Girardi, um teólogo italiano
reflecte sobre a Revolução Cubana
por Miguel Urbano Rodrigues
Não recordo quando o vi pela primeira vez. Sei que durante anos me
cruzei muitas vezes com aquele italiano de cabeleira branca e boné de
revolucionário russo do começo do seculo XX. Tinha estampa de
gente de outro tempo.
Exprimia-se num castelhano lento, com sotaque musical.
Um dia soube que se chamava Giulio Girardi
[*]
e tinha aura de grande teólogo. Mas somente meses atrás, por
casualidade, um livro seu me caiu nas mãos: «Cuba despues del
derrumbe del comunismo».(1)
Não gostei do titulo. Mas o livro fascinou-me.
Ele estava no momento no meu hotel numa das suas frequentes visitas a Havana.
Transcorrida uma semana, éramos amigos.
Girardi, nascido em 26, foi ordenado sacerdote em 55 e doutorou-se em
Filosofia. Depois foi professor de Antropologia e de
Introdução ao Marxismo, em Paris. João XXIII tinha-o em
alta estima e chamou-o para assessor durante o famoso Concilio Vaticano II que
assinalou a breve viragem à esquerda da Igreja Católica. Fidel
Castro admira-o muito.
Nos últimos 15 anos os temas latino americanos absorveram-no.
O filosofo cubano Martinez Heredia afirma no prólogo da obra citada que
Girardi com o seu livro «rompe o bloqueio cultural contra Cuba».
Girardi -- sublinha -- «reuniu os trabalhos do militante, do intelectual,
do irmão. Fez uma obra de amor eficaz, um livro sem
concessões».
No seu género é o livro mais profundo de um cristão que li
sobre Cuba. Girardi não foge às dificuldades. Vai ao seu
encontro para reflectir exaustivamente sobre questões incomodas que
raramente são abordadas pelos amigos da Ilha. Tem consciência de
que a
verdade
possível sobre Cuba exige a descida às raízes das
contradições da Revolução. Coloca logo de inicio a
grande questão: Cuba será um reduto do passado ou o germe de um
futuro novo?
A resposta é difícil. Em primeiro lugar porque a
tentação é para optar por uma escolha determinada por
pressupostos ideológicos. Em segundo lugar porque a realidade cubana
não é monolítica. Incompatível com os
esquematismos dos apologistas e dos detractores incondicionais, é uma
realidade extremamente complexa e contraditória. Cuba é
paradoxalmente, ao mesmo tempo, um caso mais de «socialismo real» e
uma experiência socialista profundamente original.
O grande desafio da revolução, hoje, é «enfrentar
os problemas de sobrevivência sem sacrificar nenhuma das grandes
conquistas em termos de solidariedade e justiça social; mais ainda sem
renunciar à procura de caminhos» que o processo da
«rectificação» tinha desencadeado muito antes da
catástrofe (soviética).
Parece fácil, mas foi dificílimo.
Girardi escreveu este livro em 1993 na fase mais aguda do período
especial.
Como ele sublinhou, o extraordinário interesse político e
teórico do «caso cubano» residia precisamente nesse
entrosamento entre resistência e elaboração de alternativas.
Não se tratava apenas de salvar uma experiência
revolucionária única. O povo cubano ,para sair do túnel,
teria de avaliar com rigor o positivo e o negativo da mesma. A questão
do «novo futuro» transcendia o quadro caribenho, adquirindo
importância decisiva para quantos se interrogam sobre a possibilidade de
«uma alternativa à civilização da violência e
da morte», envolvendo o sentido do combate político e da
própria vida.
Na procura da resposta é impossível iludir o problema das
contradições da sociedade cubana.
Girardi aborda o tema com uma coragem e uma lucidez pouco comuns:
«Coexistem (...) no pais um debate vivo, critico, participativo e uma
estrutura burocrática, vertical, que gera em muitos uma atitude de medo,
uma dupla linguagem. E até uma dupla moral (publica e privada)».
