por Miguel Urbano Rodrigues
Pode o livro de um anticomunista que deturpa grosseiramente a História
ter interesse e ser útil?
Acabo de reler
Alexandra Kollontai
[1]
, de Arkadi Vaksberg, biografia romanceada da revolucionária russa.
Vaksberg não é somente reacionário; é um
anticomunista fanático. Abomina o socialismo, odeia a
Revolução de Outubro e tudo o que ela significa. Essa
posição transparece ao longo do livro. Stalin aparece como um
monstro sanguinário, um inimigo da humanidade. O seu Lenin também
é apresentado como um ser maquiavélico, satânico, desumano.
Arkadi Vaksberg nasceu na Sibéria em 1933 e toda a sua obra é uma
condenação agressiva do socialismo e do pensamento marxista.
Perguntará o leitor que interesse pode então ter um livro
incompatível com um olhar sereno sobre a História, um livro do
qual transpira aversão ao comunismo?
O conteúdo da biografia ajuda compreender a contradição
entre a opção politica e ideológica de Alexandra e a
admiração que inspira ao autor uma personalidade que se assumiu
desde a juventude como comunista.
O positivo no livro não são as opiniões de Vaksberg, mas
as transcrições de textos, cartas e palavras de Kollontai que
permitem ao leitor aceder à compreensão da mulher e da
revolucionária.
O autor teve acesso a uma documentação importantíssima:
arquivos da União Soviética e da Federação Russa,
do Ministério dos Negócios Estrangeiros da URSS, das Letras e
Artes da Rússia, da ex-KGB, da cidade de São Petersburgo, do
Exército soviético, do Supremo Tribunal da URSS, e da atual
Biblioteca Nacional da Rússia, e a numerosos arquivos privados.
Mas mais valiosas do que essa documentação e do que o seu correio
diplomático são os arquivos pessoais da própria Alexandra
Kollontai.
Ela quase se autorretrata na sua volumosa correspondência, milhares de
cartas.
Ainda adolescente, Alexandra iniciou um diário íntimo que durante
anos lhe ocupou muitas horas. Mas em plena juventude, tomava também
notas em caderno que conservou. Registava ideias e pensamentos até em
papéis de restaurantes e hotéis.
Escreveu milhares de artigos e guardou os recortes de muitos.
Já em idade avançada, tentou escrever as suas Memórias.
Não foi longe, porque compreendeu que iria esbarrar em obstáculos
intransponíveis. Durante décadas elogiou Stalin e a linha que ele
impusera ao Partido e quis evitar a contradição frontal entre a
sua identificação com a política oficial e o que dela
pensava e dizia nas conversas com amigos íntimos e em algumas cartas.
Mas o que sobrou das Memórias interrompidas é esclarecedor da
conceção do projeto.
A preocupação que a atormentava na velhice relativamente à
imagem que dela permaneceria explica as mutilações que infligiu
ao seu diário íntimo: tesouradas aqui e ali, páginas
arrancadas dos cadernos, parágrafos riscados, etc.
Foi difícil preservar esse acervo, mas ela conseguiu, confiando-o a
amigos, para evitar que caísse mas mãos da polícia
política ou de inimigos seus.
PIONEIRA DO FEMINISMO
Alexandra Kollontai nasceu numa família abastada. O pai, ucraniano, fez
uma carreira brilhante no exército, ascendeu ainda novo ao generalato e
estava aparentado com a alta nobreza russa; a mãe era de origem
finlandesa.
Alexandra estudou em casa, na tradição da aristocracia. Passou a
infância em Petersburgo e numa propriedade da família na
Finlândia. Casou cedo contra a vontade dos pais, com um jovem oficial,
Vladimir Kollontai, que não pertencia à sua classe social.
Uma amiga, Lelia Stassova, deu-lhe a ler obras proibidas na Rússia
czarista. Alexandra adquiriu ideias então consideradas subversivas.
Adepta da justiça social, percebeu que a sua conquista passava pela
destruição da ordem social existente.
A posição da mulher na sociedade russa revoltava-a. Mas
não encontrou no marido um interlocutor para discutir os problemas que a
preocupavam.
