por Miguel Urbano Rodrigues
De todos os depoimentos críticos que li sobre os julgamentos de Cuba o
que mais me surpreendeu foi o de Eduardo Galeano.
O seu «Cuba duele», publicado em "Brecha" e logo
reproduzido em todo o mundo, doeu-me muito. Por vir de um dos escritores da
América Latina mais respeitados pelo seu eticismo, e porque a sua
atitude confundiu muitos intelectuais de esquerda e foi festejada pelo
super poder universal uso uma expressão sua "que
está com uma vontade louca de tirar da garganta esta teimosa
espinha", isto é Cuba.
Uma chuva de críticas desaba hoje sobre o autor de «As veias
abertas da América Latina». Esse foi outro efeito colateral da sua
tomada de posição. Com a peculiaridade de muitas dessas
criticas, marcadas pela paixão, serem injustas, algumas insultuosas. Os
epígonos e toda a Revolução gera sempre esse tipo
de gente quando não adulam difamam.
Li um artigo, por exemplo, em que o autor lançava sobre Galeano o
anátema de burguês oportunista, acusando-o de se hospedar em
hotéis de luxo, quando visitava Havana.
Textos como esse definem quem os subscreve.
Galeano tem um passado de lutas pela causa da libertação da
América Latina que não pode ser apagado por um artigo que
não deveria ter escrito.
Admiro há mais de quatro décadas o escritor e o intelectual
revolucionário. Nem sempre me identifiquei com posições
por ele assumidas, mas esse distanciamento nunca afectou o meu respeito pela
sua permanente busca de coerência nos combates em que, sempre corajoso,
se empenhava. Não duvido do seu amor por Cuba e pela
Revolução.
Apertei-lhe a mão uma noite, sem trocar uma palavra, em Santiago, no ano
88, quando ele num teatro daquela cidade abriu o programa de «Chile
Crea», uma iniciativa em que quase no final do consulado de Pinochet, 200
intelectuais de muitos países levaram solidariedade ao povo de Neruda.
Galeano falou por todos, desafiando a ditadura. E exprimiu bem o que
sentíamos.
O que me distancia hoje do escritor uruguaio não me leva a procurar
subitamente no seu passado, supostas falhas de caracter, cumplicidades
imaginárias com a burguesia, ambições ou vaidades.
Galeano não caminhou pela vida contemplando o seu umbigo.
Aquilo que me dói no escritor e no combatente humanista é
ele ter agido sob o impulso do que julgou ser um dever ético. Por
outras palavras: o tremendo erro que cometeu. A motivação
alegada não justifica a conclusão. Onde enxergou uma ponte
ela não existia.
Os julgamentos e os fuzilamentos funcionaram como espoleta de uma
opção de consciência. Mas a argumentação
invocada não convence.
Não cabe aqui analisar a visão que Galeano transmite da Cuba
actual. É um facto que a Ilha "sobreviveu como pôde e
não como quis". Mas o autor de «Las fuentes de la
violencia» não tem com a sociedade cubana, extraordinariamente
contraditória, a intimidade suficiente para descer às
raízes de situações que o chocam. Reconhece que, apesar
do cerco imperial, Cuba permanece "de pé num mundo de
agachados". Portanto, Resiste!
O grave não é o apontar de realidades que inviabilizaram o
projecto da revolução idealizada, mas o discurso que acompanha
a crítica suscitada pelos actos do Poder que condena.
Galeano deixa então entrever uma concepção da
história da qual, como muitos dos seus admiradores, me distancio.
Aí, o que escreve destapa também uma desinformação
chocante num escritor com a sua dimensão.
Recordar a Checoslováquia do ano 68 e o Afeganistão do ano 79
a propósito do funcionamento da Justiça cubana no ano 2003 para
reflectir sobre "o sagrado direito à
autodeterminação dos povos" foi uma péssima
lembrança. Ficou desarmado. A direita aplaudiu, mas a história
foi desrespeitada.
Seria absurdo abrir aqui o "dossier" da intervenção
soviética na Checoslováquia. Mas julgo oportuno recordar uma
confissão indesmentível de Alexandre Dubcek, feita ao
semanário soviético "Novedades de Moscu" em pleno
período da perestroika. Dubcek, numa entrevista que foi então
amplamente divulgada em muitos países, declarou que nunca havia sido
marxista. Acontece que esse dirigente era secretário geral do Partido
Comunista da Checoslováquia durante os acontecimentos do ano 68
quando, como governante, anunciava que a Primavera de Praga iria conduzir o
pais a um socialismo humanizado, de rosto humano. Apenas pergunto: por que
mentiu Dubcek ao seu povo? Como podia defender "o sagrado direito
à autodeterminação dos povos" alguém que,
não sendo marxista, proclamava diariamente a sua fidelidade ao
socialismo como secretário-geral de um Partido comunista?
Dubcek, afinal, comportou-se no governo como um farsante, tal como Gorbatchev,
que tendo subido ao poder proclamando a necessidade de um regresso às
origens do lenininismo, viria, anos depois, a confessar em Grenoble, na
França, que há muitos anos tinha consciência da
superioridade do capitalismo sobre o socialismo.
