por Miguel Urbano Rodrigues
Antes de ir até à Índia, o Brasil aparecia-me como o pais
do mundo mais difícil de compreender.
Vivi 17 anos naquela terra, sinto-me em casa cada vez que volto. A intimidade
com o cenário físico e humano não derrubou, entretanto, a
grande barreira. O mistério brasileiro permanece para mim intacto.
Identifico-me com o povo, amo-o, quase pressinto nele os contornos de uma
humanidade rehumanizada. Navego com familiaridade entre os factos e a gente.
Mas tenho enorme dificuldade em entender o rumo que a historia ali segue. O
Brasil derrota o esforço para ser compreendido através da
razão.
Se a historia se cumprisse com um mínimo de lógica, o Brasil
seria neste inicio do século XXI não somente um país
desenvolvido como o padrão de uma sociedade de abundância e de
convívio harmonioso entre comunidades de culturas e origens raciais
diferentes.
O austríaco Stefan Zweig, ao descobri-lo nas vésperas da II
Guerra Mundial, vislumbrou nele «O País do Futuro». A
profecia não se concretizou. O sentido do movimento da historia
inverteu-se. O Brasil, em circunstancias conhecidas, começou a caminhar
para trás. E a involução prossegue.
Um sociólogo sueco que passou por São Paulo há duas
semanas sintetizou num breve comentário o seu espanto: «Assisti a
um debate na televisão, li os jornais, visitei a Universidade, falei com
muita gente. Senti-me espectador de uma comédia aparente que oculta o
desenrolar de uma tragédia».
A GRANDE CONTRADIÇÃO
É minha convicção de que não existe na
América outro povo que tenha com o cubano afinidades tão
profundas como o brasileiro. A história e o idioma distanciou-os. Um
fosso separa-os hoje no tocante à educação e à
saúde e aos sistemas político-institucionais. À
desigualdade social do Brasil quase um recorde mundial
contrapõe-se um regime que se propõe reduzi-la ao mínimo.
Mas o abismo entre os Estados e as estruturas socio-económicas
não impede uma estranha aproximação das idiossincrasias e
dos povos. As raízes euro-africanas de ambos estão na origem de
mundividências, atitudes e formas de comportamento cultural que, pela
convergência, impressionam.
Pode-se objectar que enquanto a violência, a droga e a marginalidade
infantil marcam dramaticamente o quotidiano das megalópolis
brasileiras, Havana é a capital mais segura da América, uma
cidade que tem o culto da criança, na qual os drogados constituem uma
raridade trazida pelo turismo.
A contradição não elimina o parentesco cultural. Empurra
para uma pergunta: como explicar os processos que levaram no Brasil a
rupturas do tecido social muito profundas, mas insuficientes para contaminar a
esmagadora maioria do povo? Este gerou os anticorpos que lhe permitiram
preservar a sua especificidade cultural. Sobreviveu à dupla
ameaça vinda de minorias formadas nos dois extremos da sociedade: uma
burguesia que renunciou ao desenvolvimento autónomo, transformando-se em
instrumento e apêndice do sistema de poder imperial; e uma camada
lumpen, em acelerado crescimento, resultante do funcionamento da própria
engrenagem da exploração, ou seja uma massa de dezenas de
milhões de párias, fonte da violência endémica, do
crime organizado, das redes de droga, da prostituição, da lama
social cujos fios aparecem entrançados com o poder.
O povo brasileiro, ou para ser mais preciso, a esmagadora maioria dos
brasileiros permaneceu fiel às raízes. Governado como se fora
um protectorado, oprimido pelos de cima, agredido pela invasão dos
valores culturais assimilados pelos sectores sociais mais contaminados pela
máquina trituradora da globalização neoliberal, e
simultaneamente vítima da violência, da insegurança e da
pressão desagregadora da massa de párias e das mafias do crime
que brotam dos subterrâneos da sociedade capitalista o
brasileiro que eu aprendi a respeitar e amar, o «homem cordial»
definido pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, esse resistiu.
Pela sobrevivência pagou um preço colossal.
LULA
A campanha eleitoral polariza nestes dias a atenção de dezenas de
milhões de brasileiros e é acompanhada com interesse absorvente
em todo o Continente Americano.
Nunca senti atracção pelos exercícios de futurologia
política. Não faço previsões sobre o
adversário de Lula na segunda volta; nem sobre o provável
desfecho, quer a luta pela presidência seja travada contra José
Serra ou contra Ciro Gomes.
