Editor do
resistir.info
intervem em Florença, no
Fórum Social Europeu
Texto integral da intervenção de Miguel Urbano Rodrigues
Amigos e Companheiros
Falar da América Latina é sempre um desafio. Na Europa a
expressão engana. A América Latina constitui uma diversidade.
Diferenças abissais, económicas e culturais, separam
países vizinhos como a Argentina e a Bolívia, tal com o Brasil e
o Paraguai.
Dois denominadores comuns aproximam os povos no espaço
latino-americano: as línguas da colonização
sobretudo o espanhol e o português o francês e o inglês
somente são falados nas Caraíbas ) a
dominação imperialista.
Tal como acontece em grandes áreas do mundo muçulmano onde o
árabe funciona como instrumento de aproximação dos
povos, os idiomas ibéricos contribuem poderosamente para uma
fraternidade de sentimentos, atitudes e aspirações que, fecundada
nos Andes e na Mezoamerica pela herança das antigas culturas
precolombianas, faz da América Latina um universo cultural
inconfundível, simultaneamente heterogéneo e solidário.
Neste inicio do século XXI o peso crescente e dramático da
dominação dos EUA económica, política e
militar constitui o outro elemento fundamental que contribui para a
formação de uma consciência social latino-americana
antimperialista.
Nunca como na actual crise global de civilização a América
Latina sofreu tão duramente as consequências da
imposição de um modelo predatório que, sugando a riqueza
produzida, condena os seus povos ao subdesenvolvimento permanente,
atribuindo-lhes o papel de trabalharem para o agigantamento da potência
hegemónica como escravos de novo tipo.
Os efeitos dessa política são devastadores. Mas, embora a
pobreza alastre, a saúde e a educação se degradem, o
desemprego aumente, a violência e a corrupção atinjam
níveis alarmantes, os EUA insistem na aplicação do modelo
neoliberal para a América Latina concebido pelo seu sistema de poder,
mas definido como desfecho do mal chamado Consenso de Washington.
Não vou aqui apresentar números que confirmam a gravidade da
catástrofe económica e social da América Latina no limiar
do novo milénio. Divulgadas por organismos internacionais, essas
estatísticas são amplamente conhecidas.
Afigura-se-me mais útil chamar a atenção para alguns
aspectos fulcrais da crise e proceder a uma reflexão breve sobre o
significado de importantes acontecimentos em curso no Hemisfério. Muito
diferentes pela sua natureza, esses acontecimentos são
inseparáveis do funcionamento do modelo imposto e inserem-se num
confronto global.
Desta janela do Foro Europeu de Florença aberta para a América
Latina o meu olhar vai deter-se especialmente no Brasil, na Venezuela, na
Argentina e na Colômbia. Digo especialmente porque a
interligação dos factos é tão densa e complexa que
o convite à reflexão obriga, para aprofundamento do debate, a
transpor paralelos e meridianos e a viagens pelo tempo.
No cerne de cada uma das situações de crise e do desejo de
viragem encontramos a questão básica do Poder. Não se
pode tentar a transformação de uma sociedade, qualquer que ela
seja, sem definir uma atitude perante o poder existente. Como encarar hoje o
papel do Estado?
Essa é uma questão polemica que na América Latina
mais ainda do que na Europa suscita intenso debate. Da natural
ausência de consenso nas respostas resultam perspectivas e
conclusões muito diferentes .
Independentemente da maior ou menor autonomia do estado nacional (ou da sua
caricatura) perante a potência imperial, no caso os EUA, as forças
que na América Latina se mobilizam em torno do lema consensual do
Fórum de Porto Alegre, «Outro mundo é possível»,
são, pela própria dinâmica da luta contra o neoliberalismo,
tentadas a definir estratégias que possam aproximá-las do
objectivo, ou seja uma sociedade menos cruel e desumanizada do que a actual.
Mesmo no quadrante das forças que não colocam a questão
da necessidade da destruição do Estado burguês, isto
é, do estado imperializado, duas tendências principais se
manifestam na América Latina. Uma delas, de que é paradigma a
teorização zapatista, secundariza a questão do poder. A
problemática da participação é tratada numa
perspectiva que autonomiza o combate político. A ideia de que seria
possível construir-se um mundo novo, debaixo para cima, sem tomar o
poder, contida no discurso e nos apelos do subcomandante Marcos, encontrou
grande receptividade em meios incompatíveis com a luta política
organizada. A tentação de um espaço de anti-poder
fascina sobretudo intelectuais académicos e jovens atraídos pelo
neo-anarquismo.
