por Miguel Urbano Rodrigues
Naquela tarde, em Porto Alegre, de repente, um coro imenso cantou a
Internacional. O Pavilhão do Gigantinho (15 mil lugares) estava repleto
de gente. Foi após a leitura da Declaração pela Paz
assinada por palestinos e israelenses progressistas. Quando eles se
abraçaram, a multidão ergueu-se, e as estrofes do velho hino
revolucionário, subindo das bancadas, fundiram as solidariedades
individuais numa intensa emoção colectiva.
Mulheres e homens vindos de mais de 150 países, de mãos unidas,
transmutavam em esperança o lema do Fórum, mobilizados por um
sentimento de fraternidade que, por momentos, sobrepondo-se à
diferenciação cultural e ideológica, fazia da massa um
corpo único com os olhos postos num mundo humanizado.
Esse espírito internacionalista foi uma constante no grande evento, em
conferências e seminários, na grande concentração
que escutou Lula, no desfile anti-Alca. E, contudo, se interrogados, muitos
dos participantes não se definiriam como revolucionários.
Não é fácil dimensionar sentimentos colectivos. Mas
aquilo que mais diferenciou este III Fórum Social Mundial dos anteriores
foi a unanimidade na condenação da guerra. Essa atitude
não se expressou somente na veemência da repulsa pelo discurso
imperial dos EUA, pela sua ambição de domínio
planetário através da violência. A rejeição
da globalização de figurino neoliberal como complemento
intrínseco do Novo Imperialismo acompanhou permanentemente o
Não às guerras anunciadas e aos genocídios e
agressões promovidos ou encorajados pelo monstruoso sistema de poder
estadunidense.
Não se avançou muito nem seria possível no
terreno das alternativas ao sistema que se recusa. A convergência no
protesto era espontânea porque todos sabem aquilo que não
aceitam. Mas como os projectos de futuro são múltiplos e com
frequência não compatíveis, os consensos num Fórum
tão marcado pela heterogeneidade teriam de ser modestos pela
impossibilidade de definir uma estratégia comum.
Daí uma contradição. Nunca antes a disponibilidade para
a luta se manifestou com tamanha clareza.
Em Porto Alegre, tal como acontecera em Florença, no Fórum Social
Europeu, em novembro pp, foi transparente na atitude dos participantes um
aumento de combatividade. Em ambos, como sínteses das grandes
maiorias que mundo afora repudiam a nova ordem imperial que hierarquiza os
Estado e os povos, manifestou-se um novo espírito de luta. A
maré do
descontentamento subiu muito de um ano para outro.
Por todo lado, nos painéis do Gigantinho e da PUC, nos principais
Seminários, nas Conferencias da Assembleia Legislativa, no Acampamento
da Juventude, nas aclamações a Hugo Chavez, nas palavras e
emoções que expressavam a grande esperança simbolizada
na eleição de Lula identifiquei uma mudança qualitativa
no protesto. A compreensão de que a humanidade se encontra
globalmente ameaçada pelo projecto imperial em desenvolvimento, a
consciência de que a própria continuidade da vida é posta
em causa pela sua irracionalidade agressiva contribuíram para uma
alteração de comportamentos individuais que se expressa de
muitas formas. A consciência do perigo ,em vésperas de grandes
transformações históricas, contribuiu sempre para que
em qualquer sociedade aqueles que nela encarnam valores e princípios
eternos assumam a sua defesa. Dai uma maior disponibilidade para lutas em que
a desambição pessoal permite o desenvolvimento das melhores
potencialidades da condição humana.
Essa tendência imprimiu ao Fórum uma atmosfera peculiar, algo
que fazia pensar numa corrente invisível que aprofundava a
fraternidade.
Senti-lhe a força em momentos tão diferentes como a
lúcida intervenção de Noam Chomsky sobre a
oposição da maioria do seu povo à escalada de loucura de
uma política de contornos já fascizantes, como o brado humanista
de Eduardo Galeano, como o encontro em que participei no Acampamento da
Juventude.
A solidariedade com a Palestina, com os combatentes da
insurreição armada colombiana, com a Venezuela bolivariana foi
espontânea, permanente, comovedora. A Casa de Cuba, um enorme
pavilhão fronteiro ao Gigantinho, tornou-se um pólo de
atracção. Na noite do encerramento do Fórum milhares de
pessoas participaram ali numa festa que entrou pela madrugada. Comemorava-se
o nascimento de José Martí. A solidariedade com a
Revolução fundiu-se com o canto e a dança porque na Ilha
a alegria de viver é inseparável da luta pela
transformação do mundo.
A participação dos comunistas portugueses atingiu este ano um
patamar mais elevado, com destaque para a comunicação apresentada
por Albano Nunes no Seminário «O Novo Brasil no Contexto
Universal», em que intervieram entre outros o filosofo cubano Fernando
Heredia, o pensador belga François Houtart, o dirigente comunista
argentino Júlio Gambina, a escritora argentina Isabel Rauber, a
activista da paz norte-americana Gloria de la Riva , e o autor deste artigo.
