por Miguel Urbano Rodrigues
A tempestade de protestos que soprou pelo mundo no dia 12, fundindo num clamor
planetário a condenação da guerra, tem um significado
político e humanista transparente. Foi uma repetição. As
gigantescas manifestações de sábado deram continuidade
às do 15 de Fevereiro.
Os povos da Terra, pátria do homem, mobilizaram-se pela segunda vez num
breve espaço de tempo para expressar a sua repulsa pela violência
irracional e pelo projecto subjacente à tragédia iraquiana.
Nunca antes na história se produziu uma confrontação
similar. Ela opõe um sistema de poder, economicamente muito poderoso
e militarmente hegemónico, à esmagadora maioria da humanidade,
representada pelo exército sem armas que em centenas de cidades da
Europa, da Ásia, da América, da África ,da Oceânia
sai às ruas para advertir que as coisas não podem continuar
assim.
A destruição das grandes cidades do Iraque e a morte sob os
mísseis e bombas dos agressores de milhares de civis foram o desfecho
esperado de um projecto anunciado com suficiente antecedência para que a
recusa de aval do Conselho de Segurança das Nações Unidas
o fizesse aparecer como uma guerra de agressão dos EUA, uma guerra
selvagem, ilegítima, concebida para roubar o petróleo de um
pequeno país, no âmbito de uma ambiciosa estratégia de
dominação planetária.
Em si mesmas as imagens das manifestações de repúdio
à cruzada de barbárie demonstram que a campanha de
desinformação montada pelos governos de Washington e Londres
com a cumplicidade das transnacionais que controlam as grandes cadeias de
televisão não conseguiu atingir um dos seus principais objectivos.
Mas a engrenagem responsável pela guerra conseguiu até agora
desviar a atenção daquela que é a maior fragilidade do
sistema de poder imperial: a falta de uma base social de apoio estável
e suficiente para o desenvolvimento da estratégia na qual a
vandalização do Iraque foi somente uma etapa.
Todos sabemos que a «coligação dos 50» é um
slogan da propaganda. Na prática apenas os governos de três
países apoiaram a guerra estadunidense: os do Reino Unido, da Espanha
e da Austrália, com a peculiaridade de, no terreno militar, somente a
participação britânica ter sido significante.
Sabemos também que uma parcela ponderável do povo dos EUA, que
inclui grande parte da
intelligentsia,
condenou a guerra e está a desempenhar um papel importante no
combate ao projecto imperial. Sabemos igualmente que os povos da Grã
Bretanha e da Espanha se opõem maciçamente à
política capituladora dos respectivos governos e exigem nas ruas a
demissão de Blair e Aznar. Na Austrália o panorama não
é muito diferente.
Essa contradição entre governantes e povos ilumina com luz forte
a fragilidade de uma aliança fantasmática. A guerra genocida
contra o Iraque foi imposta pelo sistema de poder estadunidense, com a
adesão de dirigentes políticos cada vez mais veementemente
desaprovados pelas populações que os elegeram.
O Presidente dos EUA ainda consegue iludir a maioria do eleitorado do seu pais,
embora o índice da sua popularidade tenha caído acentuadamente.
Segundo uma sondagem publicada pela revista
Newsweek
, apenas 51% dos eleitores votariam nele hoje para Presidente.
Porventura estará o movimento universal de condenação da
guerra a aproveitar todas as possibilidades oferecidas pela
contradição acima citada? Não creio. Conhece as
fragilidades do inimigo, mas não as tem explorado suficientemente, por
falta de organização centralizada.
Em Washington, os estrategos do plano que, a ter êxito, conduziria
gradualmente a uma ditadura militar planetária e a um fascismo de novo
tipo, estão apreensivos -- embora não o confessem -- com a
caudalosa vaga de indignação levantada pela invasão e
ocupação do Iraque.
Sistema de poder algum consegue alcançar os seus objectivos e
manter-se por muito tempo se encontra pela frente a oposição
activa e organizada do seu próprio povo. Neste caso é a
força torrencial da oposição dos povos da Terra que
tende a promover nos EUA (e nos estados satélites como o Reino Unido e
a Espanha) a rebelião das consciências .