A outra tendência reformadora da sociedade encontra na América
Latina expressão em forças, partidos e movimentos para os quais
o caminho para a mudança, para a humanização da vida,
terá de passar inevitavelmente pela conquista, através de
eleições democráticas, do poder político. Por
outras palavras, as instituições existentes seriam o instrumento
que permitiria substituir gradualmente o sistema de opressão e
exploração vigente por outro, antagónico, em beneficio das
grandes maiorias.
Na Venezuela, com Hugo Chavez, e no Brasil, com Lula, temos hoje na
Presidência dois lideres carismáticos que, eleitos no quadro das
instituições existentes, com o apoio das massas populares e a
sua participação decisiva no processo transformador, afirmam ser
possível atingir esse objectivo.
O desfecho sangrento da via pacifica para o socialismo no Chile permanece vivo
na memória dos povos da América Latina. Hoje noutro contexto
histórico, os presidentes do Brasil e da Venezuela, usando discursos
diferentes, traduzindo formações, bases sociais de apoio
também muito diferentes, não colocam sequer o socialismo como
meta .
O DESAFIO DE CHAVEZ
Hugo Chavez assumiu a Presidência numa situação muito
favorável. Em sucessivas eleições obteve maiorias
esmagadoras que tornaram possível a aprovação da
Constituição mais progressista do Continente. Numa fase inicial
as Forças Armadas desempenharam um papel protagónico na nova
Administração, participando em sectores-chave do Estado do
processo de transformações estruturais. Chavez acreditava que
essa disponibilidade seria permanente, envolvendo o conjunto da
instituição militar. Tal não aconteceu. O golpe de 11 de
Abril, organizado com a cumplicidade de um grupo de generais que gozava da
confiança do Presidente, veio confirmar a velha tese segundo a qual uma
parcela importante do corpo de oficiais de um exercito tradicional num estado
capitalista se mantém permeável às pressões e
apelos da burguesia quando a situação económica se
degrada, passando rapidamente da defesa de um projecto de contornos
revolucionários a uma atitude de desencantamento, deixando-se envolver
em manobras golpistas.
O golpe foi derrotado em circunstancias que são bem conhecidas. Mas
transcorridos sete meses, as forças da oligarquia venezuelana com o
apoio ostensivo do imperialismo não renunciaram ao projecto golpista.
Mudaram de táctica, mas exigem a renuncia do presidente e
eleições antecipadas, tripudiando sobre as
instituições que proclamam defender.
A atitude assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça, negando-se a
julgar como golpistas os generais que dirigiram o putsch do 11 de Abril
coloca-nos perante as altíssimas barreiras que a chamada
«revolução bolivariana» encontra na rota da
transformação da sociedade no quadro institucional. É,
alias significativo que 35 partidos social democratas da América Latina,
do Caribe e da Europa, reunidos em Caracas em Julho pp. tenham expressado o seu
apoio aos partidos e grupos da frente golpista Coordinadora Democratica. O
secretário-geral da Internacional Socialista levou durante a visita a
hipocrisia ao ponto de qualificar o golpe de «simples
manifestação pública de massas de dissidência
democrática».
As grandes manifestações de Outubro em Caracas, contra o governo
de Chavez e em defesa do projecto por ele simbolizado, vieram chamar a
atenção do mundo para a tensão que a luta de classes
atinge no pais. O povo da periferia inundou a capital solidário com o
seu Presidente. A esquerda mobilizou três ou quatro vezes mais gente do
que a direita. Mas esses confrontos não foram decisivos. Nem o
fracasso do
lock out
de 21 de Outubro.
Ao modelo da democracia classista da democracia representativa tradicional, o
chavismo opõe o de uma democracia participativa na qual o povo seja,
pela sua intervenção protagónica, o sujeito da
história.
Mas Chavez não conseguiu ate agora definir com clareza que tipo de
sociedade poderia resultar do seu projecto bolivariano e qual a
estratégia a adoptar para a sua concretização.
O Foro Social de Caracas, apresentado como capitulo do Foro Social Mundial de
Porto Alegre, deixou sem resposta essas questões fundamentais. Duas
tendências emergem: uma delas parte do principio de que a
«democratização e humanização do
capitalismo» é possível. O filipino Waldo Bello, do
Conselho Internacional do Foro Social Mundial, admite que a luta dos povos
pode conduzir a um «capitalismo respeitador do direito de
autodeterminação solidária dos homens e dos povos».
Essa tese continua a perder adeptos entre as forças progressistas da
América Latina. No caso venezuelano, a revolução dita
bolivariana seria virtualmente anti-capitalista, mas, como diz o
sociólogo e teólogo italiano Giulio Girardi, a busca de uma
sociedade alternativa não passaria por uma ruptura, exigindo uma longa
caminhada transformadora.
