O HOMEM CONTRA A MÁQUINA
NA MESOPOTAMIA MILENÁRIA
por Miguel Urbano Rodrigues
[*]
A guerra que tem por cenário o Iraque assume, contemplada de longe,
aspectos de ficção cientifica. Empurra a memória visual
para filmes que vimos no cinema. Com a diferença de ser bem real.
É muito possível que nestes dias, em Hollywood, equipas bem
pagas, estimuladas pelo Pentágono, trabalhem já na
preparação de fitas que em breve aparecerão nos cartazes.
A tarefa de redigir os roteiros será confiada a escritores
especializados, gente do sistema.
O objectivo será produzir obras que sejam uma apologia da bravura e da
grandeza humana do soldado estadunidense na guerra de
«libertação do Iraque». Urge transformar a verdade
oficial da Casa Branca em verdade universal.
O tenente X, ou o sargento Y serão os heróis míticos de
uma epopeia que levará os espectadores a recordar nomes de cidades como
Nazirya ou Najaf, rebarbativos para o ouvido do norte-americano comum.
A mentira, estudada, será o denominador comum desses filmes, que
darão continuidade a outros, de inspiração e estrutura
similares, produzidos durante a agressão ao Vietname. Que se pretende?
Persuadir o público, nos EUA e no vasto mundo, de que a causa pela qual
os marines e os rapazes da US Air force foram lutar e alguns morrer
nas areias escaldantes e nos céus azuis de um país
remoto era uma causa justa e nobre ao serviço da qual, como vanguarda e
símbolos de uma nação, souberam confirmar a tese do
destino manifesto do povo dos EUA, o único vocacionado para defender e
salvar a humanidade.
DESCODIFICAR A MENTIRA
ILUMINAR O CRIME
Descodificar esta guerra de genocídio, que excede em monstruosidade,
não pela quantidade de mortos mas pelos fins e pela
premeditação e execução, qualquer guerra do
passado é já o escrevi uma tarefa
prioritária para os escritores e jornalistas que amam a liberdade e
identificam a defesa de valores eternos na luta do povo agredido.
É uma tarefa a sua que se insere num combate mais amplo, porque no
espaço e no tempo, a sede de petróleo e poder que encontramos na
origem desta guerra, põe em causa o destino da humanidade.
Ignacio Ramonet, numa entrevista à Radio Nederland chamou há dias
a atenção para a enorme importância da guerra
psicológica como arma usada pelo sistema de poder imperial dos EUA e
seu aliado subalterno.
Por aí talvez se deva começar na luta pelo desmascaramento de um
inimigo é a palavra adequada cujo projecto de ditadura
militar planetária repito mais uma vez configura
ameaça à própria sobrevivência da humanidade.
Lemos com frequência crónicas satíricas que incidem sobre a
incultura de Bush, a truculência pouco inteligente de Rumsfeld, o
reaccionarismo quimicamente puro da senhorita Condolleeza, os disparates do
embaixador Negroponte, e a ignorância dos generais da US Army.
Despertam o riso, geram confiança, mas ao confundirem com a engrenagem
da guerra personagens que são simples instrumentos e porta vozes do
sistema de poder por ela responsável contribuem também muitas
vezes para a subestimação do inimigo.
A guerra psicológica é uma arma terrível. Funciona.
Mesmo as campanhas mais perversas, conduzidas com pouca inteligência,
atingem parcialmente os seus objectivos porque o sistema exerce um controlo
praticamente hegemónico sobre os meios de comunicação
social. Dezenas de milhões de pessoas absorvem diariamente mentiras
grosseiras sobre a guerra, por falta de acesso a uma informação
credível, alternativa.
À força de repetida uma mentira aparece como verdade, dizia
Goebbels.
Nos primeiros dias da guerra não foi por ingenuidade que os gigantes da
televisão e os grandes diários dos EUA e da Grã Bretanha
difundiram notícias sobre vitórias imediatas das forças
invasoras. Sabiam que eram falsas, mas enquanto os desmentidos, não
chegavam lentamente e a um publico mais reduzido, a mentira produzia efeitos.
Perturbava, contribuía para reforçar o mito da invencibilidade
dos EUA, gerava desalento.
A queda de Bassorá foi anunciada repetidas vezes. Idem no tocante as
cidades do Vale do Eufrates. O «assalto final» a Bagdad foi tema de
manchetes quando as forças avançadas dos EUA se encontravam
ainda a mais de 100 km da cidade. Notícias de última hora sobre
rendições maciças de tropas iraquianas de elite
tornaram-se rotineiras, bem como as relativas a
«insurreições xiitas» imaginadas nos
laboratórios da contra-informação. Para rodear de
certezas as vitorias alcançadas, o nome das divisões que tomavam
cidades e pontes e aniquilavam o inimigo pelo caminho acompanhava o relato
dos combates.
