México: A maré da indignação
numa sociedade caótica
por Miguel Urbano Rodrigues
Estive no México em Março. Voltei em Maio para participar numa
conferencia internacional. Tudo parecia ter entrado em ebulição.
Uma noite fui despertado por tremenda algazarra. A varanda do meu quarto, no
hotel, abria para o Zócalo. Em baixo, sob as arcadas do Palacio de la
Gobernación do Distrito Federal, uma pequena multidão assistia a
um comício. O orador despejava criticas duríssimas sobre o
governo. Os discursos seguintes foram ainda mais inflamados.
Eram cinco da madrugada. A gigantesca praça, cenário ao longo de
cinco séculos de acontecimentos de significado antagónico, uns
revolucionários outros contra-revolucionários, mantém
inalterável o seu fascinio; continua a ser um lugar encantatório.
O meu companheiro de quarto, um diplomata da Republica do Congo, ao escutar os
apelos vibrantes à luta que a instalação sonora
transmitia, perguntou, emocionado:
-Será isto o começo da revolução?
Cortei-lhe a esperança:
-Não, companheiro. É apenas um protesto integrado no Dia do
Professor. Eles estão em greve. Mas nada vai acontecer no
México de importante nos próximos dias.
O espanto do diplomata africano era, porem, legítimo. Ao forasteiro
desconhecedor da sua história e sem intimidade com a sua cultura, o
México transmite quase permanentemente imagens de uma sociedade em
vésperas de revolução.
As estridência do discurso de oposição enganam. O sistema
de poder está solidamente implantado. A dominação
imperialista nunca foi tão ostensiva.
A DUPLICIDADE DE FOX
Em artigo recente chamei a atenção para o significado da
eleição de Vicente Fox.
Com ele a direita tradicional voltou à Presidência da qual havia
sido afastada ha mais de 90 anos. O apodrecimento do Partido
Revolucionário Institucional (PRI), que se degradou no exercício
ininterrupto do Poder, facilitou-lhe enormemente a vitória.
O novo Presidente definiu logo de inicio a estratégia da sua
Administração numa frase que foi muito saudada em Washington:
este será «o governo de um empresário para
empresários!»
A síntese define o homem e o político.
A arrogância da direita adquiriu aspectos tão ostensivos que o
grande patronato, ingerindo-se na área da Educação,
não hesita já em exigir a introdução do ensino
religioso nas escolas públicas. Isto num pais de tradição
anticlerical onde durante décadas as procissões não podiam
sair à rua, devido a uma proibição legal.
Fox é um populista de direita menos original do que parece. A
rápida perda de prestigio reflecte a desilusão nascida das
promessas faraónicas não cumpridas. Como candidato anunciara uma
luta sem quartel contra a corrupção, a insegurança e o
desemprêgo. Entretanto, a corrupção alastra, tal como a
violência, e no seu primeiro ano de governo foram suprimidos 800 mil
postos de trabalho.
As relações do presidente com o Congresso tornaram-se tensas
porque ignora com frequência a rejeição de decretos seus
que, posteriormente são declarados inconstitucionais pela Suprema Corte.
Dos seus múltiplos conflitos com o Legislativo o mais grave situa-se na
área da política energética.
É oportuno recordar que para a esmagadora maioria dos mexicanos a
nacionalização do petróleo foi encarada como conquista
irreversível do povo. O prestigio de Lázaro Cardenas que
permanece inalterável é inseparável da firmeza com
que o presidente símbolo da Revolução
resistiu a todas as pressões do imperialismo e das transnacionais
petrolíferas, defendendo a Pemex.
Ora Fox ataca o tabu: quer privatizar a electricidade e a petroquimica.
