O ASSALTO À RAZÃO
NO DESAFIO À HUMANIDADE
por Miguel Urbano Rodrigues
O presidente George Bush informou o mundo no 11 de Setembro de que os EUA em
breve dariam inicio a uma guerra diferente de todas as anteriores.
Por uma vez não mentiu. O genocídio afegão foi o
prólogo de uma tragédia. Os mísseis que explodiram sobre
Bagdad na madrugada de 20 de Março dão-lhe continuidade.
Serão recordados como instrumento de uma estratégia de poder
demencial, sem precedentes pela ambição planetária e
pelo espírito de barbárie a ela subjacente.
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Acabava de regressar do México quando, em Havana, a notícia me
angustiou. Trazia ainda dentro as imagens e as emoções do
combate pela paz do povo mexicano. Participara na maior cidade do mundo das
manifestações contra a guerra do povo de Cuauhtemoc e Cardenas.
Aqui, em Cuba, não me era possível seguir, como ali, o andamento
da crise mundial através de incontáveis canais de
televisão. Passei a noite com o ouvido colado a emissoras de onda
curta. Escutei, enojado, o discurso de George W Bush. O nome da
«operação» genocida Liberdade para o Iraque
tinha um toque de humor negro que me fez lembrar o discurso oficial da
Alemanha nazi no dia 1 de Setembro de 1939, quando as bombas da Luftwaffe
principiaram a explodir em Varsóvia. Também então os
agressores não esqueci tentavam justificar o crime
afirmando actuar em defesa de uma nova ordem civilizatória, prometendo
uma era de felicidade e bem estar para o mundo.
A história nunca se repete da mesma maneira. Mas a ameaça
à humanidade, essa sim, é outra vez global, embora o perigo,
hoje, seja infinitamente maior, porque neste ano 2003 a guerra iraquiana pelos
seus desdobramentos eventuais coloca em causa a própria
sobrevivência do homem no planeta que é a sua pátria.
Transcorridas mais de seis décadas, um sistema de poder enraizado no
irracionalismo opta também pela guerra para impor um projecto monstruoso
de dominação que aspira à perpetuidade.
O porta-voz do desafio à humanidade não é desta vez um
líder messiânico tresloucado. Quem aparece no vértice do
poder do sistema imperial desafiador é um homenzinho agressivo mas
ignorante, quase um analfabeto funcional que afirma contar com o apoio de deus
para a cruzada genocida.
O paralelo não deve ser levado mais longe. No III Reich de Hitler, um
regime ferozmente repressivo erigia o racismo em política de Estado e
proclamava o primado da força sobre os direitos do homem, suprimindo as
liberdades e ridicularizando a democracia.
Nos EUA as instituições são ainda formalmente
democráticas, mas o sistema desenvolve já uma estratégia
planetária de contornos neofascistas, tripudiando sobre o Direito
Internacional e a Organização das Nações Unidas.
Essa contradição dificulta extraordinariamente a
compreensão extensiva do perigo que ameaça o planeta.
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Na Europa avança a consciência, tardia, de que os seus povos ou
criam condições para a formação de um contrapoder
ou o Continente, do Atlântico aos Urales, será transformado num
protectorado. A derrota infligida no Conselho de Segurança a Washington
e ao seu subserviente aliado, o Reino Unido (Aznar é um lacaio de
terceira categoria) alertou centenas de milhões de cidadãos
para uma evidência que não era transparente: o novo imperialismo
não é invulnerável. A opção pela guerra
mais exactamente por uma cadeia ininterrupta de guerras ditas
«preventivas» aparece como consequência de uma crise
estrutural do capitalismo. O sistema como Istvan Meszaros e Samir Amin
demonstram através de discursos diferenciados embora convergentes
não encontra soluções para os problemas que enfrenta;
entrou num processo irreversível de decadência e aproxima-se do
esgotamento no âmbito da sua própria lógica. Para
sobreviver recorre, por isso, à violência como instrumento de
acção permanente e imprescindível; a irracionalidade
assume nele um papel primordial.
Daí que a farsa e a tragédia surjam tão intimamente
ligadas. Goebbels, o ministro da Propaganda do Reich nazi, não foi
tão longe na defesa do absurdo como os epígonos bushianos
das guerras preventivas. Em Washington a apologia da irracionalidade
adquire facetas de uma ópera trágica. A captura ou morte de
dois homens Osama ben Laden e o mullah Muhamad Omar foi
transformada em objectivo prioritário de uma guerra repugnante que
devastou e recolonizou o Afeganistão. A meta, aliás, não
foi atingida e ambos se encontram em paradeiro desconhecido. No caso do
Iraque, o presidente Bush não somente fez de Sadam Hussein e dos seus
filhos o alvo do seu ultimato como o fim confessado do primeiro
bombardeamento de Bagdad era matar os três. A operação,
concebida pela CIA, também fracassou.