O SUJEITO DA REVOLUÇÃO
O teólogo sabe que penetra num terreno delicado ao reflectir sobre a
forma como o Partido procura assumir a função social que consta
do seu programa. Pretende ser a expressão autentica da vontade popular.
Mas «muitos vêem-no mais como órgão de
direcção leninista e de controlo do povo». O principio
«com a revolução tudo, fora da revolução
nada» presta-se na pratica a interpretações diferenciadas.
Segundo Girardi a pergunta «quem é finalmente o sujeito da
revolução cubana? enfrenta na pratica duas respostas que
não é fácil conciliar: o partido e o povo».
O teólogo italiano conhece bem a Ilha e a sua gente. Chegou à
conclusão de que os quadros e militantes do partido têm uma imagem
de «integridade moral e autenticidade revolucionaria». Essa
realidade não resolve a contradição nascida de um desafio
ideológico: o Partido Comunista Cubano apresenta-se como martiano e
marxista-leninista, tentando fundir uma concepção do mundo
idealista e uma pratica inspirada no materialismo histórico.
Não cabe aqui comentar esse desafio (2). Mas não é
possível compreender Cuba e a sobrevivência da sua
Revolução sem uma descida às raízes da
contradição.
É «legitimo supor -- indaga Girardi -- que entre essas
inspirações se gera unicamente convergência e
complementaridade e não contradição? Por exemplo no que
se refere à relação entre pessoa e comunidade, entre
revolução e religião, entre partido e Estado, etc».
Do eticismo martiano e do pragmatismo humanista do leninismo o ex-padre
salesiano parte para uma reflexão fascinante sobre os efeitos no
período especial da teoria e da praxis de ideologias que se
interpenetram sem se fundirem totalmente.
É possível que sem a tenaz fidelidade ao eticismo martiano Cuba
não tivesse podido sobreviver às consequências da
introdução gradual na economia e na vida do pais da lógica
do lucro e dos efeitos do funcionamento de certos mecanismos do mercado
capitalista. Num discurso pronunciado na União dos Escritores e
Artistas, o próprio Fidel aludiu aos estragos provocados no tecido
social pela entrada no pais após a derrocada da URSS de uma praga de
«bactérias e outros bicharocos» de procedência
capitalista.
Significativamente, Fidel sublinha Girardi «aparece ao mesmo
tempo como o defensor intransigente da unidade e da continuidade da
revolução e como o inspirador da autocrítica e da
renovação».
Compatibilizar esses objectivos é, na pratica da vida, muito
difícil. O debate interno que findou com a supressão do artigo
dos Estatutos do Partido que impedia a admissão de militantes
não ateus confirmou que determinadas contradições
não eram somente teóricas, porque se enraizavam também na
consciência de muitos militantes.
Girardi na sua analise da «rectificação» -- um
importantíssimo e mal conhecido esforço de reflexão
critica sobre a Revolução e as suas insuficiências e erros,
esforço que precedeu a perestroika soviética e sem afinidades com
ela -- chama repetidamente a atenção para o facto de no cerne das
contradições cubanas se encontrar aquilo que define como
«uma contraposição entre modelos de socialismo», um
«humanista e popular e outro economicista e autoritário». O
primeiro vem da tradição autóctone cubana e especialmente
do pensamento de José Marti, de Fidel e do Che. O segundo está
vinculado ao modelo europeu de «socialismo real» e foi difundido em
Cuba sobretudo a partir dos manuais de marxismo leninismo da Academia das
Ciências da URSS.
É nesse capitulo que o trabalho do ex-assessor de João XXIII
assume maior interesse. Isso porque o choque dos dois« modelos»
marcou e continua a marcar toda a experiência cubana e ajuda a perceber
muitas das actuais contradições.
«Esta dialéctica -- escreve Girardi -- representa em si mesma um
profundo pluralismo político e cultural intrínseco à
realidade cubana, embora não se expresse em partidos e noutras
organizações diferenciadas. Desperta em todas os sectores da
vida cubana um debate vivo e uma busca intensa de soluções novas.