Na área da política externa, o conflito criado com Cuba foi
apenas um dos aspectos da ruptura com o principio constante da
Constituição de não intervenção nos
assuntos internos de outros estados. Através da gravação
da sua conversa telefónica com Fidel Castro, divulgada pelo presidente
de Cuba, o povo mexicano soube que Fox lhe mentira ao negar pressões
exercidas sobre o líder revolucionário antes da Conferencia de
Monterrey, promovida pela ONU. Fox agiu no episódio como um autentico
vassalo de George Bush.
A política foxiana de dois discursos e duas caras voltou a ficar
transparente durante a Cimeira União Europeia-América Latina, em
Madrid. Fox, recebido por Aznar com demonstrações de
apreço excepcionais, falou muito de assuntos de política interna
do seu pais nos discursos pronunciados na capital espanhola e em entrevistas
à imprensa e á televisão. Abordando duas questões
fundamentais produziu afirmações que logo desencadearam no
México uma tempestade de protestos.
No tocante às relações com o PRI, retomou
acusações antigas sobre o uso ilegítimo de fundos
públicos na campanha eleitoral de Labastida, candidato daquele partido
à Presidência. Omitiu que acusações não
muito diferentes ,ligadas a subsídios privados, igualmente ilegais,
envolvem a sua própria campanha. O ataque surpreendeu porque, dias
antes, Fox estabelecera no México quase um pacto de
cooperação com o actual presidente do PRI, Roberto Madrazo.
Para espanto dos dirigentes militantes dos partidos da oposição
,e do próprio PAN governista, Fox, durante um pequeno almoço com
Madrazo, lançara um apelo à concórdia, sintetizado numa
frase que correu pelo pais: «Governemos juntos a transição,
unamos vontades para avançar!»
La Jornada,
o grande diário da esquerda, qualificou de dramático o pedido de
colaboração dirigido ao adversário: «ajudem-me a
governar porque sozinho não posso».
Mais: Fox elogiou então o papel desempenhado pelo PRI na historia do
país: «O México actual não poderia ser entendido
afirmou sem nos remetermos ao papel que o partido (o PRI)
desempenhou ao longo do seculo XX na preservação da estabilidade
e na construção das instituições» (...)
Entretanto, transcorridos dias, os elogios cederam lugar a críticas e
insinuações ofensivas, formuladas em terra estrangeira.
Mais ampla e indignada foi, contudo, a reacção dos opositores ao
tomarem conhecimento das declarações de Fox sobre a
questão energética. Dirigindo-se a chefes de estados e de
governos europeus, informou que o Congresso na sua próxima sessão
extraordinária aprovará as propostas de
privatização do sector energético .
A afirmaçao, categórica, choca pela leviandade.
O projecto de desmantelamento da Pemex foi inspirado pelo Banco Mundial, isto
é por Washington. Como salientou o economista John Saxe Fernandez
,professor da Universidade Nacional do México, uma tal
operação exigiria, porem, submeter previamente a
Constituição a uma «grande cirurgia».
Esta parece inviável, porque a oposição, que rejeita as
privatizações propostas pelo presidente, é amplamente
majoritária tanto na Câmara como no Senado.
Segundo Fox, a actual carta magna mexicana não responde já
«às novas circunstancias democráticas», nem
«à nova agenda internacional do país». E, sob os
aplausos de Aznar, achou útil acrescentar que a «ordem
internacional deve ir alem do conceito de soberania».
Procedeu obviamente, como complemento, à apologia da ALCA e do Plano
Puebla-Panamá.
Omitiu, porem, uma informação de suma importância.
Não esclareceu que três semanas antes, a Suprema Corte de
Justiça do México tinha desfechado um golpe demolidor na sua
agenda privatizadora. Um acórdão declarou inconstitucionais
vários artigos do projecto de privatização do sector
energético.
Fox não informou também que a Pemex é forçada pelo
seu governo a pagar ao Estado, sob a forma de impostos, 95% dos lucros obtidos,
o que impede a grande empresa de realizar os investimentos
indispensáveis para manter a sua competitividade.