O RACISMO IMPERIAL
Zbignew Brezinski, um dos mais talentosos ideólogos da direita
norte-americana, sintetizou assim uma das metas da actual
Administração: «O objectivo dos EUA deve ser conservar os
nossos vassalos em situação de dependência, garantir a sua
docilidade e a protecção dos nossos soldados, bem como evitar a
unificação dos bárbaros».
O prof. Stephen Hares, do Instituto de Estudos Estratégicos da
Universidade de Harvard, diz o mesmo usando outras palavras: «O nosso
objectivo não é lutar contra um rival, porque este não
existe, mas conservar a nossa posição imperial e manter a ordem
imperial».
Essa linguagem faz lembrar a de Roma após a destruição de
Cartago, quando passou a exercer uma hegemonia total sobre o
Mediterrâneo Ocidental. E também as proclamações
dirigidas pelos procônsules de Hitler aos povos da Polónia e da
Checoslováquia.
No seu quartel general do Qatar, o general Tommy Franks, interrogado sobre o
numero de vítimas civis iraquianas, respondeu secamente:
«nós não contamos os cadáveres».
O comandante da máquina de guerra que chacinou milhares de pessoas e
os intelectuais que definem a estratégia de dominação
mundial dos EUA não temem expressar-se com uma franqueza brutal. Ela
tem o mérito de dissipar ilusões sobre o que a humanidade pode
esperar da engrenagem que contempla o Terceiro Mundo como um vasto Protectorado
que deve ser governado com mão pesada de modo a que os vassalos se
comportem com docilidade. Na Terra organizada sob a égide de
Washington, a autonomia dos Estados de economias desenvolvidas também
seria limitada, incluindo a dos aliados satélites.
Não foi por acaso que nos últimos dias, Colin Powell, Donald
Rumsfeld e Ary Fleischer, o porta-voz da Casa Branca, multiplicaram as
advertências à Síria e ao Irão, exigindo que mudem
de política, convidando ambos a extraírem as lições
implícitas nos acontecimentos do Iraque. O presidente Bush já
começou a acusar a Síria de possuir armas químicas. E
não terá sido por iniciativa pessoal que o obscuro embaixador
dos EUA na Republica Dominicana sugeriu a Fidel que reflicta sobre o destino
do povo iraquiano.
A arrogância e o conteúdo ameaçador do discurso neonazi
de altos funcionários e militares que falam pela
Administração dos EUA ajudam a arrumar as peças do
puzzle
e a compreender melhor o significado de atitudes e situações
inseparáveis dos objectivos a curto e médio prazo do sistema
de dominação imperial.
Não é consequência inelutável do rescaldo de uma
guerra o espantoso caos implantado em Bagdad. Segundo os jornalistas que
acompanharam as tropas invasoras, os «incrustados», divulgadores das
mensagens do poder, estaríamos perante uma fatalidade.
Mentem. Transcorridos cinco dias sobre o fim ali da resistência
organizada, Bagdad, no momento em que escrevo, continua submetida a saque.
Não estamos perante uma explosão de violência
incontrolável, orientada apenas para o roubo de alimentos.
Não. Grupos organizados assaltam os edifícios públicos e
destroem tudo o que ali encontram.
As reportagens de jornalistas dignos e corajosos, como Robert Fisk, e as de
correspondentes da BBC, da NBC e da Radio Nederland, confirmam que as
forças de ocupação estadunidenses assistem passivamente
a essa orgia de selvajaria. Por vezes estimulam o saque(1). Alguns soldados
divertem-se a disparar «ameixas» contra civis, a treinar a pontaria
abatendo «galinhas» (mulheres), em exercícios de tiro a alvos
humanos.
