As duas Bolívias em confrontação
por Miguel Urbano Rodrigues
"Os manifestantes indígenas podem ser pobres e falar mal e com
sotaque o espanhol, mas eles têm uma mensagem poderosa. É esta:
não à exportação do gás e outros recursos
naturais; não ao livre comércio com os Estados Unidos, não
à globalização de nenhuma forma, que não seja a
solidariedade entre os povos oprimidos do mundo em desenvolvimento".
(New York Times, 17/Out/03).
Uma grande e inesperada derrota foi infligida na Bolívia ao sistema de
poder imperial dos EUA. O sujeito dessa vitória, festejada pela
América Latina e pela humanidade progressista, é o povo boliviano.
De longe acompanhei com emoção o subir da maré do
levantamento popular cujo desfecho foi a fuga do procônsul de Washington
que ocupava o Palácio Quemado.
A pergunta «que irá ocorrer agora?», omnipresente no
dilúvio de comentários e análises dedicadas ao
acontecimento, fez-me recordar a primeira visita a La Paz.
Foi há 33 anos, quando Juan José Torres, apoiado pelo povo,
assumiu a Presidência, derrotando uma intentona de generais
reaccionários. Mais tarde, tornei-me quase seu amigo. Mas não
foi logo.
Ao cruzar os píncaros nevados dos Andes e avistar La Paz tive a
sensação de que iria descer noutro planeta.
A paisagem tinha algo de lunar. A mancha azul do Titicaca, um lago do tamanho
do Distrito de Évora, rompia a uniformidade de uma planura que corria
para um horizonte sem fim. Minúsculos
pueblos
semeavam uma terra entre o amarelo e o cinza. O grande lago, apertado entre os
gigantes da Cordilheira Real, reflectia para um céu límpido a luz
intensa daquele tecto do mundo.
No centro de uma taça, La Paz. A cidade, fundada num buraco, ali
ficou. Foi um acampamento mineiro do qual a história fez a capital do
país.
El Alto, cenário das confrontações das últimas
semanas, era então um conjunto misérrimo de favelas a 4000 metros
de altitude, na borda da concha onde nasceu La Paz. Desenvolveu-se como um
cogumelo; revia-a depois, em épocas diferentes. Hoje é uma
cidade satélite com 750 mil habitantes, metade da
população da capital. Paupérrima como antes.
ENTRE A TRAGÉDIA, A EPOPEIA E A FARSA
Vivi na Bolívia acontecimentos importantes, que me marcaram para sempre.
Impossível esquecer os debates na Asamblea del Pueblo, em Junho de 71,
pouco antes do sangrento golpe de Banzer. Da descida à mina Siglo XX e
da confraternização com os mineiros guardo também
lembrança inapagável, como de intermináveis conversas com
alguns dos revolucionários mais autênticos que encontrei no
caminhar pela vida, como Marcelo Quiroga Santa Cruz e René Zabaleta,
mortos, e Simon Reyes, René Rocabado e Marcos Domich, vivos.
Tentando compreender, descobri com o rodar dos anos, duas Bolívias
antagónicas, irreconciliáveis. Coexistem em choque permanente,
desde os tempos da colónia e da revolução libertadora ate
à actualidade.
Uma é a Bolívia da rebelião indígena de Tupaj
Katari, em 1780, a da Universidade de Charcas, como grande centro cultural do
século XVIII, a de Pedro Murillo, prócer e mártir da
independência, a dos guerrilheiros alto-peruanos, a da
Revolução de 1952, quando os mineiros e camponeses se levantaram
em armas e, em combates de ruas, destruíram o Exército, levando
à vitoria a primeira revolução progressista da
América do Sul.
Essa Bolívia, revolucionária e humanista, é mal conhecida.
Incomoda o imperialismo. De Washington a Londres, os governos do primeiro
mundo e os meio de comunicação por eles controlados fazem o
possível para lhe apagar a história e a imagem, como se ela fosse
ficcional.