Refere também Galeano a invasão do Afeganistão. Visitei
quatro vezes aquele pais durante a Revolução afegã (uma
realidade hoje esquecida) e conheço com alguma intimidade a
história antiga e contemporânea dos seus povos. Porventura
Eduardo Galeano ignora o famoso depoimento de Brzezinski em que ele se orgulha
de ter persuadido Carter (em documento assinado) a criar, através da
CIA, uma situação de caos no Afeganistão que
forçaria inevitavelmente a URSS a intervir em defesa da
Revolução?
Galeano está consciente de que o sr James Cason, o chefe do
Escritório de Interesses dos EUA, se comporta em Havana não como
diplomata mas como representante dos serviços de inteligência do
seu pais. No âmbito do seu trabalho conspirativo escreve
"ele próprio fundou o braço juvenil do Partido Liberal
Cubano, com a delicadeza e o pudor que caracterizam o seu chefe".
Não entendo, portanto, a contradição do escritor. Se
está ciente de que Cason montava grupos contra-revolucionários
para os apresentar como partidos, se reconhece que essa falsa
"oposição democrática nada tem a ver com as
genuínas expectativas dos cubanos honestos", por que invoca
então a posição de Rosa Luxemburgo contra o partido
único?
Certamente que Galeano não esqueceu a tentativa de Carlos Alberto
Montaner, um notório homem da CIA, de criar em Cuba três
taxi-partidos fantasmas: o socialista, o social-democrata e o democrata
cristão. Em carta dirigida então a Gustavo Arcos convidava-o a
aceitar a presidência de um deles. O seu interlocutor sabia como ele
que tais partidos seriam ficcionais, siglas sem militantes, mas isso carecia de
importância. Oficialmente lançados, o Governo Cubano
explicava Montaner tornaria publica a sua ilegalidade. Então
seria lançada uma campanha internacional e o mundo tomaria conhecimento
de que Fidel fechara o Partido Socialista, o Partido Social Democrata e o
partido Democrata Cristão. E choveriam protestos contra a
repressão em Cuba.
Para azar de Montaner a carta nem chegou ao seu destino. Foi apreendida pelos
serviços de segurança cubanos e divulgada pelo
"Granma".
Marti não era marxista. A sua concepção idealista da
história na acepção filosófica da palavra
não o impediu, contudo, como revolucionário, de defender
um partido único, o Partido Revolucionário Cubano.
Ele tinha a certeza antecipada do que significaria numa Cuba libertada, mas com
um forte movimento anexionista, o funcionamento de uma multiplicidade de
partidos controlados e financiados pelo imperialismo estadunidense. A
história não tardou a confirmar as suas previsões.
Já o tenho dito e escrito: Cuba, bloqueada, foi forçada a
desviar-se do seu belo projecto revolucionário e a adoptar medidas que
lhe contrariam o espírito e as metas. A necessidade de
sobrevivência da Revolução impediu-a de construir o seu
próprio modelo de socialismo. Mas a decisão de Resistir, e
defender conquistas fundamentais, torna por si só a Ilha credora da
gratidão e da solidariedade de todas as forças progressistas. E
em primeiro lugar dos intelectuais revolucionários.
Mas o que Galeano critica não é a desigualdade social
resultante dos mecanismos do Período Especial, não são
os efeitos nocivos daquilo a que Fidel chamou "as bactérias e
bicharocos" do capitalismo. O grande escritor uruguaio tem má
consciência, como amigo de Cuba, por outros motivos. O que me
dói é que alguém como ele venha levantar a
temática da abertura democrática, da liberdade de reunião
e da liberdade de imprensa usando uma linguagem que não é a sua e
colocando-se numa perspectiva que também não é a sua
quando contempla Nuestra América.
E isso acontece no auge da mais feroz campanha anti-cubana das
últimas décadas, orquestrada por um sistema de poder monstruoso
que ameaça já a Ilha com o destino do Iraque.
Pelo vasto mundo, todas as semanas homens e mulheres são executados
após julgamentos sumários. É no Paquistão, em
países da Ásia Oriental, em África. Nos presídios
dos EUA dezenas de presos condenados à morte aguardam a
execução da sentença. No Iraque, ocupada Bagdad, as
forças dos EUA, após uma guerra de genocídio, abatem
diariamente patriotas que protestam contra ocupação. Aos
soldados foi distribuído um baralho de cartas com os retratos de
personalidades que Washington pretende capturar. Tariq Azis era o oito de
espadas.
E contudo, os fuzilamentos de Cuba ocupam mais espaço nas primeiras
páginas dos jornais dos EUA da Europa do que crimes e
abjecções como os citados, nestes dias em que o neofascismo do
sistema de poder estadunidense ameaça a humanidade.
Pessoalmente também discordo da pena de morte. Sou pela sua
abolição universal. Mas não escreveria uma só
linha a criticar os fuzilamentos de Havana.
Eduardo, não deverias ter citado Rosa Luxemburgo. A águia de
Varsóvia, como lhe chamava Lenin, que muito a admirava apesar das
discordâncias, estaria hoje, se fosse nossa contemporânea, na
primeira trincheira da defesa de Cuba.
Este artigo encontra-se em
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