A Fundação Heritage, conhecida pelas suas posições
de extrema-direita, avaliou recentemente em 150 mil milhões de
dólares o valor da Pemex para efeitos de privatização,
admitindo que a Exxon, a Shell, a Amoco e a Dupont, entre outras
transnacionais, estariam interessadas na partilha do bolo. Por si só
essa quantia abre uma janela para o jogo de interesses geoestratégicos e
empresariais que o presidente Fox contrapõe ao respeito pela
Constituição.
UM GIGANTE DOENTE
O México, com um Produto Interno Bruto que rondará este ano os
950 mil milhões de dólares é a segunda economia da
América Latina e a décima primeira do mundo. Pelos seus recursos
naturais petróleo, prata, gás natural, grande variedade e
quantidade de mineiros estratégicos, uma industria pesada e ligeira
avançadas e um sector agro-pecuário com grandes potencialidades
reúne condições favoráveis a um
desenvolvimento acelerado e harmonioso capaz de proporcionar bem estar e
prosperidade aos seus 103 milhões de habitantes. Mas o gigante é
um grande doente crónico. Presentemente, nenhum dos grandes
países latino-americanos se encontra submetido a um processo de rapina
tão complexo, sistemático e profundo como o México. As
suas riquezas são drenadas para os EUA num saque gigantesco.
A NAFTA sobre cujo modelo Washington pretende construir a ALCA
contribuiu nos últimos anos para o agravamento de uma dependência
que assume facetas cada vez mais preocupantes.
A máscara do falso milagre posterior à crise que levou o pais
à beira da bancarrota evitada com a entrada maciça de mais
de quatro dezenas de milhares de milhões de dólares
desfez-se em pedaços. A imagem que o México projecta não
é mais a de um pais ficcional, disfarçado de desenvolvido, mas a
de uma sociedade cada dia mais dependente, onde a riqueza se concentra enquanto
alastram a pobreza e a fome.
A crise é aprofundada pela política de Fox, dócil
instrumento da estratégia neoliberal ideada em Washington, isto é
das mesmas velhas receitas, com verniz novo, do FMI e do Banco Mundial.
Manipulando estatísticas, os epígonos do governo bem se
esforçam por inverter a realidade.
O saldo positivo das exportações para os EUA no primeiro
trimestre do ano foi utilizado como arma de propaganda: atingiu 8 mil e 449
milhões de dólares, crescendo 30% comparativamente ao ano
anterior. As trocas comerciais entre os dois países excederam em
Março 26 mil e 785 milhões de dólares, com um saldo
amplamente favorável ao México. O facto de este ter
ultrapassado largamente o Japão como segundo parceiro comercial dos EUA,
figurando logo após o Canadá, também é tema de
comentários que distorcem a realidade. (1)
Esses números confundem se não forem interpretados à luz
da função de dependência que a economia mexicana cumpre
perante os EUA.
Uma percentagem cada vez maior das exportações de bens e
serviços do México 164 mil milhões de
dólares em 2000 é constituída por produtos
manufacturados pelas filiais de transnacionais norte-americanas instaladas no
pais, principalmente próximo da fronteira. Por si só as
montadoras de automóveis são responsáveis pela parte do
leão.
Que parcela dessa riqueza exportada fica no México? Uma parte
ínfima, porque o grosso dos componentes dos veículos
made in México
vem dos EUA. As transnacionais utilizam sobretudo a força de trabalho
mexicana, remunerada com salários baixíssimos. As maquiladoras
agem da mesma maneira na industria ligeira, nomeadamente na têxtil e na
química.
UMA CENTENA DE CANAIS DE TV
E 26 JORNAIS DIÁRIOS NA CAPITAL
O discurso foxista não consegue ocultar a profundidade da crise. Esta
atinge sectores muito diversificados e manifesta-se na queda de 2% do PIB no
primeiro trimestre do ano corrente. No turismo, a área mais
dinâmica da economia, a quebra foi de 5%, e de 4,4% no conjunto da
industria, superando 7,6% no mês de Março.