É o retracto da outra Bolívia, também real, que o mundo
conhece. A Bolívia que expulsou Sucre, seu primeiro presidente e o mais
puro dos heróis bolivarianos, a Bolívia de Melgarejo e
Barrientos, dos barões do estanho, a Bolívia que perdeu grande
parte do território em guerras alucinatórias contra o Chile, o
Brasil e o Paraguai, o país dos
cuartelazos,
dos assassinos do Che, dos narcotraficantes , dos presidentes lacaios da Casa
Branca.
Amo a primeira, abomino a segunda, consciente de que fronteira entre a
Bolívia da epopeia e a da opereta nem sempre aparece com nitidez.
GONI, O CHICAGO BOY
Nestas semanas mais uma vez a tragédia e a farsa apareceram
entrelaçadas.
Os acontecimentos são inseparáveis de uma exacerbada luta de
classes. Sanchez de Losada, para responder, neste segundo mandato, à
resistência crescente que a sua estratégia de submissão
enfrentava, resistência expressa no fortalecimento da combatividade das
massas, optou por uma política de terrorismo de Estado. As
matanças do Chapare, em Janeiro pp, e de La Paz em 12 e13 de Fevereiro
pp (o
pacenazo),
assinalaram essa escalada de violência que contou com a
cumplicidade da OEA e o apoio ostensivo dos EUA.
Goni
gabava-se, com arrogância, de ser o empresário mais rico do
país e proclamava que somente pela força o poderiam tirar do
Palácio Quemado.
O povo assim fez.
O Presidente que fugiu para os EUA, carregando a responsabilidade das
matanças dos últimos dias 74 cidadãos viveu
ali grande parte da vida, estudou na Universidade de Chicago, fala um
castelhano deficiente com sotaque norte-americano e define-se a si
próprio, orgulhosamente, como um
chicago boy
para dissipar dúvidas sobre a sua fidelidade à matriz imperial.
Isso apesar de ser licenciado em filosofia e não em economia. No seu
primeiro mandato, entre 93 e 97, privatizou quase tudo o que faltava
privatizar, desde as telecomunicações aos hidrocarbonetos, e
acumulou uma fortuna colossal ao assumir o controlo de minas estatais
mediante contratos fraudulentos.
El
gringo Goni,
como é conhecido, foi o mais zeloso executor da política da
destruição das plantações de coca, sem a
contrapartida de culturas alternativas, o que lançou na miséria
centenas de milhares de camponeses. Clinton elogiou-o por ter implantado uma
caricatura de capitalismo popular que, através da entrega
simbólica de acções aos trabalhadores, teria por objectivo
redistribuir a riqueza. Na prática a concentração do
capital acentuou-se e o abismo entre os ricos e os pobres aprofundou-se.
Tendo recebido apenas 22% dos votos na ultima eleição, em 2002, o
Congresso designou-o Presidente por força de uma dessas alianças
espúrias, tradicionais na Bolívia da farsa. O seu corrompido
Movimento Nacional Revolucionário, herança da força
política que traiu a Revolução de 52, formou para o efeito
uma coligação que incluía a direita reaccionária,
a Nueva Fuerza Republicana (NFR), e o Movimiento de Izquierda
Revolucionário (MIR), cujos dirigentes em dias distantes afirmavam ser
marxistas...
Para atender uma exigência do FMI, Sanches Lozada, que se havia
comprometido a lutar contra a exclusão social, não hesitou em
criar um imposto de 12% sobre os salários dos trabalhadores para
«reduzir o défice do orçamento». A medida,
provocatória, desencadeou uma primeira explosão social. Mas o
homem não parou.
Ao decidir exportar o gás, a preço vil, via Chile, para os EUA,
este presidente títere fez transbordar a taça das
humilhações acumuladas.
Esgotada a prata, esgotado o estanho, o gás, cujas reservas ascendem a
55 milhões de milhões de pés cúbicos, aparece hoje
como o futuro salário da Bolívia, para usar a expressão
celebrizada por Salvador Allende para definir a importância do cobre no
Chile.
O gás natural é olhado como o motor da
industrialização de um pais cujo PIB per capita não
ultrapassa 950 dólares. Somente o Haiti, no continente, figura hoje
abaixo na Bolívia na escala da pobreza.