Em virtude deste debate, a revolução cubana na fase actual pode
considerar-se um
laboratório para a alternativa,
no qual a palavra alternativa não se refere apenas ao sistema
capitalista, mas também ao socialista economicista e
autoritário».
O teólogo reconhece que os dois modelos influenciaram o processo com os
seus valores e erros.
Logo no seu inicio, a Revolução Cubana, quando o cerco imperial
começou a tomar forma, foi forçada a opções que
implicaram um determinado grau de dependência, nomeadamente da URSS. A
sua intima vinculação ao campo socialista, não prevista,
não resultou de uma opção ideológica e sim da
agressividade imperialista.
A dependência do modelo soviético, que durou uns 15 anos, nunca
afogou, contudo, no dizer de Girardi, «a originalidade e a vitalidade da
inspiração autóctone. Dependência em primeiro lugar
económica e tecnológica ,mas também, por conseguinte,
política, cultural e ideológica».
Girardi não é neutro. Não esconde ,como cristão
progressista, a sua preferencia pelo idealismo e eticismo martianos que
marcaram os primeiros anos da Revolução.
Os manuais soviéticos -- sublinha -- favoreceram «a
prevalência de um marxismo dogmático, economicista, objectivista,
rigidamente ateu e autoritário, que nunca chegou a sufocar o modelo
cubano, mas travou seriamente o seu desenvolvimento e influencia».
Cuba foi um pais dependente, mas nunca se transformou num pais satélite,
contrariamente ao slogan da propaganda imperialista.
Em prolongadas conversas com Giulio Girardi tive a oportunidade de lhe
manifestar por um lado um grande apreço pelo seu livro, como
contribuição valiosíssima à compreensão de
complexas contradições que assinalam o caminhar tempestuoso da
Revolução Cubana, e, por outro, discordâncias importantes
sobretudo no que relaciona à temática do relacionamento entre
cristãos e marxistas e à sobrevalorização do papel
do Che nas grandes opções que determinaram a estratégia da
Revolução.
No cerne dos «dois projectos de sociedade -- salienta -- encontram-se duas
concepções do homem novo e portanto da
educação orientada para o formar. A opção
educativa em que desemboca a concepção soviética da
revolução, do partido e do Estado é decididamente
autoritária: do que se trata é de formar cidadãos e
particularmente militantes, submissos, no pensamento e na acção,
às orientações do Partido e do Estado. Relativamente
à teoria revolucionaria ela pede uma adesão passiva, uma forma de
fé. Os métodos da educação libertadora
estão proscritos».
Em contraposição, « na perspectiva humanista assume
importância decisiva uma educação orientada para promover a
afirmação de cada cidadão e de todo o povo como sujeitos,
como homens novos, capazes de pensar autonomamente, de decidir livremente e
solidariamente, de participar criadoramente na realização do
projecto revolucionário».
Desenvolvendo o tema, Girardi coloca o leitor perante as múltiplas
contradições entre aquilo a que chama «o marxismo
soviético» e o «marxismo cubano». Na sua opinião
enquanto o primeiro erige em fundamento do sistema o materialismo
dialéctico, isto é uma metafísica materialista e ateia, o
segundo insere-se no desenvolvimento criador do pensamento de Marx, valorizando
«na visão da historia o papel da subjectividade popular e defende a
autonomia relativa da cultura e particularmente da ética com respeito
à base económica».
Girardi reconhece que ao tentar iluminar os dois«modelos» não
conseguiu evitar um certo esquematismo. Os cristãos
revolucionários, sobretudo os adeptos da teologia da
libertação, sempre se sentiram atraídos, é um
facto, pelo «marxismo martiano», o que nunca aconteceu com o
«modelo soviético».
Os reparos que me merece a posição de Girardi são
indissociáveis da infinita complexidade da problemática por ele
abordada.