O velho debate em torno da vanguarda volta a assumir, assim, na Venezuela uma
grande actualidade. O Movimento V Republica não demonstrou
ainda capacidade para cumprir as tarefas para as quais foi criado. Ao
relançar os Círculos Bolivarianos como germe de um futuro
partido, Chavez demonstrou ter consciência de que sem uma
organização revolucionaria com estrutura partidária
não existe resposta eficaz à ofensiva permanente das
forças da direita e do imperialismo. Mas essa
organização tarda em aparecer. A dependencia do líder
carismático é, alias, uma das fragilidade do processo .
Prever o que vai acontecer na Venezuela nos próximos meses é um
exercício de futurologia que recuso. A conspiração
golpista vai prosseguir e recorrerá a todos os meios para atingir o seu
objectivo: derrubar Chavez e restabelecer em Caracas um governo
títere .
A solidariedade com o governo de Hugo Chavez é assim um dever militante
para todos quantos no mundo e sobretudo em Foros como este se batem contra o
neoliberalismo e o imperialismo.
LULA
A vitoria de Lula foi recebida em todo o todo o mundo com entusiasmo pelas
forças progressistas. A alegria justifica-se. Numa época em que
o imperialismo estadunidense se encontra em plena escalada, impondo governos e
políticas neoliberais a dezenas de países do Terceiro Mundo e
ameaçando a humanidade com uma nova guerra, o povo brasileiro elegeu um
presidente que se propõe a lutar contra a desigualdade social, a fome, o
desemprego, a promover a reforma agraria e, rompendo os mecanismos da
globalização neoliberal, fazer do Brasil uma nação
plenamente independente .
Pela primeira vez na historia do pais, chega à Presidência um
cidadão que não pertence às elites. Lula da Silva
é um operário metalúrgico com um passado de lutador pela
causa do seu povo que inspira um enorme e merecido respeito.
A sua vitória sobre o candidato do sistema expressa numa
diferença de vinte milhões de votos traduziu a profundidade do
descontentamento popular e a esperança de mudança.
Mas seria uma ingenuidade admitir que o novo Presidente entra no Palácio
da Alvorada em condições de atender desde o inicio do mandato
às aspirações daqueles que o elegeram, sintetizadas no seu
programa de governo.
Lula tem pela frente uma tarefa ciclópica. As forças da direita
e Washington já começaram alias a armadilhar o caminho que ele
vai pisar no trimestre que o separa da tomada de posse como Presidente.
Numa democracia latino-americana de estrutura presidencialista não
é indiferente que o presidente seja um procônsul dos EUA ou um
político patriota e progressista. Mas a historia recente da
América Latina apresenta-nos exemplos preocupantes das dificuldades que
Lula enfrentará. As instituições criadas pela burguesia
foram concebidas para servir aos seus interesses e objectivos. A democracia
representativa de fachada democrática, ideada na Europa, exclui a
participação popular. Não serve para introduzir na
sociedade transformações profundas do sistema
incompatíveis com a lógica do seu funcionamento. É um
instrumento do capitalismo e não uma alavanca para a sua
destruição. As lições do Chile e o rumo dos
acontecimentos na Venezuela convidam à reflexão sobre os limites
da via institucional quando um governo progressista se propõe
introduzir na sociedade reformas de conteúdo revolucionário, ou
seja desenvolver uma política de justiça social que passaria
inevitavelmente pela destruição dos privilégios da
oligarquia levando à formação de uma nova estrutura de
classes.
A esmagadora superioridade que Hugo Chavez conquistou em sucessivas
eleições não lhe garantiu no quadro institucional as
condições para a transformação da sociedade.
Mediante uma ofensiva permanente e hábil, a oposição
conseguiu minar-lhe a base de apoio parlamentar, introduziu cisões em
partidos e movimentos que o apoiavam, conquistou nos Estados a adesão de
governantes e quadros que ocupavam cargos importantes, utilizou o sindicalismo
amarelo para confundir sectores da pequena burguesia, mobilizando-os contra o
governo. Mais grave ainda pelas suas consequências foi a
acção divisionista desenvolvida nas Forças Armadas.
Oficiais generais que gozavam da total confiança de Chavez tiveram papel
destacado na organização do golpe de Abril. Em Outubro,
após o fracasso do
lock out
, voltaram a desafiar. Os oficiais no activo que se apresentam de uniforme na
Praça Altamira e dali lançam apelos insurreccionais comportam-se
como golpistas.
No caso do Brasil, Lula não disporá no futuro Congresso de uma
maioria que lhe permita fazer aprovar as reformas estruturais que anuncia.