O número de prisioneiros é sempre inflacionado; o das perdas
das forças invasoras minimizado.
Os aviões e helicópteros da US Air Force e da Royal Air Force
nunca são abatidos pelos iraquianos. Os caem por acidentes
mecânicos ou vitimas do chamado «fogo amigo».
A satanização de Sadam Hussein assume aspectos
patológicos. Mas como se não bastasse transforma-lo numa
ameaça mortal para a sobrevivência dos EUA, continuam a anunciar
a sua morte quase diariamente. O reverso da medalha, isto é, tudo o que
ilumina o mundo real e suja a imagem da gloriosa «guerra de
libertação» é, conforme os casos, negado,
desvalorizado ou escondido do publico.
Das Nações Unidas fala-se o menos possível. O suficiente
para deixar claro que o Iraque será governado, após a guerra,
pelos EUA. Um general já foi designado como futuro procônsul,
directamente dependente do Pentágono.
A condenação universal da guerra pelos povos recebe da CNN e das
suas três grandes irmãs o tratamento adequado aos interesses
vitais dos EUA. O protesto dos povos, mundo agora, conta muito menos para a TV
do que um discurso de Bush perante uma associação pro-Israel ou
uma assembleia de agricultores no Texas. As dificuldades no relacionamento com
a Grã-Bretanha o grande aliado são escamoteadas.
Na hierarquia dos crimes cometidos, os que atingem a população
civil são apresentados como episódios menores, resultado de
erros, assuntos a investigar, ou simplesmente negados.
Quando uma chacina não pode ser desmentida, como é o caso da
mortandade provocada em mercados atingidos em pleno dia por mísseis ou
bombas os porta-vozes do alto comando invocam o custo inevitável das
guerras em vidas humanas. Quando um hospital ou uma maternidade são
destruídos, esclarecem que será iniciada uma
investigação, mas que no momento não há
informações sobre o caso. O assassínio de prisioneiros
por soldados estadunidenses não costuma ser tema de quaisquer
comentários.
A moral, a ética, os grandes princípios, supostas leis e
convenções sobre a guerra são porem trazidos ao debate
quando um patriota iraquiano, sacrifica a vida, bem supremo, numa
acção de combate, conduzindo um carro bomba ao encontro de
militares dos EUA que morrem com ele. Então sim, elevam-se clamores
contra a barbárie iraquiana...
Os crimes culturais não têm merecido a atenção dos
mass media. Não os desconhecem porque a UNESCO já lançou
um alerta sobre danos causados em monumentos milenares que integram o
património da Humanidade. Mas o assunto tem sido tratado pelos grandes
jornais em poucas linhas; é considerado irrelevante, não
interessa ao publico...
Os crimes indirectos motivam atitudes muito diferentes.
O destino das colheitas, por exemplo, é um tema esquecido. A
produção de cereais este ano deveria, em condições
normais atingir dois milhões e toneladas. A safra prevista é uma
das melhores dos últimos anos. Em Maio costuma ceifar-se. Mas
pergunta-se quem vai realizar as ceifas num país em guerra,
sob bombardeamentos diários, com os campos assolados por colunas de
blindados? A perda de grande parte das colheitas apresenta-se como
possibilidade alarmante.
A «reconstrução», filha do crime da
destruição promovida pelos agressores, essa suscita apaixonado
debate nos meios políticos e financeiros. Poderosas transnacionais,
farejando negócios de milhares de milhões de dólares,
disputam já futuros contratos. Os argumentos das comadres do
deus-dinheiro, na disputa de peças do botim, são exclusivamente
económicos, o que confere à polemica (os ingleses não
escondem o seu descontentamento) uma sordidez inocultável. Até
Rumsfeld já interveio na discussão, não obstante ser
incapaz de perceber que o aniquilamento de muitas das infra-estruturas
não é quantificável em valores materiais.
AS NOVAS ARMAS
Num oportuno e bem documentado artigo, publicado em
resistir.info
, Rui Namorado Rosa traz uma contribuição útil ao debate
travado em torno do emprego de novas armas na agressão ao povo
iraquiano.
