A «Campanha Admirável» de Bolívar
recordada por Juvenal Herrera Torres
por Miguel Urbano Rodrigues
O pensamento de Bolívar
tal como acontece com o pensamento de homens como Karl Marx transcende
os tempos. Tem e terá continuadores. Por isso se fala do pensamento
bolivariano, como se fala do pensamento marxista. Cada qual, naturalmente, com
os seus próprios esquemas e estilos. Um e outro, partindo de mundos e
realidades diferentes, fizeram a critica fulminante da opressão
existente e traçaram caminhos aos povos.
- Juvenal Herrera Torres, in
Bolívar: La Libertad del Ser y del Pensar,
pg 119.
Não é frequente sentir o desejo de escrever sobre um livro
imediatamente depois de o ler. Isso aconteceu agora com
Bolívar y su Campaña Admirable
[1]
.
Já conhecia outras obras do autor. Apreciara sobretudo
Simón Bolívar - El hombre de América, presencia y camino
[2]
, um ensaio fascinante sobre o grande revolucionário latino americano.
Juvenal Herrera Torres é um colombiano de Medellin, olhado como
historiador maldito, no seu país, pelos intelectuais da oligarquia.
Não lhe perdoam o esforço desenvolvido como universitário
e escritor para «recuperar» Bolívar e reflectir sobre a
actualidade do seu pensamento e da sua obra.
Quando o encontrei há dias em Havana falámos durante muitas horas
de Bolívar e da teia de calúnias que as forças mais
reaccionárias do Continente continuam a tecer em torno do homem, do
político e do revolucionário.
Desde a insurreição que abriu caminho à efémera I
Republica na Venezuela, a vida de Bolívar foi um batalhar permanente
pela independência e unidade dos povos da América Latina.
Precisamente por ter sido um revolucionário, o Libertador tornou-se um
pesadelo para as forças que tudo fizeram para lhe destruir a obra e
apagar a sua memória. Não podendo ignorar a sua
intervenção na História, criaram o mito dos dois
Bolívares: enaltecem o general vitorioso, mas satanizam o estadista, o
pensador político, o reformador social.
Juvenal Herrera desmonta no seu último livro essa tese fantasista.
Para atingir o objectivo usa como instrumento uma das campanhas menos
conhecidas de Bolívar.
O discurso do historiador é transparente e permite ao leitor, colocado
no cenário temporal dos acontecimentos, acompanhar no dia a dia a
historia em movimento. É dos actos e das palavras que nasce a
evidência: entre o militar e o político não ha
contradições, mas, pelo contrário, uma grande harmonia.
São complementares.
É natural que a memória da Campanha de Bolívar, em
1812/13 seja muito incómoda para as oligarquias colombiana e
venezuelana. Ela ficou a assinalar uma prodigiosa façanha militar, com
implicações políticas continentais e chamou a
atenção dos povos da América e para o génio do
jovem que a concebeu e concretizou.
Bolívar, tinha apenas 29 anos quando em Cartagena um dos
últimos redutos, no Caribe, da rebelião contra a coroa
espanhola ofereceu os seus serviços ao Congresso de Nova
Granada.
O coronel Manuel Catillo e Labatut, que exerciam então o comando militar
naquele bastião independentista, não levaram muito a sério
o pedido do jovem caraquenho que regressava derrotado de Puerto Cabello, na
Venezuela. Mas, perante a insistência, Camilo Torres, presidente do
Congresso da Nova Granada, tomou a iniciativa de lhe atribuir uma tarefa
irrelevante: instalar-se com 70 homens em Barranca, um vilarejo no Baixo
Magdalena. Ficou claro que a sua missão seria de simples
vigilância. Estava-lhe vedado iniciar qualquer operação
militar sem receber ordens de Cartagena.
As tropas espanholas ocupavam então as principais cidades de Nova
Granada, incluindo Santa Fé de Bogotá .
Pela audácia, imaginação, talento e
concepção estratégica, aquilo que Bolívar fez nas
semanas seguintes traz à memória guardadas as
proporções, dados os seus insignificantes recursos humanos e
materiais campanhas de Alexandre, Aníbal, César e
Bonaparte.
Em Barranca, Bolívar reforçou o seu destacamento de soldados
famélicos com 130 voluntários, construiu dez balsas e navegou
rio acima.
No dia 23 de dezembro atacou e tomou Tenerife, defendida por uma
guarnição de 500 homens. Venceu.
