por Miguel Urbano Rodrigues
Ao ler ontem uma crónica de Robert Fisk, enviada de Bagdad, senti uma
grande emoção. O heroísmo dos povos desencadeia em mim
desde a juventude a solidariedade .
Subiu-me na memória a recordação de Kabul bombardeada nos
anos 80 pelos fundamentalistas da Hesbe-i-Islami e da Jamiat-i-Islami,
então armados pelos EUA. Encontrava-me naquela cidade e sentia que a
luta dos revolucionários afegãos era também minha.
O quadro da Bagdad atingida pela metralha norte-americana vinda dos
céus fez-me imaginar o cenário medonho da grande cidade em
chamas.
Senti inveja de Fisk e de outros intelectuais progressistas. Desejaria muito
estar ali, ombro a ombro com os iraquianos que defendem a sua terra da
barbárie neonazi.
Bagdad, como símbolo da resistência de um povo, é hoje a
Madrid do ano 36, a Leninegrado do ano 41, a Hanói dos anos 70.
Não sendo possível lutar pelo povo de Iraque em Kirkut, em Um
Qsar, Bassorá, ou algures na Mesopotamia, contemplando as ruínas
milenárias de Nínive, Babilónia ou Ctesifon
integro-me no grande exército civil que pelo mundo afora, em defesa da
humanidade, faz seu o combate dos que resistem nas trincheiras do Eufrates e do
Tigre.
A PERVERSIDADE DESINFORMATIVA
A primeira tarefa dos escritores e jornalistas que mantêm a lucidez
é o desmascaramento da campanha desinformativa desenvolvida pelos
responsáveis do genocídio iraquiano.
É uma luta desigual. Eles têm tudo, nós quase nada.
Os agressores apresentam-se mascarados de libertadores e controlam uma
gigantesca maquina mediática, através da qual tentam impor a
mentira como verdade, apresentando a sua guerra como serviço
prestado à humanidade, calando a voz dos adversários e
omitindo tudo o que os incomoda.
Romper a muralha da inverdade e do silencio torna-se, neste contexto, uma
necessidade básica e urgente. É preciso arrancar-lhes a
máscara.
O escritor cubano Lisandro Otero [1], num artigo em que analisa a cumplicidade
da
chamada "imprensa livre" com as forças políticas e
económicas responsáveis pela guerra, alerta para o facto de a
quase totalidade dos mass media estadunidenses repetirem monotonamente que as
forças armadas norte-americanas se encontram no Iraque para
"restabelecer a democracia e a liberdade do povo iraquiano e esmagar para
sempre o terrorismo". Entretanto, as emissoras de televisão e radio
sublinha não fazem a mais leve referência ao papel
dos grandes consórcios petrolíferos na montagem da guerra e
às ligações financeiras de Bush, Cheney e Condoleeza com
a Chevron, a Texaco, a Mobil Oil e a Shell.
Mentir passou a ser uma rotina para os homens da Casa Branca e do
Pentágono. Há dias um alto funcionário do Departamento de
Estado teve o descaramento de afirmar num programa de televisão que, de
hora para hora, cresce no mundo o apoio à cruzada libertadora do Iraque.
No mesmo dia milhões de pessoas protestavam nas ruas de centenas de
cidades contra a agressão àquele país.
O funcionário do State Department estava consciente de que a sua
mentira chegaria a muitíssimo mais gente nos EUA do que as imagens dos
protestos, não difundidas no país pela grande maioria das cadeias
de televisão.
A guerra psicológica atinge um refinamento sem precedentes. Na Casa
Branca, no Pentágono, no Departamento de Estado, equipas de
especialistas em contra-informação fabricam "noticias"
falsas que têm por objectivo promover o apoio à política de
guerra e estabelecer a confusão no campo dos defensores da paz. As
artimanhas da propaganda de Goebbels parecem jogos infantis comparadas com as
imaginadas por esses técnicos da manipulação
desinformativa. Foram eles os inventores das estorias sobre os sósias
de Sadam, dos boatos sobre a sua morte, das conversações secretas
com os generais iraquianos, da rendição de uma divisão
inteira no Sul, da revolta chiita em Bassorá, do recebimento festivo das
tropas dos EUA em aldeias "libertadas", dos vídeos de
combates imaginários produzidos em estúdios dos EUA.
O mínimo que se poderia exigir a jornais como o
New York Times
e o
Washington Post
e a revistas como a
Time
, a cadeias de televisão como a CNN, a CBS e a ABC seria uma reserva
grande perante tais rumores e "noticias", mas outra foi a sua
atitude. Apressaram-se a difundi-los, por vezes com honras de manchete.
Simultaneamente esses influentes órgãos de
comunicação, símbolos da "imprensa livre",
desvalorizam ou ignoram notícias autenticas que chegam da frente de
batalha. Os revezes das tropas invasoras são minimizados ou ocultados.
Não tenho conhecimento de um só editorial do NYK analisando o
significado de acontecimentos como o bombardeamento de forças
norte-americanas e britânicas por aviões da US Air Force, o
derrube de um caça inglês por míssil estadunidense, e a
troca de tiros entre companhias de marines, por alegada falta de visibilidade,
mas na realidade pelos efeitos do medo e do caos que se instalam no campo dos
invasores.