O amor evoluiu rapidamente para uma grande amizade quando se apaixonou por um
oficial, colega e amigo do companheiro. Foi o seu primeiro amante. Mas
não se separou. Concluiu que era possível amar dois homens
simultaneamente, de uma maneira diferente.
Alexandra tinha uma sensualidade explosiva e era uma das mulheres mais belas da
Rússia.
Durou também pouco tempo a paixão por Satkevich.
Entrou em depressão. O amante, a quem chamava carinhosamente o Bonhome,
não aprovou a sua ida para o estrangeiro financiada pela
família para se tratar, mas disse -lhe que a amaria pela vida
adiante. Cumpriu.
Ela cultivava o sentimento da amizade e permaneceu sempre amiga de todos o
amantes, o último quando já ultrapassara os cinquenta anos, idade
em que foi forçada a um aborto clandestino quando era embaixadora da
URSS na Suécia.
A OPÇÃO PELO MARXISMO
A Itália foi o país da Europa Ocidental que escolheu para tratar
a depressão. De Génova passou a Berlim. Mas a sua doença
neurológica era mais imaginária do que real. Regressou a
Petersburgo onde o marido e Saskevitch a receberam sem uma palavra de censura.
A demora na Rússia foi breve. Iniciou quase logo uma maratona que a
levou à Suíça, Inglaterra, Alemanha, França
Bélgica, Itália, e outros países. Conheceu Plekhanov,
Kautsky, Sidney e Beatriz Web, Paul Lafargue e Laura, a filha de Marx, Rosa
Luxemburgo, e Jaurès e Victor Adler. Tornou-se amiga de Rosa, dos
Lafarge, de Clara Zetkin e de Plekhanov. Principiou a estudar Marx. O
materialismo dialéctico entusiasmou-a.
Voltou à Rússia frequentes vezes, mas já então os
seus artigos sobre temas feministas tinham chamado a atenção da
Okrana, a polícia secreta czarista.
Alexandra não via incompatibilidade entre o marxismo e as suas teses.
Não se limitava a fazer a apologia do amor livre. Pronunciava-se contra
o casamento e contra a instituição da família. Era ao
futuro estado socialista que segundo ela devia caber a tarefa de educar as
crianças e não aos pais.
Viveu em Petersburgo os dias escaldantes da Revolução de 1905.
Chamou a atenção como oradora que inflamava as massas.
Grande comunicadora, conquistava os auditórios, mas o discurso era
frágil, as conclusões superficiais.
Foi nessa época que conheceu Piotr Maslov, um académico que a
impressionou profundamente e com o qual estabeleceu uma relação
amorosa que iria durar anos.
Maslov era um menchevique destacado e ela, fascinada pelo seu talento, aderiu
à fação menchevique do Partido Social Democrata Russo ao
qual pertencia também o bolchevique.
Lenin criticava publicamente Maslov, acusando-o de revisionista do marxismo.
Alexandra, já então considerada uma perigosa agitadora pela
Okrana, começou a ser convidada para Congressos e reuniões
internacionais e os seus artigos sobre a libertação da mulher,
publicados em muitos países, contribuíram para a transformar numa
personalidade de prestígio mundial.
Continuava apaixonada por Maslov (que era casado e não abandonara a
mulher) mas isso não a impedia, como adepta do amor livre, de manter
relações sexuais com outros homens. Durante uma reunião
internacional em Copenhaga ela e Karl Liebknecht desapareceram juntos durante
dois dias. Essa breve aventura não teve porém continuidade.
Muito mais séria foi a relação que iniciou em
França com Chliapnikov, um operário russo, bolchevique,
revolucionário profissional, um quadro da inteira confiança de
Lenin. Conheceram-se durante uma conferência de Lunacharski. Ele
abordou-a à saída, convidou-a para jantar e foram para a cama
nessa noite. Ela tinha 39 anos, ele apenas 26.
Chliapovnik informou Lenin, na época residente em Paris, de que estavam
apaixonadíssimos e ele aprovou a relação, sugerindo que a
atraísse para o Partido Bolchevique.
Não foi difícil convencer Alexandra. Em carta a Zoia Chadurskaia,
a sua melhor amiga, escreveu: «Ele abriu-me os olhos para muitas coisas;
transformou-me». Rompeu com os mencheviques e pôs termo à
relação amorosa que mantinha com Maslov.