Os historiadores da próxima geração talvez identifiquem
esta guerra como a primeira em que as máquinas desempenharam, como
instrumentos de destruição um papel inovador, na medida em que
passaram a cumprir funções que antes eram exclusivamente
executadas pelo homem. A relação milenar de dependência
existente entre ele e as armas que produz para matar o seu semelhante
alterou-se mais acentuadamente nas últimas semanas.
O prodígio selvagem dos mísseis disparados do Mar Vermelho, ou
do Mediterrâneo contra Bagdad ou Bassorá foi ultrapassado pelos
aviões não tripulados que, obedecendo a instruções
transmitidas, bombardeiam com relativa precisão, alvos que lhes
são indicados pelo comando operacional da área que sobrevoam.
Os gigantes do complexo industrial-militar estão felizes. E no seu
quartel general do Qatar, o general Tommy Franks e o seu estado maior
não escondem a sua satisfação. Concluem que a cruzada
de «libertação», graças a armas mais
inteligentes, mais limpas, mais eficazes está a revolucionar a arte da
guerra, sua paixão. Alguns estrategos do Pentágono admitem para
breve os batalhões de robots inteligentes que substituiriam os
soldados. Como nos filmes. Apenas subsistiria a cadeia do comando.
O entusiasmo guerreiro desencadeado pelas novas armas faz-me recordar o
entusiasmo dos médicos que defendem a clonagem humana. Sonham com o
hominídeo laboratorial, perfeito, saudável, uniforme, guarda
avançada de uma raça de superprimatas. Assexuado, adaptado a uma
alimentação de produtos sintéticos, protegido contra
reacções emocionais.
O general Tommy Franks e seus pares não são, entretanto,
luminares. Não somente têm um conceito peculiar do que seja a
inteligência de um míssil, como sentem grande dificuldade (e
desinteresse) em se situarem noutra perspectiva que não a deles.
Especificamente na dos iraquianos que defendem o seu país.
As armas que o deslumbram não fizeram esquecer as clássicas.
Estas também são abundantemente utilizadas no Iraque. As
bombas-gigantes, por exemplo, que destruem tudo numa área com 180 metros
de diâmetro.
O seu efeito destruidor é comparável ao de pequenos artefactos
nucleares tácticos sem os inconvenientes que aqueles apresentam.
Mais polemicas são as bombas de fragmentação, proibidas
por acordos internacionais. Os seus estilhaços provocam feridas
horríveis. Mas oficiais estadunidenses e britânicos
reconheceram que essas bombas criminosas têm sido utilizadas pelas suas
tropas.
As novas armas, alias, também matam. Por vezes produzem hecatombes.
Erram o alvo com frequência arreliadora, criando problemas e protestos
em múltiplos países, inclusive nos EUA, nomeadamente no
Congresso.
Quando isso acontece, o Presidente, o secretário da Defesa, o porta voz
Ary Fleischer são forçados a encontrar explicações
tontas para o que se passa na frente de batalha.
Para os generais incumbidos de «libertar o Iraque», a certeza de
que se morre nas guerras é um axioma. A sua missão é
transferir as mortes para o campo do inimigo, reduzindo ao mínimo as da
sua gente. Nesse aspecto não se pode negar que o objectivo tem
sido atingido plenamente.
Mas não conseguem persuadir o mundo de que a vida de um norte-americano
ou de um britânico vale mais do que a de um iraquiano.
IRAQUE ÉPICO
Na luta das máquinas contra um povo que se bate pela sua
independência, estou, obviamente com os homens contra os robots, dos
iraquianos contra os invasores.
Não é sem emoção que tenho lido as crónicas
enviadas de Bagdad pelos brigadistas idos de Espanha que ali se encontram,
solidários com a luta do povo agredido. Algumas são documentos
belíssimos.
O povo do Iraque, nesta hora decisiva para a sua sobrevivência,
comporta-se insisto como um herói colectivo. O seu
combate reactualiza as façanhas dos heróis míticos das
epopeias asiáticas, eternizadas no Gilgamesh da Babilónia e no
Shanaama, de Firdusi. Em Bagdad e Bassorá, o povo armado, com fuzis e
metralhadoras quase obsoletas, resiste, ombro a ombro com o seu
exército, às armas de extermínio dos
«libertadores» assassinos, máquinas humanas treinadas para
destruir e matar.
E quando um povo em armas luta para não ser subjugado por outro,
conquista o respeito e a admiração de quantos povos amam a
liberdade.
Pelo que essa gente da Mesopotamia fez nestes 17 dias de resistência
à invasão dos modernos bárbaros elevou-se já ao
nível dos combatentes que fizeram historia nas Termópilas, em
Valmy, em Estalinegrado.
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