Tive a oportunidade de verificar que de Março a Maio os preços
de alguns artigo de primeira necessidade subiram.
Naturalmente, a carestia provocava um descontentamento
indisfarçável. As criticas ao governo assumiam uma intensidade
crescente. O Congresso negou-se a ouvir o secretario (ministro) do
Estrangeiros. Não o reconheceu como interlocutor ético e exigiu
a sua demissão após o papelão que desempenhou nas manobras
contra a Revolução Cubana e na tentativa para impedir a
presença de Fidel Castro na Conferencia de Monterrey. A tradicional
independência da política externa mexicana foi substituída
por uma linha de submissão aos EUA.
Mas a contradição entre o volume e a amplitude das criticas ao
governo Fox e o seu efeito na pratica da vida é desconcertante.
Pelas manchetes dos jornais e da televisão, o forasteiro pouco
familiarizado com a complexa realidade mexicana poderia admitir que assistia
ao prólogo de uma crise de grandes proporções, com
desdobramentos alarmantes.
Pura ilusão.
Somente na área do Grande México quase 20 milhões
de pessoas existem 26 jornais diários e funcionam uns 100 canais
de televisão e um numero incontável de rádios. Os grandes
jornais adoptam quase todos uma linha de oposição. A qualidade
dos principais diários sobretudo de
La Jornada
é muito superior à da imprensa portuguesa, mas o peso
político dos
mass media
na sociedade mexicana, como formadores de opinião, é muito
pequeno.
Fox, não obstante o clamor dos protestos que a sua política
levanta hoje em todo o pais, vai continuar a desenvolver, sob a
supervisão de Washington, a estratégia neoliberal condensada no
lema «governo de um empresário para empresários». A
tarefa a que se propõe tende, entretanto, a esbarrar com
oposição crescente. Esta não provem apenas do Congresso,
que desempenha na crise um papel importante. Dezenas de movimentos
progressistas procuram articular as suas iniciativas de combate ao sistema.
Entre eles destacam-se o Paz y Democracia, liderado pelo sociólogo Pablo
Gonzalez Casanova, ex-reitor da Universidade Nacional Autónoma do
México (uma instituição com aproximadamente 400 mil alunos
e professores), e, sobretudo, pela sua firmeza, o Congresso Nacional
Indígena ,que representa as aspirações de 10
milhões de índios que constituem uma impressionante e combativa
massa de excluídos. O significado da intervenção
política desse Congresso como porta voz das organizações
indígenas é hoje mais importante do que o combate do Exercito
Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Uma década
após o seu aparecimento na selva lacandona, o movimento de Chiapas
perdeu no pais muito do prestigio inicial. O mutismo do subcomandante Marcos
nos últimos meses expressa de alguma maneira a frustração
do EZLN, consciente de que o novo código indígena, aprovado pelo
Congresso após a marcha dos comandantes chiapanecas sobre o
México é ainda pior do que o anterior.
No sector sindical, tradicionalmente manipulado pelo Poder através de
um feixe de centrais e federações, emergem também novas
formas de luta. É o caso dos professores, dos trabalhadores do
transporte e das comunicações.
O que falta para que a caudalosa vaga de descontentamento popular possa abalar
as estruturas da engrenagem de poder que desenvolve a política de
direita comandada de Washington? Falta o mais importante, o mais
difícil. Que as forças democráticas e progressistas,
maioritárias, mas dispersas e divididas, encontrem no dialogo o caminho
que possa levar à constituição de uma Frente Única
contra o neoliberalismo foxista, isto é contra o imperialismo.
(1) As citações deste artigo foram extraídas dos
diários mexicanos «La Jornada», «El Universal » e
«Excelsior». O autor recorreu também, no tocante às
estatísticas, ao anuário «L'Etat du Monde»,
edição do ano 2002, Ed. «La Découverte», Paris.
Este artigo encontra-se em
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