Destacamentos de tropas especiais protegem as instalações
petrolíferas em todo o país. Mas bandos de saqueadores puderam,
sob os olhares indiferentes de oficiais e soldados dos EUA, invadir o
Museu de Arqueologia de Bagdad, e arrasar ou roubar tudo o que encontraram
pelo caminho. O comando americano sabia que o Museu era património da
humanidade, uma página viva da história das antigas
civilizações de Sumer, Ur, Babilónia, Elam, da
Assíria, dos alvores da civilização persa, do mundo Parto,
da época Sassanida, etc. Mas os invasores do século XXI
comportaram-se como modernos bárbaros, tornando-se cúmplices de
um crime de cultoricídio.
Fundações ligadas à cultura norte-americana não
hesitam em investir milhões de dólares em fragmentos da antiga
porta de Ishtar, de Babilónia. Ou num touro alado de Nimrod, para
oferecer esses e outros tesouros artísticos ao Metropolitan Museum, de
Nova York. Mas permanecem mudas perante os crimes de lesa cultura cometidos
nestes dias na Bagdad ocupada pelas Forças Armadas da União.
O saque da capital iraquiana e sobretudo a vandalização do seu
maravilhoso museu nacional de arqueologia, consentidos pelas armas
estadunidenses, foram outra advertência do poder imperial. O seu
desprezo pela cultura lembra o do III Reich alemão.
O DISCURSO DA HIPOCRISIA
A irracionalidade que assinala desde a sua preparação esta
guerra de genocídio humano e cultural é tamanha que qualquer
esforço de reflexão sobre ela é pobre, insuficiente.
A propaganda imperial orienta agora o massacre mediático desinformativo
sobretudo para a ajuda humanitária e a reconstrução do
Iraque.
Desmascarar essa ofensiva é outra tarefa urgente.
A estupidez do inimigo, por vezes, ajuda. O general Tommy Franks -- um
exemplo -- teve o descaramento de afirmar em Kabul, após visita de
inspecção imperial, que as forças armadas
norte-americanas aprenderam muito no Afeganistão e, agora, «a
grande prioridade é dar atenção à ajuda
humanitária ao povo».
A hipocrisia do discurso sobre a ajuda humanitária somente é
excedida pela que envolve o discurso sobre a
«reconstrução» do país. Aí -- como
já salientei em artigo anterior publicado em
http://resistir.info
-- intervêm simultaneamente interesses bilionários de grandes
transnacionais e de personalidades da equipa presidencial, e um sinuoso jogo
político que se desenvolve na área das relações
internacionais.
Ocupada Bagdad e instalada ali a ordem imperial estadunidense, Washington
procura obter dos governos que se opuseram à sua «cruzada
libertadora», senão a aprovação da guerra, pelo
menos a aceitação do facto consumado dela resultante.
Tendo em vista esse objectivo, a chamada «reconstrução»
aparece como um terreno de diálogo com os governos da França,
da Rússia e da Alemanha. Fatias do bolo a serem distribuídas,
embora pequenas, podem ajudar a eliminar resistências e a promover
cumplicidades. Pelo que transpirou do encontro no Kremlin entre Putin,
Chirac e Schroeder são fundamentados os temores de que o trio se
acomode rapidamente ao
status quo
imposto pelos conquistadores, conformando-se com um papel subalterno para as
Nações Unidas. Outra é, felizmente, a atitude dos povos
desses países.
Em Paris e Berlim, nos meios oficiais sequer se comenta o maior dos
absurdos: Os EUA violaram a carta da ONU, desencadeando uma guerra cujo
motivo era, segundo o seu governo, «desarmar Sadam Hussein»
possuidor de armas de extermínio maciço que constituiriam
ameaça para a humanidade.
O Iraque foi invadido, bombardeado e ocupado, Sadam está desaparecido e,
afinal, não foram utilizadas encontradas as terríveis armas
anunciadas. Mas Putin, Chirac e Schroeder já iniciaram a metamorfose
camaleónica. Tratam agora de dialogar sobre a
«reconstrução» de tudo o que os EUA ali
destruíram.
A «reconstrução» política, essa ,promete criar
dissabores a Washington. Um general norte-americano, Jay Gardner, prepara-se
para assumir a sua tarefa de procônsul investido por tempo indeterminado
de poderes absolutos.