O Exercito sustentou o Presidente até ao momento em que o viu só,
abandonado pelos seus aliados da Nueva Fuerza e do MIR. O embaixador dos EUA,
David Greenlee, que falava e agia como um vice-rei, teria visto com agrado o
prosseguimento da repressão. Washington manifestava apreensão
com o futuro do gás. Mas o alto comando, perante as
proporções do levantamento popular, optou por uma atitude de
expectativa. Apoiar um presidente totalmente isolado colocaria as
Forças Armadas numa posição insustentável, muito
perigosa. A memória dos confrontos do ano 52 também terá
pesado. E o Exército quase emudeceu nas horas que antecederam a
capitulação de Sanchez Losada.
O NOVO PRESIDENTE
O político que chegou ao Palácio Queimado, substituindo Sanchez
Losada, apresentou-se a si mesmo como um Presidente de transição.
Foi muito aplaudido.
O seu discurso de posse foi prudente e na aparência desambicioso.
Pretende convocar uma Constituinte e eleições presidenciais.
Ambas as posições são positivas.
Mas quem o ovacionou? Um Congresso no qual a maioria apoiou até
há poucos dias a política criminosa de Goni.
É útil não esquecer que Carlos Mesa, como vice-presidente,
se comportou até há poucos dias como aliado de Sanchez Losada.
Nunca escondeu a sua adesão às políticas neoliberais do
consenso de Washington.
A CNN já principiou a traçar-lhe um perfil adequado à
circunstancia e aos interesses da Administração Bush.
Apresenta-o como um historiador de prestigio, respeitado. O perfil é
fantasista. Mesa publicou uma biografia dos Presidentes da Bolívia.
Não conheço a obra, mas afigura-se-me improvável que
retracte com perspectiva de cientista uma galeria de figuras onde predominam
tiranos, aventureiros e inimigos do povo. O livro mais vendido do actual
presidente tem por tema ´«a epopeia do futebol boliviano», o que
também suscita duvidas quanto ao seu talento como escritor.
Cabe perguntar como chegou à vice-presidência um historiador que,
afinal, não parece sê-lo?
A sua popularidade resultou da actividade desenvolvida como jornalista,
primeiro na radio, e depois como entrevistador de um programa de
televisão intitulado «De cerca».
Ao ser investido na Presidência pediu uma trégua e
lançou um apelo à unidade.
Sobram perguntas sem resposta. Que tipo de unidade tem na mente ?
INCÓGNITAS
Num primeiro comunicado emitido em La Paz , a Comissão Política
do Partido Comunista da Bolívia sublinha que as vitoriosas
mobilizações dos últimos dias demonstram um grande
aprofundamento da consciência política das massas populares. Mas
numa advertência contra o triunfalismo lembra que a investidura na
Presidência de Carlos Mesa não traz a solução para
os graves problemas do país.
O derrubamento de Sanchez Lozada resultou de um poderoso movimento de
protesto nacional que durante a luta assumiu características quase
espontâneas. O povo levantou-se para derrubar um presidente genocida e
traidor, não para tomar o Poder.
Poderia talvez ter ocupado o Palácio, mas o movimento de massas,
desprovido de organicidade, não teria condições
mínimas para controlar o Pais.
No momento em que escrevo, é minha convicção que a
evolução da situação na Bolívia é
imprevisível. A unidade nacional reclamada por Marcos Domich,
primeiro-secretário do PC da Bolívia não é a
unidade de que falam os deputados e senadores nem a pedida pelo Presidente
Carlos. A primeira contempla a diversidade étnica e cultural do povo
boliviano. Não é possível sem a
participação dos mineiros, dos camponeses, dos fabris, dos
intelectuais progressistas, da juventude, dos indígenas. A outra
unidade, falsa, é, afinal, a da burguesia.
O panorama da crise que persiste vai permanecer confuso. O
exército e a polícia regressaram aos quartéis, os
estabelecimentos reabriram as portas, a greve geral indefinida de El Alto
terminou.