Terá de negociar apoios sobretudo para a obtenção de
maiorias qualificadas exigidas, por exemplo, para a desmontagem do
latifúndio. Não serão fáceis as
relações do novo governo com o Movimento dos Sem Terra,
não obstante os seus membros serem tradicionais apoiantes do PT e terem
votado maciçamente em Lula. Num pais onde existe um latifúndio
maior do que a Bélgica e onde são numerosas as propriedades
fundiárias com milhares de quilómetros quadrados, o
esforço para cumprir a promessa eleitoral de concretizar a Reforma
Agraria obrigará o presidente a uma batalha permanente e
duríssima. Para se avaliar a dimensão do desafio é
útil recordar que os oficiais que há sete anos comandaram no
Pará a matança de camponeses Sem Terra de Eldorado de
Carajás foram absolvidos ou continuam em liberdade.
Lula chegou à Presidência sustentado por uma
coligação muito heterogénea. Ao lado do Partido Comunista
do Brasil, força revolucionaria com uma trajectória de lutas
épica, contou com apoios de sectores empresariais com
mundividências muito diferentes da sua. No próprio PT o desejo de
mudança não implica uma convergência de objectivos .
O desenvolvimento da campanha, marcado por um discurso cauteloso e por vezes
contraditório, explica perspectivas diferentes, no campo imperialista
sobre a política do próximo governo. O
Financial Times
, de Londres, num editorial elogioso, falou por aqueles que na City acreditam
que a Administração de Lula não representará um
perigo para o sistema. Prevê que as suas reformas não
envolverão um desafio frontal, não ultrapassando os limites de
um projecto social-democrata moderado, facilmente adaptável ao
funcionamento da globalização neoliberal. Na Casa Branca
não se compartilha o optimismo do órgão da City.
Não obstante Lula ter afirmado que respeitará os compromissos
internacionais assumidos pelo governo de Fernando Henrique, Washington teme
choques a curto prazo na área económica e financeira. A
relação com o FMI vai clarificar muita coisa. Para receber os 30
mil milhões de dólares previstos pelo acordo assinado pelo
anterior Governo, Lula se não conseguir uma revisão do
mesmo terá de tomar medidas que o tornariam prisioneiro de uma
autentica engrenagem. Em Janeiro deverá ser liberada a segunda tranche
do acordo. O texto é claro. Não haverá dinheiro se os
compromissos forem rompidos.
A posição brasileira nas negociações sobre a ALCA
suscita também preocupações. A ALCA é um projecto
de recolonização política, económica e cultural
da América Latina. A integração do Brasil nela faria do
pais um protectorado de novo tipo. Lula tem formulado criticas ao projecto dos
EUA, afirmando que «outra Alca é possível». Mas qual?
A integração na Alca seria ruinosa para um país que
apostou no Mercosul e cujo primeiro parceiro comercial é a
União Europeia.
O governo de Lula, nas suas relações com a
Administração Bush, será forçado também a
tomar posição no tocante ao acordo sobre a Base de
Alcântara, um acordo de figurino colonial que entrega praticamente o
controlo do espaço aéreo brasileiro aos EUA, permitindo a
criação de um enclave estrangeiro no seu território.
Lula não desconhece o funcionamento da engrenagem da
dominação. Denunciou-a desde a juventude, como líder
sindical. Sabe que o povo brasileiro trabalha para pagar um endividamento que
não pára de crescer. O diabolismo do sistema tem regras
rígidas. A falsa ajuda vinda sob a forma de empréstimos e
mecanismos financeiros que geram juros escorchantes suga os excedentes e
condiciona as opções estratégicas.
O Brasil é potencialmente um dos países mais ricos do mundo. Com
excepção da Rússia não existe outro que o iguale em
recursos naturais. Mas a engrenagem da dependência a que se submeteram
sucessivos governos mantém na miséria dezenas de milhões
de brasileiros e levou o pais à beira da falência .
A vitoria de Lula, repito, suscitou uma imensa esperança entre as
forças progressistas. Mas a euforia nascida da sua grande vitoria
eleitoral não deve levar à subestimação das
tremendas dificuldades que vai enfrentar antes mesmo de tomar posse da
Presidência.
CONTESTAÇÃO DO EQUADOR À AMÉRICA CENTRAL
As políticas neoliberais impostas com mão de ferro pelo
imperialismo estadunidense estão a provocar uma repulsa cada vez mais
generalizada em toda a América Latina. A presença de governos
que actuam como executantes dessas políticas não consegue impedir
a vaga de contestação que traduz o descontentamento popular.
Na Bolívia, no Equador, no Peru, os movimentos indigenistas assumem uma
amplitude que se expressa de múltiplas formas, pondo em causa o poder
de oligarquias tradicionalmente apoiadas por Washington.