Mas o trabalho dos Quislings iraquianos, isto é de traidores dispostos
cumprir ordens do comando estadunidense, não se apresenta sob
perspectivas promissoras. Um dos primeiros candidatos foi abatido numa
mesquita de Bagdad. Outro, Ahmad Chalabi, que se intitula presidente de um
tal Congresso Nacional Iraquiano no exílio, decepcionou Washington com
declarações impróprias de alguém que durante anos
foi um dócil vassalo do Pentágono.
HEROIS E COVARDES
O líder iraniano Kamenei, dirigindo a oração na grande
mesquita de Teerão, afirmou que na memória dos povos do
Islão a guerra criminosa contra o Iraque deixará uma
lembrança perpétua, comparável à de Hiroshima para
a humanidade .
Não creio que exagere. O respeito pelo povo do Iraque, no mundo,
tende aliás a acompanhar a subida da maré de repulsa pela
agressão que o atingiu.
Não há mentiras forjadas pela propaganda imperial que possam
apagar a evidencia. O povo iraquiano opôs-se colectivamente à
invasão. Não tinha ilusões sobre o desfecho. É
ridículo insistir que a resistência nasceu de uma decisão
pessoal de Sadam. Sem o apoio do povo ela seria impossível.
Como escreveu Jean Paul Sartre, em determinadas situações
históricas enfrentar a morte é preferível a optar pela
vida em troca da renuncia à dignidade.
No caso do Iraque a opção foi colectiva. Eles resistiram durante
três semanas, com armas quase obsoletas, ao ataque da gigantesca
máquina militar do império que aspira ao domínio do
planeta. E a sua resistência, embora noutro quadro, não findou.
No domingo realizou-se em Bagdad a primeira manifestação de
protesto contra a ocupação. Apareceram cartazes onde se lia:
«Yankees Go Home!»
Os grandes poetas árabes vão cantar pelo tempo adiante essa
epopeia iraquiana.
Os EUA venceram militarmente a guerra. Ainda não perceberam que
já começaram a perdê-la politicamente, o que
apressará a decadência do monstruoso sistema de poder neonazi
que ali tomou forma, ameaçando a humanidade.
Os heróis estiveram em Bagdad; os covardes foram aqueles que em
Washington impuseram a cruzada genocida.
Não é demais repetir que o nosso tempo será recordado
como de viragem histórica. Este ano trágico de 2003 traz-me
à memória o desespero de milhões de pessoas quando o
exército alemão, em Junho de 1940, desfilou ao som de fanfarras
sob o arco do Triunfo em Paris. Transcorrido pouco mais de um ano, as tenazes
da Wehrmacht fechavam o cerco a Leninegrado e as suas vanguardas chegavam
às portas de Moscovo. Para a esmagadora maioria da humanidade o Reich
nazi projectava então uma imagem de invencibilidade.
Hoje o sistema de poder dos EUA, de contornos neonazis, também parece
invulnerável. Não é. Num contexto histórico muito
diferente, e sendo ainda imprevisíveis as circunstancias em que
perderá a batalha, terá um destino similar ao de impérios
que o precederam.
O clamor dos povos ,no 15 de Fevereiro e no 12 de Abril, carrega a
esperança da humanidade na luta contra a ameaça que compromete
a sua sobrevivência. O projecto neonazi dos EUA não
passará.
La Habana, 13/Abr/2003
________
[1]
Em Kandahar, durante a guerra de agressão ao Afeganistão, quando
a cidade, após demorado cerco, decidiu render-se, foi assinado um acordo
de capitulação com as forças afegãs aliadas dos
EUA que garantia a vida da guarnição. Posteriormente, o comando
norte-americano anulou esse acordo. Bandos de salteadores chegaram das
montanhas e foram autorizados a entrar em Kandahar. Durante a noite a cidade
foi submetida a um saque sangrento. Pela manhã um milhar de
cadáveres amontoavam-se nas ruas. A guarnição tinha sido
exterminada.
Este artigo encontra-se em
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