Informou Cartagena da sua vitoria, mas não esperou pela resposta.
Seguiu para o Norte pelo Magdalena e derrotou os espanhóis em
Mompós. Encontra ali 15 barcos, e obtém a adesão de
mais 300 voluntários.
As guarnições realistas milhares de soldados e oficiais
ao saberem da sua aproximação abandonam as praças
que ocupavam. Entra assim quase sem combater em El Banco, Chiriguaná,
Tamalameque e Puerto Real.
Em apenas 17 dias limpou de tropas espanholas o Vale do Baixo Magdalena.
No inicio de Janeiro de 1813, dispõe já de um pequeno
exército de 700 homens. Para financiar a campanha expropria os bens
dos inimigos da independência nos
pueblos
conquistados e estabelece o
empréstimo obrigatório
para os moradores ricos.
Antes de iniciar as operações militares, Bolívar tornara
pública, em 15 de Dezembro, uma proclamação que ficou
conhecida como o Manifesto de Cartagena, que antecipou, pelo rumo
traçado e pelas opção ideológica, a Carta de
Jamaica, o discurso no Congresso de Angostura, o pensamento do Congresso
Anfictiónico do Panamá e o Projecto da Constituição
da Bolívia.
O Manifesto de Cartagena é simultaneamente uma reflexão sobre a
História e a síntese da sua futura estratégia
revolucionaria. Segundo o filósofo Fernando Gonzalez, «está
ali a história da Revolução até 1813 e é e
será sempre um ensinamento para a América do Sul».
Bolívar deixa entrever o seu objectivo imediato:
«A Nova Granada viu sucumbir a Venezuela; por conseguinte, deve evitar os
escolhos que destroçaram aquela. Para esse efeito apresento como medida
indispensável para a segurança da Nova Granada a reconquista de
Caracas».
Em Cartagena de Índias e Tunja, onde se instalara o Congresso, as
notícias das vitorias de Bolívar provocam
reacções antagónicas. O povo recebe-as com entusiasmo.
Os políticos, com poucas excepções, e os comandos
militares afirmam que Bolívar violou as instruções
recebidas e está actuando de maneira irresponsável. O coronel
Manuel Castillo acha que é
um demente,
que nada entende da arte da guerra.
Os comandantes espanhóis concluem que o jovem venezuelano vai
permanecer onde está para consolidar as áreas reconquistadas.
Mas é outro o seu plano. Depois de simular que iria subir o Magdalena
para atacar Bogotá, abandona o vale e, numa manobra rapidíssima,
toma a 8 de Janeiro a praça de Ocaña, ponto estratégico
que domina a passagem da Cordilheira Oriental dos Andes.
Recrudesce em Tunja e Cartagena, entre os politiqueiros, o clamor contra
o caudilho venezuelano.
Bolívar não rompe, mas não se submete. Pede
autorização para avançar sobre Cucuta e Mérida,
rumo a Caracas.
Castillo qualifica de «aventura quimérica» o projecto,
próprio de uma «cabeça delirante». A
desproporção de forças é efectivamente enorme.
Enquanto Bolívar dispõe então de 1600 soldados mal
alimentados, mal vestidos e pior armados, as forças realistas, sob o
comando de Monteverde, contam com mais de 16 mil homens (e uma excelente
artilharia) concentrados em lugares estratégicos.
Entretanto, os inimigos de Bolívar são derrotados militarmente
na Costa pelos realistas e a relação de forças muda no
Congresso. Camilo Torres, com o apoio solidário de António
Nariño o grande prócer da independência
consegue que Bolívar seja nomeado comandante-chefe. De repente, recebe
autorização para avançar sobre a Venezuela.
Essa segunda parte da campanha foi o complemento natural da primeira.
O génio estratégico e táctico de Bolívar
impôs-se. Confundir um adversário que no início tinha
sobre ele uma superioridade de 10 para 1 foi a permanente
preocupação do Libertador. Cartas suas com planos falsos
apreendidas a mensageiros ajudaram muito. Nunca estava onde os peninsulares o
imaginavam e caía sobre eles quando e onde era menos esperado. Em 23
de Maio entrou em Mérida.
Não cabe aqui uma síntese do que foi a sua cavalgada. No fim de
julho destroçou os realistas em Targuanes, depois de os expulsar de
Trujillo. Avança sobre Valência, ocupa-a, e no dia 6 de Agosto
é recebido triunfalmente em Caracas, abandonada pelo exército
espanhol. Em apenas oito meses, durante os quais percorreu mais de dois mil
quilómetros, varreu os espanhóis de um vastíssimo
território, de ambos os lados da Cordilheira, e libertou Caracas.