Desfilei na marcha anti-Alca ao lado dos comunistas portugueses com os
camaradas do PC do B e voltei a sentir uma grande disponibilidade para o
combate na sua serena confiança, num contexto em que grandes
apreensões sobre o desenvolvimento imediato da historia no Brasil
são companheiras da esperança nascida da vitória do
povo materializada na eleição de Lula.
Seria uma ingenuidade, entretanto, extrair da estimulante atmosfera de luta
que diferenciou este evento dos anteriores, traduzindo o avanço da
esquerda na América Latina e a condenação da
política de guerra bushiana, a conclusão de que as dezenas de
milhares de participantes do Fórum constituem o embrião de um
bloco de forças políticas mobilizável para uma
confrontação organizada com o sistema de
dominação imperial, tendo em vista a sua
destruição, por remota que ela se apresente como possibilidade.
O espírito combativo não garante por si só a passagem
à
acção. O III Fórum foi como os anteriores o espelho de
correntes de pensamento representadas por movimentos sociais,
organizações e personalidades com perspectivas muito
diferenciadas sobre o desenvolvimento da historia, ou, mais exactamente sobre
a estratégia a adoptar na luta contra a globalização
neoliberal e o novo imperialismo. Seria utópico, portanto, crer na
possibilidade de uma resposta única à pergunta «Que
fazer?» implícita no lema consensual «Outro mundo é
possível».
A lista de conferencistas e de organizações do Fórum
é bem expressiva das inevitáveis contradições que
afloraram nas posições por eles assumidas nos cinco eixos
definidos para orientação dos debates pelo Conselho
Internacional. A Carta de Princípios é tão ampla que
permite a defesa de posições não raro antagónicas.
Não critico; uma rigidez maior poderia inviabilizar a continuidade
de uma iniciativa que, surpreendentemente, se transformou em menos de
três anos no mais importante polo mundial de debates políticos,
sociais e culturais.
Mas seria desconhecer a evidencia negar que no Fórum, perante a
questão crucial da busca das alternativas, emergem duas correntes de
pensamento que reflectem concepções divergentes sobre a
historia e o caminhar da humanidade. Os matizes tácticos podem, em
ambas, tornar mais ou menos transparente o distanciamento ideológico.
Entretanto, o III Fórum veio iluminar com mais clareza a clivagem
existente entre as duas tendências:
1. A defendida por aqueles que, ante o gigantesco poder do sistema imperial
que hegemoniza o planeta e utiliza a globalização neoliberal
como instrumento de reforço da desigualdade crescente entre os povos,
admitem que a única atitude sensata na resposta ao desafio é a
que aponta para uma transformação do capitalismo, o qual,
através de reformas graduais seria humanizado, eliminando-se a sua
agressividade.
2. A sustentada pelos que identificam na actual crise de
civilização a prova de que o capitalismo não é
recuperável e de que, tendo entrado numa crise estrutural, tenta
sobreviver através de uma estratégia de agressividade
irracional. A guerra contra o Iraque seria mais uma numa série
ilimitada de guerras «preventivas» imprescindíveis à
perpetuação do imperialismo global como « tentativa
a expressão é de Istvan Meszaros de se impor a todos os
Estados recalcitrantes como o Estado 'internacional' do sistema do
capital». O capitalismo atravessa uma crise estrutural que tenta
superar recorrendo á violência, entrou numa fase de
«senilidade», como diz Samir Amin, mas é um inimigo
formidável tornado mais perigoso pelo desespero.
O desfile de estrelas e de actores menos renomados pelos múltiplos
cenários do Fórum permitiu, em debates por vezes fascinantes,
imprimir força de evidencia a uma realidade que tende a condicionar o
rumo da difícil luta que as forças progressistas travam hoje em
defesa da humanidade.
De um lado, por ora amplamente majoritárias, tomam posição
os que atribuem aos movimentos sociais o papel de, através do
movimento dos movimentos, conter e derrotar a globalização
neoliberal e imperialista, reformando o mundo.
Do outro encontramos as forças, minoritárias que repito
consideram o capitalismo irrecuperável e acreditam que as
organizações e partidos revolucionários tendem a
fortalecer-se, e a desempenhar, lutando ombro a ombro com os movimentos
sociais, um papel insubstituível na longa luta pela
destruição do sistema que ameaça a
continuação da humanidade. Sem data no calendário para a
sua derrota final, o capitalismo terá de ser erradicado da terra.
Porque a alternativa concreta é a contida na antinomia «socialismo
ou barbárie», embora desconheçamos os contornos que
virá a assumir a futura sociedade socialista esboçada por Marx,
num mundo pelo qual se bateram sucessivas gerações de
revolucionários humanistas.
Mais informação sobre o III FSM em
http://www.forumsocialmundial.org.br/home.asp
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info