Alexandra nas suas conferências feministas na Europa e nos Estados Unidos
passou a fazer a apologia entusiástica das teses revolucionárias
de Lenin. Embora sem intimidade, visitava-o com frequência. Foi
então que conheceu Inessa Armand, a franco-russa que foi o único
grande amor de Lenin. Inessa era também uma feminista famosa, defensora
do amor livre.
Algumas divergências com Lenin Alexandra era desfavorável,
como Rosa Luxemburgo e Bukharine, à autodeterminação das
nações, nomeadamente da Polónia não foram
impeditivas de uma grande convergência no fundamental. Ela foi dos
primeiros exilados a chegar a Petrogrado quando irrompeu a
Revolução de Fevereiro em 1917.
Foi recebida triunfalmente. Grande oradora foi eleita para o comité
executivo do soviete da cidade. Recebeu Lenin na fronteira da Finlândia,
depois ter participado ativamente nas negociações que permitiram
a sua passagem pela Alemanha no comboio autorizado pelo governo do Kaiser.
Aderiu com entusiasmo às teses de Abril de Lenin que implicaram uma
rutura com a estratégia anterior do Partido Bolchevique, abrindo caminho
à insurreição vitoriosa de Outubro.
Alexandra desempenhou um papel decisivo na adesão da Esquadra do
Báltico aos bolcheviques. Os Socialistas Revolucionários exerciam
uma influência hegemónica sobre as tripulações. As
tentativas de dirigentes bolcheviques para captar o apoio os marinheiros tinham
fracassado todas.
Lenin decidiu então enviar Alexandra. Nunca antes uma mulher tinha sido
recebida em navios da Armada fundeada em Helsínquia e Cronstadt. Mas no
dia 28 de Abril, Alexandra, recebida por Dybenko, o líder dos
marinheiros, dirigiu-se às tripulações. A sua
oratória conquistou a Armada.
Dybenko apaixonou-se quando a viu e ouviu. Ela tinha então 43 anos, mas
era ainda segundo os seus admiradores a mulher mais bela da Rússia. Ele
tinha apenas 26, menos 17 que ela. Alexandra achou que «tinha encontrado o
homem da sua vida». Continuou a ver nele um amigo querido após se
ter separado. Dybenko, que acabou fuzilado em julho de 1938 depois de ter sido
Comissário do Povo e comandante de exército, amou-a pelo tempo
adiante.
Essa paixão da intelectual por um jovem marinheiro foi então
muito comentada, até por Lenin e Stalin.
Um oficial superior da antiga Marinha Imperial suicidou-se, alegando que
não podia suportar a relação amorosa de Alexandra, ligada
à alta nobreza russa, com um marinheiro semianalfabeto.
Kollontai foi eleita para o Comité Central do Partido e integrou o
primeiro governo soviético como Comissário do Povo para a
Assistência Publica.
Não durou muito o seu momento de glória.
Muitas das suas teses sobre a libertação da mulher foram
assumidas pelo Partido e pelo governo soviético. Mas, mais tarde, Stalin
revogou a maioria das leis feministas.
A personalidade explosiva de Alexandra, a imprevisibilidade das
posições que assumia, a apologia irrestrita do amor livre e
sobretudo a sua vida amorosa eram incompatíveis com o poder
soviético.
Em 1919 ela aderiu com Chliapine (fuzilado nos anos 30) à
Oposição Operária. Exerceu posteriormente
funções importantes, mas sempre hostilizada por dirigentes
destacados. Trotsky e Zinoviev detestavam-na e ela retribuía essa
aversão.
Surpreendentemente, Stalin admirava-a, não obstante discordar do seu
feminismo exacerbado.
Alexandra aliás, numa das suas bruscas viragens, passou a defender a
linha imprimida ao Partido, após a morte de Lenin, pelo poderoso
secretário-geral.
E foi à confiança que Stalin tinha nas suas qualidades de
negociadora e no seu charme que Alexandra deve o êxito que a acompanhou
na sua longa carreira diplomática.
Stalin nomeou-a primeiro em 1923 para a Noruega, onde foi embaixadora, a
primeira mulher no mundo nessa função. Em Oslo viveu um novo
amor, clandestino, com um franco-russo.
