ser controlado por empresas privadas
(60% da produção nas mãos de transnacionais).
UM SEMINÁRIO ESTIMULANTE
Para quem como eu redescobriu no Chile o renascimento de uma combatividade
que fora do país se tinha por adormecida, as jornadas do 30 º
aniversário do 11 de Setembro foram uma fonte de surpresas.
O Seminário Internacional, concretizado com escassos recursos
financeiros, impressionou tanto os convidados estrangeiros que alguns pretendem
sugerir nos seus países iniciativas similares, inspiradas na
fórmula chilena.
Nas sessões realizadas no Edifício Diego Portales o
grande Centro de Convenções construído durante a Unidade
Popular, então chamado Gabriela Mistral o debate de ideias e a
reflexão sobre a história atingiram um nível médio
raramente alcançado em eventos do género. A
participação chilena contribuiu decisivamente para esse
resultado. A qualidade das intervenções foi valorizada pela
serenidade com que a maioria dos participantes, gente com
formações ideológicas diversificadas, se pronunciou sobre
grandes temas que condicionam o futuro da humanidade, inserindo-os na
conjuntura latino-americana.
Naturalmente a história e o significado do governo da Unidade Popular
mereceram uma atenção especial, bem como a personalidade de
Salvador Allende que, após trinta anos, emerge publicamente com a
dimensão do maior estadista chileno do seculo XX.
Os debates sobre a via institucional e os seus limites como projecto de
transformação radical de sociedades capitalistas suscitaram um
interesse especial. Chilenos com mundividências diferentes e
estrangeiros sustentaram em diálogos de uma grande riqueza conceptual
posições polemicas, com frequência divergentes.
A ALCA e a ameaça mortal que representa para a América Latina
esse projecto imperialista de recolonização; as Forças
Armadas e o seu papel; a actualidade do pensamento revolucionário de
Bolívar; a Reforma Agraria e a soberania alimentar; os desafios vindos
da manipulação mediática; foram temas que motivaram
uma intensa participação. Transcorridas apenas algumas semanas
da greve geral do 13 de Agosto, o acontecimento tornou-se pólo de
debates em que o rosto do moderno sindicalismo chileno apareceu iluminado.
Coube-me intervir num painel sobre os movimentos sociais e os partidos
políticos na construção das alternativas populares.
Como era inevitável, a temática dos Direitos Humanos, foi
assunto permanente, num momento em que o governo, as forças armadas e
os partidos da direita desfraldam a bandeira da
«reconciliação» desejosos de fazer esquecer os crimes
da ditadura.
No encerramento, o brasileiro Emir Sader, director de «América
Libre» apresentou uma serie de propostas interessantes para dinamizar a
luta em que os povos se empenham no combate ao neoliberalismo globalizado.
Um dos méritos do Seminário terá sido a
harmonização do seu programa com iniciativas muito diversificadas
inseridas nas jornadas de recuperação da memória do 11 de
Setembro. Ao lado de camaradas e amigos vindos de muitos países da
América Latina, dos EUA e da Europa estive no cemitério de
Recoletos, recordando Allende e os companheiros ciados em defesa da
democracia e da liberdade.
As comemorações oficiais foram mais do que discretas. O governo
não podia ignorar a efeméride. Mas tudo fez para lhes imprimir
um perfil baixo. No Congresso os discursos foram mornos, com os deputados dos
partidos da direita, a UDI e a Renovacion Nacional, ausentes.
Para a Democracia Cristã era impossível negar que lhe cabem
grandes responsabilidades na criação de condições
para o golpe do 11 de Setembro. Foi cúmplice. Mas na Concertacion,
como totalidade, recordar o 11 de setembro provoca mal estar. O Partido
Socialista pratica hoje uma politica neoliberal. O discurso oficial situa-se
nas antípodas do allendista. Os Carabineros reprimem com
frequência e brutalidade os trabalhadores.
As contradições de um governo de compromissos espúrios
com o imperialismo vieram à tona, como se esperava, durante a semana
do 11 de Setembro.
O presidente da República, Ricardo Lagos, e de modo geral os dirigentes
da Concertación tentaram separar Allende da Unidade Popular. Elogiaram
o presidente mártir, mas esqueceram ou criticaram o seu governo.
Lagos expressou bem essa tendência. Em cada iniciativa do programa
oficial aflorou o mal estar gerado por contradições
insuperáveis. O actual presidente, ao prestar homenagem a Allende,
inseriu nela repetidamente apelos farisaicos à chamada
reconciliação nacional. A desfaçatez foi tamanha que
alguns ministros chegaram ao absurdo de sugerir que Salvador Allende na sua
patética mensagem ao povo dirigida de La Moneda, sob o bombardeio
fascista, falou como um precursor da reconciliação. Acontece
que essa, tal como a entendem com o apoio da direita seria um
negócio, uma compra das consciências. Gostariam de imitar o que
os EUA e a Grã Bretanha fizeram, quando a Líbia pagou (no caso
indemnizações milionárias) às famílias das
vitimas do avião da Pan American que explodiu na Escócia. A
manobra falhou, porque os familiares dos assassinados e desaparecidos
recusaram, com indignação, exigindo a punição dos
responsáveis pelos crimes da ditadura, eufemisticamente designada pela
comunicação social como «o regime militar».