A vitoria no primeiro turno das eleições equatorianas do coronel
Lúcio Gutierrez o militar que apoiou e liderou a
insurreição da CONAIE há três anos foi
interpretada na Casa Branca como uma confirmação da
profundidade do descontentamento que alastra entre os povos da região
andina. A rede de bases militares norte-americanas que cerca hoje a
Colômbia não impede que as populações da fronteira
do Equador encarem com simpatia a luta das FARC e condenem com
veemência as fumigações que envenenam as terras e os rios
da Amazónia.
Mais ao Norte, o descrédito dos governos títeres da
América Central, do Panamá à Guatemala, é hoje
transparente.
O que se passa em El Salvador merece uma atenção especial. Um
político fantoche, Flores, ocupa a Presidência e o dólar
foi imposto como moeda nacional. Mas o Partido da Frente Farabundo
Martí de Libertação Nacional, herdeiro de uma das mais
heróicas guerrilhas do Continente, é hoje a maior força
política do país. Não somente conseguiu manter a sua
unidade, derrotando os esforços daqueles que, apoiados por Washington,
pretendiam dividi-lo, como governa hoje a capital e as principais cidades do
país. Uma intensa luta de classes, também em El Salvador,
desmente a teorização dos que a consideravam superada.
O Partido da FMLN demonstra entretanto no seu combate consciência das
limitações que lhe são impostas pela luta travada no
quadro institucional. Aproveita todas as oportunidades que o sistema lhe abre,
mas dos êxitos eleitorais alcançados alguns retumbantes
não tira a conclusão de que lhe abrem o caminho para
tomada do poder. A estratégia de dominação dos EUA na
América Central, hoje autentico quintal do imperialismo, não
permitiria no actual contexto histórico que um partido como a FMLN
pudesse exercer o Poder real, mesmo que, através de
eleições viesse a conquistar a Presidência. Essa lucidez
na analise da conjuntura regional não impede a FMLN, antes pelo
contrario, de manter-se fiel ao seu ideário revolucionário.
O LABORATÓRIO ARGENTINO
Os acontecimentos ocorridos na Argentina transformaram aquele país
num laboratório de ciências sociais e políticas.
A aplicação das políticas neoliberais levou a Argentina
à falência. O presidente de turno foi derrubado pela força
do protesto popular. Em poucas semanas dois outros o substituíram na
Casa Rosada.
Onze meses transcorreram desde o «estallido social» de Dezembro do
ano passado. E continuam a acontecer na Argentina coisas nunca vistas, nem
imaginadas.
As movimentações populares nas províncias, mas sobretudo
em Buenos Aires, derrotaram todas as previsões. O povo tomou as ruas e
praças para condenar sem apelo a política neoliberal que
levara o pais à bancarrota e milhões de argentinos à
miséria e à fome.
Desta vez a repressão não funcionou. Longe de atingir o
objectivo de amedrontar as massas, contribuiu para a
radicalização do protesto. As concentrações
gigantescas, os «cacerolazos», os cortes de estradas, as grandes
marchas, as assembleias de bairro foram expressão de um espontaneismo
gerado pela revolta, mas traduziram simultaneamente o aflorar de uma
consciência colectiva em gestação, marcada por
contradições, mas assinalando o início de uma fase de
acumulação político social de grande riqueza.
Essa comovedora disponibilidade das massas para a luta, mantida ao longo de
quase um ano em circunstancias sem precedentes, é um fenómeno
que exige uma reflexão profunda. Estavam, na aparência, reunidas
condições objectivas e subjectivas para a passagem a uma
situação revolucionária. Entretanto, não se
produziu uma ruptura. O povo rejeitou a caricatura de democracia existente,
exigindo uma democracia real na qual seja ele o sujeito, o protagonista. Mas
o desejo de uma nova sociedade implica a necessidade de transformar desde a
raiz a existente. E na Argentina ficou claro que a criação de
um novo tipo de Estado e de Poder, na acepção gramsciana desses
conceitos, não é possível pela acção do
espontaneismo das massas. O Estado oligárquico burguês,
dependente, tutelado por Washington, sobreviveu ao processo de
contestação inorgânico. As assembleias populares foram
uma resposta criadora forjada pela combatividade e imaginação
das massas. Mas não constituem uma alternativa de poder. Os protestos
conduziram a uma proliferação de assembleias e estas dedicam-se a
promover novos protestos, num movimento circular que não ameaça
as bases do poder. A inexistência de um partido revolucionário
com prestigio e condições para transformar a disponibilidade do
povo para a luta em alavanca para a ruptura do sistema explica que o governo
Duhalde mantenha, com alterações cosméticas, a
política neoliberal que levou o pais a falência .
País algum na América Latina aplicou com tamanha rigidez e
subserviência as receitas do FMI. Entretanto, como se fosse palco de um
teatro de absurdo, o actual governo argentino, de mão estendida, implora
a tutela do FMI, disposto a submeter-se às suas novas exigências.