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Nestes dias de angustia a resistência dos povos, como sujeito da
historia, fortalece a esperança. O exemplo da França aponta o
caminho a seguir. Parecia impossível o que aconteceu. A pressão
firme do povo francês, na linha da sua grande tradição
humanista, foi decisiva para que um governo conservador, alinhado com o
neoliberalismo, membro do Clube dos 7, superasse a barreira do grande medo
universal. As contradições de interesses económicos
contribuíram para a oposição frontal de Paris à
capitulação que Washington exigia do Conselho de
Segurança. O apoio à atitude francesa de aliados de
ocasião tão diferentes como a Alemanha, a Rússia e a
China gerou uma situação inédita que mudou a
correlação de forças, isolando os EUA, primeiro, para,
numa segunda fase, obrigar Bush à montagem da grande farsa dos
Açores, quando o lobo tirou a máscara. O ultimato destapou o
rosto neofascista do sistema de poder planetário.
Agora, quando para «desarmar» um Estado que se tinha submetido a
todas as exigências das Nações Unidas, uma tempestade de
metralha devasta o Iraque, as Forças Armadas dos EUA, emergem
perante o mundo como cúmplices directas de uma estratégia
monstruosa. Por actos comparáveis, os feld marechais de Hitler
responderam em Nuremberg como co-responsáveis pela prática de
crimes contra a humanidade.
Bush é apenas uma peça na engrenagem. Mas apressa-se a
identificar nas tropas incumbidas de consumar o genocídio iraquiano uma
vanguarda da civilização, que cumpre disciplinadamente uma tarefa
heróica. E, contudo, uma mentalidade neofascista, pela própria
natureza do crime, contamina mais e mais, a cada dia, o corpo de oficiais do
Exército, da Força Aérea e da Marinha dos EUA.
Neste contexto, a luta contra a barbárie torna-se dever colectivo das
gerações do início do século, protagonistas e
não apenas espectadoras, de uma época simultaneamente
trágica e maravilhosa.
Parece improvável que um homem primário como o presidente Bush
tenha da história uma noção mesmo brumosa de que a cidade
ora esventrada pelos mísseis estadunidenses foi por muito tempo o
pólo mais brilhante da cultura islâmica durante o Califado
Abássida. E certamente ignora que as ruínas de Ctesifon,
vizinhas de Bagdad, transmitem a memória eterna dos esplendores da
Pérsia Sassânida que pôs fim à expansão do
Império Romano para Oriente e sintetizou o melhor da herança
civilizacional da Babilónia de Nabucodonosor e do helenismo, oferecendo
uma contribuição fabulosa ao progresso da humanidade
[1]
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O esmagador poder desinformativo de um sistema mediático controlado
hegemonicamente por transnacionais ao serviço do sistema de poder
responsável pelo crime de lesa humanidade em curso atrasa, e em muitos
países impede, a mobilização dos povos contra esta guerra
abjecta.
O simples facto de um punhado de governos, tanto na Europa como na
América Latina e na Ásia, se dobrarem á exigência
de Washington e apoiarem a sua guerra com cheiro de petróleo,
desconhecendo o repúdio dos respectivos povos à escalada
bélica é esclarecedor da extrema complexidade da
situação criada.
Talvez nunca o discurso sobre a liberdade e a democracia tenha sido tão
perverso e farisaico como o debitado hoje por dirigentes como Bush, Blair e
Aznar quando espezinham a democracia e a Carta das Nações
Unidas. Não são os povos estadunidense, britânico e
espanhol que estão em causa como ficou evidente nas
manifestações do 15 de Fevereiro e nas que se lhes seguiram.
Eles situam-se na primeira linha do combate à engrenagem de terror que
ameaça a humanidade.
A maré da resistência sobe em todo o mundo. Os exemplos
belíssimos do povo da França, do povo da Alemanha, do povo da
Turquia, entre outros, valem por uma exortação à luta.
Com a sua firmeza confirmam que é possível assumir a defesa da
humanidade neste momento decisivo da história, que é
possível e necessário resistir, mesmo sem armas, que, afinal,
está ao nosso alcance iniciar uma grande viragem.
É possível e necessário derrotar o assalto à
razão que caracteriza a irracionalidade do projecto imperial
planetário.
Uma palavra de ordem que incita ao combate adquire actualidade.
A guerra de genocídio contra o Iraque justifica um pungente apelo
humanista e solidário:
Povos de todo o mundo uni-vos contra a barbárie neofascista!
20 de Março de 2003
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[1]
Um dos maiores exércitos romanos de sempre, comandado pelo imperador
Valeriano, foi esmagado no ano 260 da Nossa Era, em Edessa, pelo
exército persa, dirigido pelo imperador Chapur. Sessenta mil
legionários renderam-se e Valeriano morreu, como prisioneiro, em 260.
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