O povo somente pôde acompanhar pela televisão a cerimonia em que
Ricardo Lagos inaugurou a porta de La Moneda, da Rua Morandé, pela qual
os militares golpistas retiraram, no dia 11 de Setembro o cadáver de
Allende. Pinochet mandou fechá-la em 73, como se a memória
pudesse ser apagada com cimento.
Lagos compareceu sem acompanhantes na cerimonia. A proximidade do povo
incomoda-o. Tudo foi gélido nos actos oficiais que recordaram o 11 de
Setembro.
O presidente tem consciência de que a política económica da
Concertación justifica o labéu de pinochetismo sem Pinochet.
EMOÇÃO
O governo mobilizou 27 000 policias (do Corpo de Carabineros) no 11 de
Setembro. O inimigo potencial era o povo.
O acesso à Praça da Constituição, onde transcorreu
a homenagem principal a Salvador Allende, foi dificultado. Apesar de membro
das delegações estrangeiras
[1]
, não me foi fácil
entrar no recinto onde fora erguida a tribuna.
Mas a manobra de intimidação não funcionou. Na
área aberta ao público concentraram-se umas 15 000 pessoas,
porque mais não cabiam ali. A Praça foi do povo por algumas
horas.
Foi comovedora a evocação do herói tombado na luta.
Desde as vibrantes canções do cubano Silvio Rodriguez à
serena intervenção de Gladys Marin, uma lúcida
assunção dos ideais do governo Popular tão
corajosamente personificados em Salvador Allende as vozes da
América Latina revolucionaria juntaram-se ali às do Chile
democrático e progressista.
Não menos emocionante foi o espectáculo no antigo estádio
Chile, agora rebatizado como Estádio Victor Jara. Para mim aquela
noite foi mais uma caminhada pela memória. Quando a barbárie
entrou no quotidiano em setembro de 73 ali foram amontoados, e muitos
assassinados, os prisioneiros caçados na primeira vaga da
repressão fascista. Ali foi torturado e caiu, cantando para os
companheiros e para o seu povo, Victor Jara, o grande trovador comunista.
E agora, três décadas depois, voltamos a ouvi-lo, e a contemplar a
sua imagem num écran gigante e a escutar as suas canções,
com som de eternidade, entoadas por trovadores revolucionários como
ele, vindos de Cuba e do México. Foi um espectáculo maravilhoso
em que Joan Jara, a viuva de Victor, comoveu muita gente ate as lagrimas ao
trazer ao grande anfiteatro a palavra do cantor poeta da
revolução que foi o seu companheiro. Tudo se fundiu na noite,
da canção ao ballet, do clássico ao mais actual, porque o
rio da vida não pára, flui como as lutas do povo.
XXX
Foi gratificante para mim, como comunista, verificar que nesta subida da
maré que assinala a recuperação da memória
histórica, o Partido Comunista do Chile retoma nas lutas em
desenvolvimento o papel que lhe cabe desempenhar como organização
revolucionária. Uma lei eleitoral de recorte ultra-reaccionário
fechou-lhe até agora a possibilidade de estar representado no
Congresso. Mas essa limitação não o desviou da sua
fidelidade intransigente aos princípios e objectivos que lhe justificam
a existência. Nesta época de covardias e medos, quando uma
campanha de satanização do socialismo destruiu ou desfigurou
tantos partidos comunistas, o PC do Chile manteve uma coerência
exemplar no combate. Dirigentes, quadros, militantes de base
impressionaram-me pelo nível ideológico, a ausência de
sectarismo e dogmatismo e a qualidade humana.
Gente dessa tempera é indispensável na batalha global que se
inicia contra a barbárie imperialista que ameaça a própria
continuidade da vida humana na Terra, nossa pátria comum. Porque as
vanguardas revolucionarias são imprescindíveis, ao lado dos
movimentos sociais, nas lutas em curso contra um sistema de poder monstruoso
que configura um assalto à razão.
__________
[1]
No seminário internacional de Santiago estiveram presentes
delegações da maioria dos países da América Latina
e dos EUA, da Alemanha, da Itália, de Portugal. Compareceram e
intervieram uma numerosa representação do PC de Cuba, o
secretario do PC da Colômbia, Jaime Caycedo, o primeiro secretario do PC
da Bolívia, Marcos Domich, a argentina Ebe de Bonafini, presidente da
associação das Mães da Plaza de Mayo, dirigentes do PT do
Brasil e do Movimento dos Sem Terra, do Exército Zapatista de
Libertação Nacional do México, do Partido do Trabalho do
México, dos Piqueteros argentinos, etc. O Partido Comunista
Português fez-se representar por Abílio Fernandes, do CC, que
apresentou uma comunicação sobre a Revolução
Portuguesa e a Reforma Agrária.
O original encontra-se no semanário
Avante!
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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