O povo da Argentina tem motivos de sobra para se sentir frustrado. O espirito
de luta de que tem dado provas abalou o sistema de exploração
existente, mas não o fez ruir. A construção de uma
vontade colectiva não pode nascer somente de uma soma de protestos e
reivindicações. Faltou uma organização
revolucionaria.
O OUTRO CAMINHO
A linha reformadora, segundo a qual o capitalismo pode ser recuperado e, usando
as instituições existentes, será possível
transformar e humanizar as sociedades por ele oprimidas é, como se sabe,
contestada por forças e partidos que negam essa possibilidade.
Para os que assim pensam a humanização do capitalismo é
inviável pela sua essência e pela lógica do seu
funcionamento. A alternativa ao sistema de dominação vigente
passaria assim inevitavelmente pela sua destruição.
A nova relação de forças resultante do desaparecimento da
URSS e da hegemonia planetária de uma única potência, os
EUA, tornou, porem, no actual contexto histórico, aparentemente
impossível o desenvolvimento vitorioso de qualquer processo
revolucionário que se proponha como meta a tomada do poder
através da luta armada.
A nova doutrina sobre «as guerras preventivas» formulada por Bush
confirma que o sistema de poder imperial dos EUA está decidido a esmagar
pelas armas qualquer país no qual identifique uma ameaça
potencial à sua estratégia de dominação.
Entretanto, as generalizações são sempre simplificadoras
e não ajudam a compreender a complexidade do movimento da historia.
O poderio americano tem limites, como o demonstram a crise económico
financeira que afecta o sistema, a procura permanente de alianças e a
sua dificuldade em enfrentar determinados desafios.
Os EUA, por exemplo, são forçados a conviver com a China,
não obstante o crescimento económico do gigante asiático
configurar a médio prazo a maior ameaça à supremacia
norte-americana. Simultaneamente Washington exclui a hipótese de
guerras de agressão imediatas contra alguns dos países que Bush
incluiu no seu «Eixo do Mal».
No próprio continente americano dois casos, aliás muito
diferentes, são encarados pelo imperialismo americano como desafios
intoleráveis: o de Cuba e o da Colómbia.
Sucessivas Administrações fracassaram na busca de
"solução" para um e outro.
O denominador comum a ambos está na demonstração de
que
é possível resistir
.
Há quatro décadas que a Revolução Cubana e as
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) resistem
a todos os esforços dos EUA para as destruir. A guerrilha do Exercito
de Libertação Nacional (ELN) também resiste.
No caso da pátria de Martí e Fidel, uma pequena ilha, bloqueada,
desenvolveu uma experiência socialista que, pelos êxitos
alcançados no plano social, é considerada um exemplo perigoso
para o conjunto da América Latina. Mas a cidadela cubana, definida como
ameaça à segurança dos EUA e cúmplice do
terrorismo, resiste com firmeza e heroísmo, confirmando que é
possível sobreviver dizendo não ao imperialismo e à
globalização neoliberal.
O caso da Colômbia não é menos complexo. Uma campanha
mundial de calunias apresenta as FARC como "a guerrilha do
narcotráfico", slogan inventado por um colaborador do
Pentágono, o embaixador Louis Stamb, para lançar o
anátema sobre uma organização revolucionaria que optou
pela luta armada e tem por objectivo a longo prazo a destruição
do capitalismo no seu pais.
Os comandantes das FARC têm a cabeça a prémio, a
Justiça norte-americana pediu a sua extradição, os seus
nomes figuram nas listas de terroristas perseguidos pelas policias da
América e da Europa.
Porquê tanta desinformação, tanta agressividade contra essa
organização revolucionaria colombiana, cujo comandante, Manuel
Marulanda, é hoje um herói legendário para milhões
de latino-americanos?
Porque as FARC continuam a desafiar vitoriosamente o sistema que pretende
destruí-las. Uma guerrilha de 47 homens transformou-se ao longo de 40
anos num exército popular de 18 mil homens e mulheres que combate em 60
frentes num pais com 44 milhões de habitantes, duas vezes maior do que a
França, vizinho da Venezuela bolivariana.
O que faz das FARC um problema prioritário para Washington é
também o exemplo, a demonstração de que em determinadas
circunstancias é possível resistir, mesmo pelas armas, a um
estado oligárquico sustentado militar e financeiramente pelos EUA.
O desafio das FARC e do ELN soa nas Américas como um apelo à
luta, ajuda a manter acesa a esperança.
A QUESTÃO CHAVE DO PODER
Declarações do subcomandante Marcos contidas numa entrevista ao
jornalista mexicano Julio Scherer vieram reactualizar o debate sobre a
antiquíssima questão em torno da antinomia «reforma ou
revolução» que antes da Revolução Russa foi
tema de grandes polémicas .