O DECRETO DA «GUERRA A MUERTE!»
Juvenal Herrera chama a atenção no seu livro para a
importância que assumiu na Campanha Admirável uma decisão
de transcendental significado tomada por Bolívar: o polémico
decreto de «Guerra a muerte!».
Ao ocupar Trujillo, apercebera- se da indiferença da
população no recebimento daqueles que chegavam para a libertar.
Na Venezuela contrariamente ao que ocorria em Nova Granada, onde a
herança da rebelião dos
comuneros,
no final do século XVIII,
deixara raízes na consciência das massas o povo
não se tinha sentido representado no discurso dos próceres da I
Republica. Esta fora obra de uma aristocracia de brancos descendentes de
espanhóis que, embora invocando os ideais da Revolução
Francesa, mantinham a escravatura e desprezavam índios e mulatos e
pretendiam conservar os seus privilégios. O próprio
Bolívar pertencia pelo nascimento a essa classe social .
Atentos ao sentimento das classes oprimidas, os realistas compreenderam
que, mediante uma política demagógica, poderiam transformar em
aliada a massa dos oprimidos. Por um lado desencadearam uma feroz
repressão contra a classe dominante dos crioulos brancos.
Simultaneamente, promoveram o levantamento dos negros, dos índios
escravizados, dos mestiços, dos libertos. O clero, ultra
reaccionário, ajudou, exigindo fidelidade ao rei de Espanha, Fernando
VII, que representava Deus .
Como sublinha Juvenal Herrera, «Bolívar não esquecia que
muito mais de metade das forças realistas na Venezuela era formada por
nativos que haviam adquirido o habito da obediência ao império,
que nunca tinham sido livres e portanto nada sabiam de liberdade, e, assim,
nessas circunstancias, a guerra de independência tinha ao mesmo tempo
certo caracter de confrontação civil».
Ao declarar por decreto uma guerra sem quartel aos ocupantes estrangeiros,
Bolívar pretendeu «divorciar a fidelidade a Cristo da fidelidade ao
Estado espanhol». O objectivo era a «substituição do
rei, como símbolo de fraternidade e justiça pela América
e a Republica».
Vale a pena recordar que Carlos IV, deposto por Napoleão, tinha
declarado publicamente que «os americanos não têm necessidade
de saber ler (...) basta que sejam reverentes para com Deus e o seu
representante, o Rei de Espanha».
«Ao opor a 'guerra a muerte' ao ódio de castas e raças
comenta Juvenal Herrera Bolívar indicou ao povo que a
divisão não se faria de acordo com o nível social ou a cor
da pele , que a pátria era o património comum de todos os nela
nascidos».
A «Campanha Admirável» não visava a liquidar o
domínio espanhol no Continente. A curto prazo não seria
possível. Bolívar tinha consciência disso. Meses depois
da retomada de Caracas, finda a guerra contra a França na Europa, a
Espanha ficou com as mãos livres para combater a rebelião das
colónias na América. Em breve, o general Pablo Morillo
desembarcaria com um exército de 15 mil veteranos das guerras contra
Napoleão. Dez anos de luta transcorreram ate à
capitulação no Peru do último exército da Espanha
na América do Sul.
Mas a Campanha Admirável foi, alem de assombrosa façanha
militar, uma experiência que permitiu a Bolívar conhecer melhor
os povos da Região, reflectir sobre o tipo de
instituições a eles adequadas e estruturar a sua
concepção do exército libertador.
Para o jovem general, o exército deveria ser o braço armado do
povo, um instrumento de garantia das liberdades e direitos dos cidadãos,
ao serviço da nação, garantia futura da
independência.
Datam dessa época os primeiros atritos com Santander, que, anos depois
seria o seu maior adversário.
O REFORMADOR REVOLUCIONÁRIO
Quando, finda a guerra, Bolívar tratou de aplicar na Grande
Colômbia Venezuela, actual Colômbia, Panamá e Equador
as suas ideias libertárias, tornou-se inevitável o
conflito com uma parcela ponderável dos seus generais e os defensores
de um parlamentarismo caricatural inspirado em modelos europeus.