Se fosse brasileiro votaria por Lula. Mas somente pela ausência de uma
alternativa. A sua candidatura suscitou inicialmente grandes esperanças
em amplos sectores da esquerda brasileira. Emergiu como o candidato natural
das forças progressistas para as desiludir progressivamente.
Lula, nesta sua quarta tentativa de chegar ao Palácio do Planalto, tem
mais probabilidades de atingir o objectivo do que nas anteriores.
Paradoxalmente não é por mérito próprio que isso
acontece, mas pelo total descrédito do sistema, pela
aspiração de mudanças profundas que se enraizou nas
grandes maiorias. A convicção de que nunca como agora as
condições para se tornar Presidente foram tão
favoráveis contribuiu outro paradoxo para que Lula,
empenhado em obter o apoio de uma ampla faixa da pequena e da media
burguesia, esvaziasse o discurso de muito do que lhe conferia significado e
inspirava confiança aos trabalhadores.
De longe, tenho acompanhado a sua campanha. Desaprovo-a mais pelas
posições assumidas do que pelas omissões. Não
seria razoável esperar dele um discurso como o dos dirigentes do PC do B
o seu mais firme e leal aliado na eleição
cauteloso, mas reflectindo a imagem de um partido revolucionário. Mas
Lula foi tão longe nas concessões que perdeu a
confiança e o respeito de muitos brasileiros que desejavam vê-lo
assumir uma postura muito diferente. Admito que o erro na opção
estratégica cabe no fundamental à direcção do PT .
A perseguição ao voto, quando se torna obsessiva, implica a perda
da lucidez. A conquista da Presidência proporciona num país como
o Brasil a obtenção das insígnias do poder. Mas o Poder
real, qualquer que seja o eleito, não mudará de mãos. A
engrenagem que o controla, externa e interna, modelou o quadro institucional de
forma a impedir a mudança do sistema.
Numa democracia representativa latino-americana de estrutura presidencial
não é indiferente que o presidente seja um procônsul de
Washington ou um político patriota e progressista. Mas é uma
ingenuidade crer que instituições ideadas e impostas pela
burguesia possam servir para transformações profundas do sistema
incompatíveis com a lógica do seu funcionamento.
A ideia de que as concessões de campanha proporcionam os votos que
podem levar à vitoria e são irrelevantes porque, conquistado o
Poder, uma guinada no leme marcaria, então, o rumo progressista do
governo de Lula assenta numa análise ingénua e falsa da
realidade, para não dizer oportunista.
Não foi por acaso que a embaixadora dos Estados Unidos em
Brasília manifestou publicamente o seu apreço por Lula e que
Fernando Henrique ensaiou uma aproximação, deixando transparecer
o seu eventual apoio ao candidato do PT, na hipótese de Serra
não ser o seu adversário na segunda volta. É
transparente que ambos deixaram de identificar em Lula uma ameaça ao
sistema. Porquê essa súbita benevolência?
A aceitação de Lula resultaria da conclusão a que
chegaram de que seria um presidente assimilável , ou, para ser mais
preciso, um presidente que se conformaria com as regras básicas da
dominação imperial.
Tal conclusão é prematura. A natureza de classe de um governo
não depende exclusivamente do seu chefe, nem do projecto do seu
partido. No caso do Brasil pesariam muito o envolvimento internacional num
contexto da crise global latino-americana, condicionamentos por ora
imprevisíveis e o comportamento das forças sociais que apoiariam
o governo e das que a ele se oporiam. Não duvido da integridade
pessoal de Lula nem da sua convicção de que «depois»
poderia mudar de estilo e de linguagem, deslocando-se para a esquerda .
Mas as suas boas intenções contam menos do que as
cedências feitas ao longo da campanha. O taticismo, como dizia Lenine,
é uma forma de oportunismo político. Lula cito apenas
alguns exemplos chocantes nunca deveria ter afirmado que, se
presidente, não tolerará ocupações, tal como
não deveria ter-se comprometido a respeitar os acordos com o FMI
assinados pela actual administração. Para tranquilizar a direita
e o imperialismo distanciou-se do MST, talvez hoje o movimento mais
importante da esquerda latino-americana, e, o que é ainda mais grave,
escancarou a porta à capitulação perante os mecanismos da
dominação estrangeira que, ele sabe, são
responsáveis pelo ciclo dramático da dependência
económica e política e impedem o desenvolvimento autónomo
do país.