Ao estabelecer uma separação clara entre o rebelde e o
revolucionário, Marcos foi corajoso. O dirigente zapatista condena o
capitalismo que considera incompatível com as aspirações
do homem. Mas a teoria e a pratica do seu movimento, ao defender a lenta
transformação da sociedade a partir quase da base zero,
não configuram uma ameaça para o capitalismo. Este não se
sente em perigo quando os adversários afirmam pretender derrota-lo
através de reformas graduais. O projecto afigura-se-lhe utópico.
É esclarecedor que dezenas de canais de televisão tenham
transmitido para o mundo a marcha sobre a capital mexicana dos comandantes
zapatistas e o discurso que Marcos pronunciou na Praça do Zócalo.
Recordo que Raul Reyes, um destacado comandante das FARC, comentou
então: Se um simples destacamento das guerrilhas colombianas caminhasse
cinco quilómetros por uma estrada, na selva ou na montanha, não
haveria televisões a filmá-lo, mas choveriam bombas do céu.
É, alias, significativo que após uma década de combate
político, o zapatismo tenha perdido prestigio e força. O novo
código indígena mexicano é pior do que anterior.
A polémica em torno da questão do poder intensificou-se nos
últimos meses. Intelectuais que se definem como neo-marxistas, defendem
na realidade concepções anarquistas sobre o Estado.
Os anarquistas clássicos negaram sempre a importância da luta
política dos trabalhadores desde que esta fosse orientada para a
conquista do Poder.
Hoje, sobretudo nas universidades, ganha adeptos uma escola que recorre a
Marx, deturpando-lhe o pensamento, para concluir pela inutilidade da luta
contra o Estado .
Um dos mais destacados porta-vozes dessa corrente de pensamento é o
escocês John Holloway, doutorado em ciências políticas pela
Universidade de Edimburgo. Autor de um livro de êxito «Change the
world without taking the power» Holloway fala-nos do "significado da
revolução hoje" para negar a sua possibilidade.
A sua tese central aparece esboçada nas linhas que vou citar «O
apelo zapatista a construir um mundo novo obteve uma repercussão
extraordinária e essa repercussão está relacionada com o
crescimento nos últimos anos daquilo a que poderia chamar-se um
espaço do anti-poder. O referido espaço corresponde a um
debilitamento do processo que polariza o descontentamento no Estado».
Da análise de fracassos revolucionários, elaborada numa
perspectiva de psicologia social, o professor de Edimburgo tira a
conclusão de que é impossível, fora do quadro
institucional, lutar com êxito contra o capitalismo e o seu Estado.
Não valeria a pena sequer falar aqui do livro de Holloway se ele
não fosse a expressão de um pensamento negativista que
desmobiliza. A ideia de que não se deve lutar frontalmente contra o
Estado porque a tomada do poder é uma impossibilidade tem encontrado
ampla receptividade nos Foros Sociais entre adversários da
globalização neoliberal.
É significativo que o livro de Holloway tenha sido imediatamente editado
na Argentina e que o autor tenha participado já de mesas redondas em
Buenos Aires e no México, onde defendeu as suas posições.
O professor escocês considera os partidos inúteis e mesmo
prejudiciais. Concebe a luta política como uma cadeia de
acontecimentos, espontânea, de manifestações contra
cito «o fetichismo, festivais dos não subordinados,
carnavais dos oprimidos, explosões do principio do prazer».
Entretanto, à pergunta «como mudar o mundo sem tomar o
poder?», por ele próprio formulada, responde que não sabe o
que significa hoje a palavra Revolução. E acrescenta:
«este é um livro que não tem um final feliz».
Amigos
Regresso ao tema. Volto á América Latina. A uma região
na qual milhões de homens continuam a acreditar na possibilidade da
Revolução, na necessidade de lutar contra o estado opressor
tendo como meta a conquista do Poder .
Não sou pessimista. A complexidade das situações
existentes e as ameaças vindas da agressividade imperialista não
apagam o papel decisivo que os povos daquele Hemisfério estão a
desempenhar na Venezuela, no Brasil, na Argentina, nos países andinos.
Não podemos esquecer a resistência e o exemplo de Cuba, o desafio
dos combatentes das guerrilhas colombianas das FARC e do ELN.
Para lutar contra o inimigo comum temos de somar e não de dividir.