Bolívar libertou os escravos, determinou a restituição
das terras aos índios, instituiu a educação gratuita,
criou hospitais, asilos e creches, protegeu a produção nacional
da livre concorrência com as mercadorias importadas, incentivou a
indústria e o comércio, nacionalizou as minas e decretou o
monopólio estatal das riquezas do subsolo, moralizou a Justiça,
defendeu a soberania nacional no diálogo com os EUA e a Inglaterra,
então a primeira potência mundial.
A sua ditadura do ano 28, tão caluniada pelas forças da direita,
foi um regime revolucionário e progressista que antecipou ideias da
ditadura do proletariado, tal como a viria a definir Lenine quase um
século mais tarde.
Para as oligarquias locais, que já detinham o poder económico,
a independência deveria garantir-lhes o poder político.
Opunham-se a mudanças de fundo nas estruturas sociais e
económicas herdadas do império espanhol.
Bolívar concluiu que a vitoria militar seria inútil socialmente
se não adoptasse uma política que permitisse a
reconstrução do Estado em beneficio das grandes maiorias. As
suas ideias universais chocavam-se frontalmente com o regionalismo conservador,
os egoísmos de classe, a arrogância e a mesquinhez da nova
aristocracia militar.
A Igreja excomungou Bolívar, comparou-o a satanás. Os inimigos
chamaram-lhe «caudilho dos descamisados», «monstro do
género humano», «tirano libertador de escravos», etc.
Para Santander, que considerava uma dádiva da Providencia a
vizinhança dos EUA, o exército deveria ser o braço armado
do estado oligárquico, tal como o concebia. A propriedade privada era,
na sua concepção da democracia, sagrada. Daí a sua
irredutível oposição ao Bolívar
revolucionário, quando este, ao regressar do Peru, após cinco
anos de ausência, alarmado com o espectáculo de miséria
oferecido pelas massas oprimidas, desabafou numa carta que lhe dirigiu:
«Não sei como não se levantaram ainda todos estes povos e
soldados ao concluírem que os seus males não vêm da guerra,
mas de leis absurdas».
Santander, ao tempo vice-presidente da Grande Colômbia, acusou-o de
querer desencadear «uma guerra interior em que ganhem os que nada
têm, que são muitos, e percam os que temos, que somos
poucos».
Não é de surpreender que Washington condenasse com
veemência o projecto bolivariano de uma América Latina unida numa
vasta confederação de Estados irmãos. Os governos de
Monroe e de John Quincy Adams viram nele «um déspota militar de
talento», o «louco da Colômbia», o libertador de negros.
Os agentes consulares norte-americanos no Peru financiaram múltiplas
conspirações contra o revolucionário cujas ideias e actos
eram incompatíveis com os projectos de Washington para o Sul do
continente. Foi um desses diplomatas que incentivou a invasão do
Equador pelo exército peruano. Outros deram apoio permanente ao
general Ovando, responsável pelo assassínio do marechal Sucre, o
mais puro dos grandes soldados de Bolívar.
Como recorda Juvenal Herrera no seu importante livro sobre a Campanha
Admirável, assistiu-se naquela época, tão mal estudada
nas escolas da América Latina, a uma aliança de quantos se
opunham à concretização «do ideal bolivariano que
identificava a guerra de libertação com uma
revolução social que extinguisse os privilégios e
eliminasse todas as formas de opressão, elevando os habitantes ao
nível de cidadãos».
Sucre costumava dizer que Bolívar diferia de todos os seus companheiros
porque tinha o dom de «ver o futuro».
Em 1830, quando ele morreu amargurado, as classes dominantes festejaram em
todo o continente o seu desaparecimento físico. Estavam convictas de
que a sua obra fora definitivamente destruída. Engano.
O Libertador desenvolveu uma unidade orgânica harmoniosa entre o
pensamento e a acção. O seu exemplo, as suas
lições, a sua concepção da unidade latino-americana
não foram esquecidos. Hoje, transcorridos 173 anos, o projecto
revolucionário bolivariano permanece vivo e as suas bandeiras
são retomadas em toda a América Latina
_________
NOTAS
1- Juvenal Herrera Torres,
Bolívar y su Campaña Admirable,
135 pgs, Ed. de Corporación Bolivariana Símon Rodriguez,
Medellin, Colombia, 2003.
2- Juvenal Torres Herrera,
Bolívar, el hombre de América, presencia y camino,
495 pgs, Universidade Autónoma de Guerrero, Mexico, 2001, 2ª
edição.
Este artigo encontra-se em
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