Mas o movimento não tinha, nem podia ter, um Programa. Falta um Plano
de Emergência.
As reivindicações do deputado indígena Filipe Quispe
são, por maximalistas, pouco realistas. Evo Morales, lider do
MAS
,
também não expôs até agora, com um mínimo de
clareza, a sua atitude perante a fase de «transição»
que se inicia. O seu movimento cumpriu um importante papel nas lutas que
levaram à queda de Goni. Mas, o que é, afinal, o MAS? Ouvi Evo
no México e em Havana varias vezes. E o seu discurso, tal como a sua
visão da historia, reflectem a ausência de uma opção
ideológica definida.
A Central Obrera Boliviana, a mais influente organização de
massas, dialoga no momento com o novo Presidente, cujo governo não
incluirá representantes de qualquer partido.
Seria desejável que um eventual acordo incidisse sobre as grandes
reivindicações do povo, secundarizando as que podem acabar
por romper a unidade das massas que tende, agora, a fragilizar-se. Cabe
recordar que as grandes mobilizações de Setembro principiaram e
cresceram com quatro bandeiras de luta: «Não à venda do
gás», «recusa do novo código tributário»,
« revogação da lei da segurança dos
cidadãos» e «rejeição da Alca». A sua
defesa intransigente é absolutamente indispensável, tal como a
convocação da Constituinte. Ampliar muito o leque pode oferecer
ao imperialismo os pretextos que ele procura para privar o povo boliviano
dos benefícios da sua grande vitória. Washington, que sustentou
o seu
chicago boy
até ao último quarto de hora, tentará intervir de
múltiplas formas no processo em curso, para o sabotar. As
provocações já estão nas ruas. O fascismo, a ultra
esquerda e o regionalismo exacerbado mais uma vez, aparecem juntos.
A extrema heterogeneidade das forças que derrubaram Sanchez de Losada
não facilita a elaboração de um Programa de governo
consensual a ser apresentado ao presidente da transição.
Exigir o impossível nestas horas é prestar um serviço
aos inimigos da Bolívia.
O levantamento popular não abriu a porta a uma mudança
revolucionária. A relação de forças existente
não a viabilizaria. Não estavam reunidas as
condições mínimas. As Forças Armadas voltaram aos
quartéis, mas o corpo de oficiais é no fundamental
constituído por militares modelados pela mentalidade profundamente
anticomunista dos ideólogos do Comando Sul dos EUA. É
significativo que um grupo de oficiais desse Comando tenha viajado
imediatamente para La Paz. Não se deve também esquecer que
não há revolução possível sem uma
organização de vanguarda poderosa, ,fortemente implantada entre
as massas. E essa organização não existe na
Bolívia.
A vida proporcionou-me a oportunidade de ser testemunha de alguns
acontecimentos que deixaram marcas na historia contemporânea.
A Bolívia foi um dos países onde isso ocorreu. Teria sido para
mim gratificante estar presente ali, na semana passada, marchar ombro a ombro
com amigos e camaradas de muitas batalhas, serenos, inquebrantáveis na
fidelidade ao compromisso revolucionário.
Isso não foi possível, mas senti que a actual luta do povo
boliviano é também minha. Acompanhei, hora a hora, pela
Internet, o desenvolvimento da crise. A familiaridade com o cenário
permitia-me imaginar a repressão em El Alto, rever as minas,
acompanhar o avanço dos destacamentos de camponeses pelos vales e
páramos da Cordilheira Real, as grandes manifestações em
La Paz.
Quase via como pano de fundo das multidões as neves eternas do
Illimani, a mais bela montanha dos Andes, o cerro mágico que para os
aymarás fala, sente e ama como se humano fora.
Festejei como se ali estivera a derrota de Sanchez Losada e do imperialismo.
Até porque as lutas do povo boliviano se inserem no combate da
humanidade progressista contra o monstruoso projecto de sociedade imposto por
um sistema de poder imperial que ameaça a própria continuidade da
vida na Terra.
Havana, 19 de Outubro de 2003
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