A escolha para seu vice-presidente de um grande empresário mineiro
ligado ao Partido Liberal controlado pela mafiosa Igreja Universal do Reino de
Deus, foi outra decisão eleiçoeira que lhe prejudicou a
imagem, tal como o acordo com o ex-presidente Sarney. É significativo
que o Conselho Nacional dos Bispos do Brasil tenha sentido a necessidade de
lhe dirigir duas criticas pelo oportunismo das posições assumidas
Não estamos perante atitudes isoladas. Em Novembro pp, em Havana,
durante a Conferencia Anti-Alca, tive a oportunidade de escutar um discurso de
Lula que, pelo seu pessimismo difuso, transmitia uma mensagem desmobilizadora
num momento em que o combate ao projecto de colonização
continental dos EUA é na América Latina, como totalidade, uma
frente de luta prioritária. Posteriormente, o PT decidiu não
participar no plebiscito sobre a integração do Brasil na Alca.
Lula permaneceu mudo ante esse gesto capitulador. Aliás, Lula nunca se
opôs frontalmente ao projecto recolonizador e defendeu publicamente que,
com algumas mudanças cosméticas, "outra ALCA é
possível"...
NÃO AO FATALISMO
O Brasil é, potencialmente, um dos países mais ricos do mundo.
Com excepção da Rússia, talvez não exista outro que
o iguale em recursos naturais. Dispõe de um sector avançado que
o coloca logo após os países industrializados do G-7.
Os mecanismos da dependência, entretanto, empurram-no para trás.
Nas últimas décadas acumulou fracassos.
O balanço dos dois mandatos de Fernando Henrique é esclarecedor
daquilo que não se deve fazer.
FHC foi na juventude um dos mais brilhantes e talentosos sociólogos da
América Latina. Na Universidade de São Paulo, quando o conheci,
chamavam-lhe «O Príncipe». Dizia-se então marxista.
Foi expulso da universidade e no exílio escreveu com o chileno Enzo
Faletto um livro importante a Teoria da Dependência em que
desmontava os mecanismos da dominação imperialista. Mais tarde
renegou essa obra e na Presidência, após a sua conversão
ao neoliberalismo, comportou-se como aliado preferencial do sistema de poder
dos EUA.
Lula não desconhece o funcionamento da engrenagem de
dominação. Denunciou-o desde a juventude, como líder
sindical. Sabe que o povo brasileiro (como quase todos na América
Latina) trabalha para pagar um endividamento que não pára de
crescer. O diabolismo do sistema tem regras rígidas. A falsa ajuda,
vinda sob a forma de empréstimos, créditos, investimentos que
geram royalties escorchantes, etc, suga os excedentes, condiciona as
opções estratégicas, faz do país uma colónia
de novo tipo.
Lula combateu sempre com firmeza esses mecanismos e as políticas
desenvolvidas para os impor. Agora, na sua quarta tentativa de conquista da
Presidência, tornou-se personagem de uma estratégia que, ao
torná-lo cúmplice do sistema, se choca frontalmente com as
aspirações do seu povo.
A capitulação verifica-se num momento de crise global da
civilização, quando o sistema de poder imperial dos EUA
desenvolve um projecto de ditadura militar planetária de contornos
fascistizantes.
A direcção do PT e o seu candidato estão demonstrando
incapacidade de entender as lições da historia. A
tragédia chilena e o inquietante bloqueio do projecto bolivariano de
Hugo Chavez iluminam com nitidez uma realidade. A chamada via
pacífica para uma transformação da sociedade capitalista
que a humanize não é viável na América Latina no
actual contexto histórico. O poder da burguesia, inseparável do
poder transnacional a que está submetida, não pode ser
destruído no quadro institucional por ela criado para lhe servir os
objectivos de classe e os interesses do sistema de poder imperial.
É indispensável utilizar os mecanismos da falsa democracia
representativa para combater por todos os meios a engrenagem de
dominação política e económica que exclui a
participação do povo, ou seja do sujeito da historia. Mas sem
ilusões, sem confundir as insígnias do poder com o poder real. O
PT e Lula demonstram com a sua campanha, semeada de concessões
oportunistas, não ter assimilado essa evidencia.
O despertar pode demorar um pouco se Lula chegar à Presidência.
Mas será, em qualquer hipótese, doloroso .
O lema do Fórum Social Mundial «Outro mundo é
possível» responde à esperança da humanidade.
A engrenagem da globalização neoliberal e o sistema de poder
imperial que a impõe não vão perpetuar-se. São
vulneráveis e, pela sua própria irracionalidade, contem as
sementes da sua própria destruição.
Combatê-los frontalmente é uma exigência da história.
Lutar contra eles optando pelo caminho das concessões, do oportunismo,
é um erro gravíssimo.
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