Incluo-me entre os marxistas que consideram muito insuficiente a analise
histórica da tragédia social que levou à implosão
da URSS e à reimplantação na Rússia do capitalismo.
Mas desde já se pode afirmar que é um simplismo atribuir ao
imperialismo a responsabilidade principal pelo que aconteceu. Aquilo que
existia
independentemente de ser uma caricatura do socialismo ideado por Marx e
Lénin era a herança de uma grande revolução
que alterou o rumo da humanidade, com consequências, a nível
mundial, globalmente muito positivas. Girardi, como outros intelectuais, cai
na tentação fácil de subestimar essa herança. E
não aflora sequer a questão chave:
por que não saiu o povo à rua para defender o «socialismo
real?».
Na realidade era uma contrafacção do socialismo, mas isso
não simplifica as angustiantes questões subjacentes à
pergunta.
Uma delas é indissociável da temática do
homem novo
que tanto apaixona Girardi e que o leva a invocar repetidamente ideias do Che.
É hoje obvio que em mais de sete décadas não foi
possível construir na URSS um tipo de sociedade em que predominasse
o homem novo.
A passividade do povo ante o desmantelamento por Gorbatchev do Estado e do
Partido e o posterior assalto ao poder de Ieltsin e a emergência da sua
mafia vieram confirmar que a sociedade soviética da época era
fundamentalmente uma sociedade onde, na aparência invisível,
predominava já esmagadoramente
o homem velho.
Durante breves períodos, na fase iniciada com a Revolução
de Outubro, durante a Guerra Civil e ainda na épica resistência
à invasão das hordas fascistas, uma sociedade diferente, mas de
contornos ainda indefinidos, permitiu o aparecimento de milhões de
cidadãos que respondiam ao perfil do anunciado
homem novo.
Mas foram sempre uma pequena minoria. A propaganda, tomando a promessa de
futuro por presente, proclamou que eles eram a própria imagem da
sociedade soviética. Essa ilusão desfez-se em estilhaços
quando, no rescaldo do terramoto russo, o
homem velho
com todos os seus egoísmos, traumas e ambições, irrompeu
dos subterrâneos da sociedade, enquanto no Ocidente capitalista se
proclamava com jubilo a morte do comunismo.
Era uma euforia prematura que arrancava de uma inverdade. O comunismo
não morreu pela simples razão de que ainda não nasceu.
Realistas, os dirigentes da Revolução Cubana demonstram uma
lúcida consciência de que ela, na sua luta para sobreviver ao
cerco imperialista, não pôde sequer concretizar um projecto
socialista de contornos claramente definidos. Sabem que o comunismo é
uma aspiração distante, sem data no calendário.
Para Girardi a Revolução, na perspectiva dos marxistas cubanos,
seria antes de mais «uma transformação
antropológica, cujo eixo é a emergência do povo como
sujeito histórico, a instauração do poder popular, a
formação de «um homem novo» e de «um povo
novo».
O Partido desenvolve reconhece- uma «severa autocrítica das
tendências para a burocratização e prevê mecanismos
de democracia interna para a eleição e a
renovação dos quadros».
O teólogo constata que o Partido se propõe como objectivo
prioritário «promover o povo como sujeito, especialmente
favorecendo as diferentes expressões do poder popular». A
exigência da não intervenção na
administração do Estado aparece como consequência
lógica e indispensável dessa opção.
O sistema do «perfecionamiento empresarial», aplicado com
extraordinário êxito em mais de 120 grandes empresas, veio
demonstrar que a descentralização não é
incompatível com a planificação e que a
participação dos trabalhadores produz resultados que excedem
todas as previsões quando eles sentem como comunistas que assumem na
produção o papel de sujeitos e não o de objectos. O
partido está alias a desempenhar um papel importantíssimo nessas
experiências.(3)
Mas o «perfeccionamiento» apenas atingiu ainda uma minoria de
empresas. A passagem dos velhos métodos a outros, que exigem uma
mudança de mentalidade, é lenta. O
homem velho
ainda não desapareceu da sociedade cubana. Escondido, espreita uma
oportunidade.
DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO
A rectificação cubana nasceu da consciência de que o modelo
económico e político inspirado no «socialismo real»
soviético produzira distorções e efeitos negativos que
exigiam uma intervenção correctiva. O Estado e o Partido
aperceberam-se de que a desejada renovação somente seria
possível se o povo a assumisse. Como diz Girardi, os caminhos da
renovação teriam de ser abertos «a partir de um amplo e
livre debate popular, autocrítico e criador». Desde o inicio ficou
transparente que a meta da rectificação não poderia ser o
abandono do socialismo, mas, pelo contrario, «o resgate e o aprofundamento
da sua inspiração democrática e popular».
Enquanto a perestroika significou a abertura ao capitalismo, a
rectificação cubana não surgiu de um balanço
globalmente negativo do passado, mas sim da consciência de que era
necessário «corrigir, consolidar, aperfeiçoar (...) um
processo que de modo algum se quer repudiar». Não se renega a
historia recente. A viragem, suave, implica um resgate parcial do projecto
original.
De certa maneira assiste-se a uma «refundação» que, na
pratica, se apresenta como um compromisso entre dois modelos, tarefa que foi
facilitada pelo desmoronamento da URSS.
Paradoxalmente, as condições anormais que tornaram
necessárias as medidas drásticas e dolorosas do período
especial não constituíram um obstáculo ao aprofundamento
da democracia. Contribuíram para o estimular.
Frente ao dogma do liberalismo «fora do capitalismo não há
democracia», a revolução cubana -- escreve Girardi -- assume
a responsabilidade histórica de mostrar que somente no socialismo
(humanista) é possível o pleno exercício da democracia.
Ela está empenhada em realizar a síntese difícil
«entre o papel dirigente do partido único e o exercício do
poder popular; e também entre a centralização e
planificação da economia por um lado e a
valorização da iniciativa e do controlo popular por outro».
Os esforços cubanos para que
a sua verdade
seja se não aceite pelo menos compreendida na Europa e nos EUA
continuam a esbarrar com uma dificuldade quase insuperável. Sei por
experiência própria que mesmo muitos amigos de Cuba, modelados
por um universo cultural para o qual os aspectos institucionais da
democracia
prevalecem sobre os que resultam do funcionamento do sistema, ou seja sobre os
económicos e sociais, identificam na existência do partido
único um mal que, por si só, impediria o povo de Marti de ser
autenticamente livre. Essa atitude foi sintetizada pelo escritor nicaraguense
Sergio Ramirez na afirmação de que o fundamental seria a
conquista da
democracia sem adjectivos,
isto é da superestrutura institucional da democracia representativa. O
resto viria depois. Acontece que a «representatividade» nas
democracias capitalistas é ficcional e
o resto
é quase tudo...
A «dialéctica interna ao socialismo e ao próprio partido
comunista da qual iluminamos antes o conteúdo e a importância --
lembra oportunamente Giulio Girardi -- representa sem duvida uma forma de
pluralismo muito mais efectiva que os pluripartidarismos das democracias
liberais, por exemplo a norte-americana».
Cinco anos de residência em Cuba permitiram-me conhecer em profundidade
as insuficiências, as muitas mazelas, os grandes problemas que a
Revolução Cubana enfrenta hoje na sua luta épica para
sobreviver ao cerco imperialista, mais exactamente à guerra não
declarada que lhe move o sistema de poder dos EUA.
Significativamente não são esses problemas -- alguns
ideológicos, muito complexos e inseparáveis da desigualdade
social gerada pela polarização e a inserção no
mercado mundial -- que encontramos analisados com um mínimo de seriedade
no discurso anti-cubano difundido pelos media internacionais.
O primarismo intelectual, o fanatismo, e o ódio irracional continuam a
ser o combustível de campanhas que insistem em apresentar o povo cubano
como vitima de uma ditadura anacrónica, dirigida com pulso de ferro por
Fidel Castro.