O importantíssimo papel desempenhado pelos movimentos sociais no repudio
à globalização neoliberal e à crescente
agressividade do imperialismo foi interpretado por prestigiados cientistas
políticos e sociais como prova convincente da decadência dos
partidos políticos. A fragilidade dessas analises reside no seu
caracter abrangente. Poderiam ter assinalado a insignificância da
contribuição dos partidos de esquerda para o êxito das
gigantescas mobilizações de massas de que Seattle aparece como
pioneiro. Mas em vez de reflectir sobre as causas dessa ausência
optaram por uma conclusão genérica que coincide no fundamental
com a infundida pelos epígonos do neoliberalismo: a decadência
dos partidos revolucionários seria um fenómeno
irreversível. Os erros, enormes, cometidos por partidos tão
diferentes com o PCUS, o PCI, o PCF e outros e a incapacidade transparente por
eles demonstrada na resposta aos grandes desafios da história não
permite a conclusão voluntarista de que os partidos se tornaram
inadequados como instrumentos políticos nas grandes lutas
contemporâneas, cabendo exclusivamente aos movimentos sociais assumir o
papel que eles desempenharam no passado.
O aprofundamento da crise de civilização que a humanidade
atravessa reforçaram em mim, pelo contrario, a convicção
de que os próximos anos ficarão a assinalar o fortalecimento dos
partidos revolucionários como instrumento indispensável de
grandes transformações históricas.
A era das revoluções, contrariamente ao que proclamam os
teólogos do neoliberalismo, não acabou. Como as causas que as
determinaram persistem, agravadas, os povos tendem a insurgir-se contra o
monstruoso sistema de dominação económica e social que
lhes é imposto. Seattle, Melbourne, Praga, Gotemburgo, Quebec, Davos,
Barcelona, Génova serão, entre outros protestos colectivos,
recordados como marcos da resistência crescente da humanidade a
ameaças que colocam em causa a sua própria continuidade.
Entretanto, uma percentagem considerável dessas massas que repudiam a
globalização capitalista e recusam a ordem social que ela
pretende impor na Terra não tomou ainda consciência plena de que
esse projecto é complementar de outro ainda mais inquietante. Refiro-me
à estratégia imperial que aponta para a
militarização do planeta, para o perigo de uma ditadura mundial
de contornos fascistizantes, exercida pelo sistema de poder dos EUA.
Mas, pela primeira vez na história a contestação de uma
política que afecta a totalidade da humanidade começa a encontrar
uma resposta que é também global. A rejeição
mobiliza milhões de pessoas em todos os Continentes. Nunca antes se
assistira a algo similar. Neste Foro, em Florença, temos a prova disso.
Na actual etapa histórica os movimentos sociais tem desenvolvido um
esforço que ultrapassou as expectativas mais optimistas. Mas o seu
papel a sua capacidade de intervenção tem limites
inultrapassáveis. Eles têm consciência dessa realidade. A
revolta popular, por mais ampla que seja, quando não ultrapassa o quadro
da resposta espontaneista perde ímpeto, dilui-se, não atinge a
fase que culmina com a derrota do poder e a implantação de uma
nova ordem social, sua meta natural. Os acontecimentos da Argentina confirmam
essa lição da historia.
Seria uma ingenuidade alimentar, por outro lado, a ilusão de que por si
só a dinâmica dos grandes foros onde denunciamos os males da
globalização neoliberal e debatemos a procura de alternativas
permitiria o aproveitamento integral da imensa força dos povos que
rejeitam o modelo imperial.
Os movimentos sociais continuarão a cumprir a função que
tão bem têm desempenhado. Foi deles que partiu a arrancada para a
contestação mundial à globalização
neoliberal. Mas na próxima fase caberá aos partidos
políticos revolucionarias um papel também insubstituível.
Dir-se-á que são ainda difusos os contornos desses partidos.
Será, acredito, a própria luta a defini-los.
A historia não se repete nunca da mesma maneira. Mas repito
como as causas que levaram às grandes revoluções
não desapareceram, a revolta dos explorados e dos excluídos
contra o sistema de poder que desenvolve uma estratégia
ameaçadora para a humanidade é uma defesa e uma exigência
que reactualiza os ideais da Revolução humanista. E nessa
revolta em andamento o partido revolucionário surge como necessidade.
O sistema de poder imperial e a globalização neoliberal por ele
concebida e sustentada são os inimigos concretos das forças
democráticas e progressistas que contra eles se batem pelo mundo fora,
de Seattle a Florença, das solidões andinas às pampas
argentinas, das selvas da Colômbia às minas africanas, das
misérrimas megalópolis do Brasil, da Venezuela e da Índia
às cadeias de montagem da União Europeia, dos campos
petrolíferos do Médio Oriente às cidades martirizadas da
Palestina heróica e às praias da Cuba revolucionária.
O antídoto contra a neobarbarie do império norte-americano
não será uma insurreição no estilo antigo. A
humanidade como sempre encontrará a saída para esta crise de
civilização, a maior a mais angustiante de todas.
Mais informações em
http://www.fse-esf.org/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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