Em 1926 foi colocada no México como embaixadora. Mas reagiu mal ao clima
e Stalin, a seu pedido, transferiu-a para a Europa. A sua missão mais
importante foi a de embaixadora na Suécia, onde, durante a guerra,
desempenhou com brilho e talento tarefas delicadas.
Nesses anos Alexandra comportou-se permanentemente como uma epígona de
Stalin. Da antiga Walkiria, expulsa de diferentes países pelas suas
ideias «subversivas», somente restava o gosto pelo luxo. Vestiu se
sempre nos melhores e mais caros costureiros.
No seu diário íntimo e em algumas cartas transparece uma grande
frustração quando se interroga sobre a sua vida, marcada por uma
cadeia de contradições antagónicas.
Não encontra respostas que a satisfaçam. Falando em
público, elogiou sempre Stalin e a linha do Partido, mas no
diário intimo, somente publicado muitos anos após a sua morte,
não esconde a angústia que a invadiu quando amigos queridos foram
condenados à morte nos processos dos anos 30.
No seu jornal de embaixadora aprova o pacto germano-soviético de 1939,
como «totalmente correto» e «brilhante operação
política, mas criticou-o em encontros privados.
Na sua correspondência queixa-se de estar rodeada de espiões em
Estocolmo. Mas no diário da embaixada felicita o procurador Vichinsky
quando foi nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros. Numa carta
enaltece o seu trabalho nos processos de Moscovo e diz admirar «a sua
sagacidade política» e os «discursos sempre brilhantes».
Mas no diário íntimo escreveu: «Temo muito o dogmatismo de
Vichinsky. Receio o mal que pode fazer pela sua crueldade e
intolerância».
Sofreu com o processo de Bukharine: «Tenho medo por muitos amigos.
Sinto-me torturada, com o coração atormentado». Numa carta a
Zoia abriu-se: «Vivo como se estivesse num palco (
) não digo
o que penso e, pelo contrário, na maior parte das vezes digo o que
não penso».
Escreveu dezenas de cartas a Stalin, que lhe atribuiu a Ordem de Lenin, mas ele
raras vezes lhe respondeu.
A chuva de elogios é constante nessa correspondência. Após
o XVI Congresso do PCUS felicitou-o «pelo seu magnifico discurso» e
pela «sagacidade do Partido, guiado por um grande chefe».
Em 1934, uma sessão plenária do Comité Central em que
participou entusiasmou-a: «impressionou-me a paixão com que a
assistência escutou Stalin e reagiu a cada um dos seus gestos. Emana dele
magnetismo».
Mentia mais uma vez?
Vaksberg no seu livro deturpa a História, calunia Lenin e a
Revolução de Outubro, mas não esconde a sua
admiração por Alexandra Kollontai.
O que confere interesse à biografia da revolucionária são
as transcrições de documentos do seu espólio.
Em Moscovo, ao regressar da Suécia atribuíram-lhe uma
pensão confortável, mas foi rapidamente esquecida pelos
dirigentes do Partido.
Sentia o peso da solidão. Dizia não temer a morte. Mas a amargura
foi permanente na velhice. Nos últimos anos raramente saía do seu
apartamento. Continuou a escrever. Mas praticamente vivia numa cadeira de rodas.
Permaneceu lúcida até ao fim. Doía-lhe ter sido uma
mãe omissa.
Tinha consciência de, a partir do início da carreira
diplomática, haver rompido as pontes com a Alexandra
revolucionária? É duvidoso. A embaixadora, que se identificava
publicamente com a política de Stalin, comportava-se no quotidiano como
uma grande burguesa. No México quando lhe chamaram camarada, exigiu o
tratamento de Excelência.
Quando faleceu em 1952, foi sepultada discretamente no cemitério de
Novodevitchi, ao lado de Tchicherine e Litvinov, no talhão dos
diplomatas.
Mas tal como pretendia, Alexandra Kollontai atravessou o pórtico da
História.
Vila Nova de Gaia e Serpa, Março de 2016
[1] Arkadi Vaksberg,
Alexandra Kollontai
, Ed.Fayard, Paris, 1996, 517 pgs.
O original encontra-se em
www.odiario.info/?p=3967
Esta resenha encontra-se em
http://resistir.info/
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