Daí a utilidade de livros como o de Giulio Girardi, um teólogo
humanista e sábio cuja lúcida e polemica reflexão sobre a
Revolução Cubana confirma em primeiro lugar uma evidencia muito
esquecida: Cuba continua a ser um efervescente
laboratório social e ideológico.
E Fidel?
Contrariamente ao que imagina a maioria dos jornalistas europeus e
norte-americanos, o tema da
sucessão de Fidel
que constitui quase uma obsessão para eles não é assunto
do debate político entre os cubanos. Não por desinteresse pelo
futuro da Revolução.
O próprio Fidel abordou em diferentes ocasiões a questão.
Os cubanos, no quotidiano, não trazem o tema à conversa sobretudo
por um motivo que escapa à argúcia dos analistas de Washington,
Paris ou Lisboa.
Sabem que a recuperação quase miraculosa da economia cubana
nos últimos cinco anos Cuba foi o pais que em media mais cresceu
na América Latina resultou do esforço conjugado de
dirigentes e quadros forjados pela Revolução e da
participação do povo como sujeito, do consenso, da sua vontade de
resistir e da certeza de que era possível. Alguns desses homens, como
Carlos Lage, eram crianças quando se lutava na Sierra Maestra, ou
não haviam nascido, como Felipe Perez Roque, o actual ministro dos
Negócios Estrangeiros. A existência dessas gerações
é em si mesma a melhor garantia de continuidade revolucionaria.
Mas, paralelamente, qualquer cubano, está consciente da lei da vida.
Fidel tem 75 anos, é um ser mortal como qualquer outro. O povo de Cuba
terá de prosseguir um dia a sua maravilhosa aventura colectiva sem a
presença à frente do Estado e do Partido do dirigente que,
desafiando a lógica aparente da historia, lhe mudou o rumo na Ilha, e
não só.
Aí intervém a consciência do factor subjectivo na Historia.
Apareceram ao longo dos séculos, para o bem da humanidade, ou para o
mal, personagens irrepetíveis. Fidel foi uma delas.
Os cubanos sabem que não haverá outro Fidel. E é isso que
lhes dói e torna incomodo e doloroso o tema da chamada
sucessão.
Porque o amam profundamente.
Havana, Agosto de 2001
_______________
(1)Giulio Girardi, Cuba después del derrumbe del comunismo, Ed Nueva
Utopia, Madrid, 1994. Existe uma edição cubana, ampliada, do
Centro Martin Luther King, de Havana.
(2) Em 1997, na revista «Princípios», do Partido Comunista do
Brasil, publiquei um ensaio dedicado ao tema do Marxismo-Martiano.
(3) Isabel Rauber, Romper el Cerco, Ediciones Sociales, La Habana, 2001
_______________
[*]
Giulio Girardi (Cairo, Egipto, 1926). Filósofo e teólogo da
libertação. Pensador e militante comprometido com os processos
de transformação e as lutas dos povos na América Latina.
Concretamente com os processos da Nicarágua, Cuba, Chiapas e com as
lutas do movimento indígena. Membro do Tribunal Permanente dos Povos.
Dentre os seus escritos destacam-se:
-Sandinismo, marxismo, cristianismo: la confluencia (1987);
-Revolución popular y toma del templo. El pueblo cristiano de Nicaragua
en las barricadas (1989);
-La túnica rasgada (1991);
-La conquista ¿con qué derecho? (1992);
-Los excluidos ¿construirán la nueva historia?
-El movimiento indígena, negro y popular (1994);
-El templo condena el Evangelio (1994);
-El derecho indígena a la autodeterminación política y
religiosa (1997);
-Globalización neoliberal, deuda externa, jubileo 2000 (1998);
-Desde su propia palabra. Los indígenas, sujetos de un pensamiento
emergente (Quito, 1998);
-El ahora de Cuba, tras el derrumbe del comunismo, tras la vista del Papa
(1998).
-Máscaras de poder, rostros para la liberación. (Montevideo,
1999)
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