"Deus está tão descontente com o uso abusivo do seu nome
pelo presidente Bush ouvi em desabafo de uma freira italiana, em Havana
que para o castigar, as tropas dos EUA já não conseguem
distinguir os companheiros dos inimigos. Matam-se uns aos outros,
coitados..."
O DISCURSO DOS GENERAIS
Os gigantes da TV preferem "esterilizar o campo de batalha" a
expressão é de Stephen Hess, do conspícuo Brookings
Institute para não ferir a sensibilidade dos telespectadores. Se
Rumsfeld garante que a guerra moderna mata pouca gente e as armas limpas
estão actuando com precisão cirúrgica, seria grosseira
descortesia exibir no pequeno ecrã montes de ruínas em Bagdad e
Bassorá e sobretudo cadáveres de mulheres e crianças
destroçados pela metralha quando circulavam num mercado da capital...
Mark Tremayne, professor da Universidade do Texas, em Austin, sintetizou bem
esse espírito da velha América puritana, admiradora de Bush.
"As televisões sentenciou não devem mostrar
coisas que desagradem aos telespectadores".
A mentalidade oficial é assumida tão disciplinadamente pelo alto
comando das forças armadas que me traz à memória o
comportamento dos marechais prussianos.
No próprio dia em que das frentes de combate chegava a notícia de
que nem uma só cidade importante do Iraque havia sido ocupada pelas
forças anglo-americanas após a primeira semana de guerra, o
general Colin Powell declarava em Washington, segundo a Agencia France Presse:
"de momento controlamos quase todo o pais, com excepção dos
subúrbios de Bagdad, controlamos o Sul e, pouco a pouco, rodeamos
Bagdad". Mentia conscientemente.
No mesmo dia o general Richard Myers, chefe do Estado Maior Conjunto, comentava
a situação com uma tirada digna de Bush ou do falecido almirante
português Américo Tomás: "pensamos que a batalha
mais difícil está para vir, o que alias sabíamos desde o
principio e estamos preparados para isso".
Não lhe ficou atrás em sagacidade o general Tommy Franks, o
comandante operacional das forças de invasão anglo-americanas.
Garante esse cabo de guerra que "tem tropas situadas em lugares
desconhecidos" e informou em tom de revelação:
"combateremos sob as nossas próprias condições".
Um repórter estadunidense que acompanha uma divisão de
fuzileiros confessou, melancólico, que as populações
iraquianas "não manifestam entusiasmo pela presença das
tropas dos EUA", mas isso resultaria de "estarem aterrorizadas por
Sadam".
Esse é o estilo dos chefes guerreiros da cruzada empreendida pelos EUA e
dos jornalistas que acompanham o exército invasor.
Não é de surpreender que as emissões da Al Jazira, a
cadeia árabe de televisão, do Qatar, tenham sido proibidas nos
EUA. A verdade sobre a guerra genocída tornou-se insuportável
para as forças e grupos que controlam ali o sistema de poder.
Na ofensiva da contra-informação, o ridículo é, por
vezes, o tempero da estupidez e da agressividade. Uma emissora admitiu a
possibilidade do envenenamento do Sena, em Paris, como castigo a ser imposto
à França. Outra manifestação do rancor contra a
pátria de Victor Hugo foi a iniciativa de um grupo de ultras. Redigiram
um abaixo-assinado propondo a devolução à França da
Estátua da Liberdade.
Das gigantescas proporções do movimento mundial de protesto
não se fala nas pequenas cidades do interior dos EUA. É natural,
porque ali mal chegam os ecos e as imagens das manifestações
contra a guerra no seu próprio país.
Essa alienação das maiorias que ainda apoiam a cruzada de Bush
não tem o poder de parar o movimento da história.
A RESISTÊNCIA CRESCE
Pela primeira vez em milénios assistimos a uma luta global pela Paz. A
humanidade toma, finalmente, consciência de que está
colectivamente ameaçada por um projecto assustador, de
dominação planetária de contornos fascistas. A guerra
genocida contra o Iraque é apenas uma etapa, rumo a um objectivo cuja
irracionalidade ameaça não me canso de repetir a
continuidade da vida humana na Terra.
Nestes dias trágicos o povo do Iraque defendendo-se corajosamente
aparece como sujeito histórico na batalha desigual em curso, investido
paradoxalmente, por um acaso, na tarefa de defender valores civilizacionais
que começaram a surgir nas margens dos dois grandes rios do seu
país.
A solidariedade militante com os homens e mulheres que ali resistem e se batem
contra a barbárie neofascista estadunidense é por isso
insisto um dever para os intelectuais que fazem da escrita e da palavra
uma arma na luta pela liberdade.
De longe, podemos afirmar que é também nosso o combate em que a
humanidade tem os olhos postos. Estamos todos, de algum modo, nas trincheiras
do Eufrates e do Tigre.
Havana, 28 de Março de 2003
___________
(1) Lisandro Otero é um dos mais talentosos romancistas cubanos.
Recentemente distinguido, em Havana, com o Prémio Nacional de
Literatura, reside no México onde colabora em alguns dos grandes
diários daquele país
Este artigo encontra-se em
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