por Miguel Urbano Rodrigues
Mais de 52% dos portugueses abstiveram-se de votar nas eleições
para a Presidência da República.
A cobertura mediática da campanha foi má e perversa. Jornais,
televisões e rádios desinformaram intencionalmente. A
televisão foi especialmente indecorosa. Os analistas habituais, todos
defensores do sistema, exibiram-se em exercícios de pequena
política em mesas redondas, entrevistas e artigos. Dedicaram
atenção especial ao envolvimento dos candidatos em
escândalos maiores e menores, a episódios de bastidores, a
mexericos, sondagens. Manifestaram preocupação com as
consequências da crise, mas falaram de Portugal como se fosse um
país sem classes sociais, sem trabalhadores e banqueiros, onde o
presente o futuro dependem não do povo mas das estratégias do PS
e do PSD, do Parlamento, do jogo politico dos dirigentes dos partidos que se
revezam no poder.
Houve muitos candidatos a Belém. Mas a abundância não
encontrou correspondência no debate de ideias. Quatro dos aspirantes
à Presidência comportaram-se como porta-vozes do sistema.
Coincidem na afirmação de que é indispensável mudar
alguma coisa. Mas, tal como o príncipe do "Leopardo", de
Lampedusa, desejam uma mudança cosmética para que tudo fique na
mesma.
O discurso dos candidatos, com a excepção de Francisco Lopes,
deixou transparecer a sua adesão à engrenagem responsável
pelas calamidades que atingem a humanidade e, obviamente, o povo
português. Abstiveram-se de ligar a crise, mesmo timidamente, ao
capitalismo.
Fernando Nobre, lançado por forças obscuras, tentou aparecer como
intelectual progressista, um humanista acima dos partidos. Recorrendo a um
discurso populista anti-partidos, surgiu mascarado de salvador. Enganou franjas
do eleitorado, mas na reflexão sobre a crise mundial não
conseguiu ocultar um pensamento reaccionário. Por si só, a
posição assumida perante o Orçamento do Estado é
definidora de uma opção ideológica de direita.
Defensor Moura, deputado do PS, esforçou-se por chamar a
atenção, mas passou quase despercebido. É caso para dizer
que apareceu, falou, mas não disse nada.
Não faltou também um candidato folclórico, o madeirense
Coelho.
Manuel Alegre obteve muito menos votos do que na eleição
anterior. Apoiado pelo PS e pelo Bloco de Esquerda um partido de
pequenos burgueses enraivecidos progressivamente integrado no sistema
esbracejou e gritou de Norte a Sul do País na esperança de verem
nele a personalidade providencial capaz de unificar a "esquerda".
Mas, sedento de votos dos seus companheiros do PS, não hesitou em
defender Sócrates. Repetidamente, expressou o temor de que Cavaco
destrua "o estado social", simulando ignorar que o actual
primeiro-ministro golpeou como nenhum outro as grandes conquistas sociais da
Revolução de Abril (saúde, educação,
legislação do trabalho, previdência em geral). O fracasso
da candidatura demonstrou que o povo português não esqueceu o
apoio de Manuel Alegre, como deputado e dirigente partidário, ao longo
de mais de três décadas, à política de direita
empreendida por sucessivos governos do PS.
Cavaco Silva foi, como se esperava, eleito, sem necessidade de uma segunda
volta. Seria esbanjar espaço num artigo como este comentar as
interpretações da sua votação, inferior à de
2006.
Cavaco, de início a fim da campanha, falou como personagem de
Molière. Foi monótono no discurso farisaico, egolatra, de
auto-elogio, insistindo em proclamar a sua sabedoria, o seu conhecimento do
vasto mundo e sobretudo o seu eticismo de político que vive para servir
a Pátria. Creio útil sublinhar que por si só a apologia da
obra realizada como Primeiro Ministro, isto é o orgulho do seu
desgoverno, justifica o legítimo temor de que a sua
actuação seja neste segundo mandato ainda mais negativa do que a
que o celebrizou no primeiro.
Francisco Lopes foi, repito, a excepção. Não recordo uma
campanha comunista às Presidenciais que tenha tocado tão
profundamente as bases do Partido. O discurso do candidato foi de uma seriedade
e austeridade exemplares na fidelidade a uma ideologia e um projecto cujo
objectivo é o desaparecimento do capitalismo e a
construção de uma sociedade socialista. Nos debates na
televisão e nos comícios demonstrou um conhecimento profundo dos
grandes problemas nacionais e estar consciente da inter-relação
existente entre eles e a crise global do capitalismo. Não fez
concessões ao sistema, não procurou em momento algum conseguir
votos para ganhar simpatias de camadas da pequena burguesia contaminadas pelas
engrenagens eleitorais.
Sempre foi minha convicção de que a adequação do
discurso de um candidato do PCP ao projecto comunista, o rigor
ideológico das suas intervenções é muito mais
importante do que o total de votos obtidos. Francisco Lopes não se
desviou da estratégia pela qual optou.
Os mais de 300 mil votos que recebeu representam aliás o quadruplo dos
membros do PCP, o que é revelador de que o seu discurso
revolucionário conquistou a adesão de muitos portugueses
não comunistas que repudiam o sistema e compreendem a necessidade da
luta pela sua eliminação.
Os mecanismos da desinformação accionados por uma engrenagem
mediática controlada pelo grande capital, pesam decisivamente no
comportamento do eleitorado. Mesmo no Alentejo, em baluartes do PCP, ouvi de
antigos trabalhadores da Reforma Agrária desabafos do tipo «a gente
não ganha, então para que votar?».
Portugal está na Europa e não na América Latina onde a
consciência anti-imperialista é muito forte, o que permitiu nos
últimos 15 anos a eleição de Presidentes com um discurso
anti-neoliberal, crítico da política dos EUA.
No espaço da União Europeia isso não é
possível.
As eleições promovidas no quadro de instituições
criadas pela burguesia e por ela controladas para funcionarem em
benefício exclusivo dos seus interesses, cabe dizer, do grande capital,
fecham a porta a situações como aquelas que levaram à
Presidência Hugo Chávez, na Venezuela e Evo Morales, na
Bolívia, ou mesmo Lula no Brasil.
Que fazer, então, se no horizonte a perspectiva é a do
rodízio de governos do PS e do PSD, partidos neoliberais, submissos a
todas as exigências do capital financeiro nacional e internacional?
É legítima a aspiração a uma política menos
reaccionária do que a desenvolvida por Sócrates & Companhia. A
própria dimensão da crise impõe a mudança,
contrariando a vontade da aliança tácita PS-PSD-CDS.
Mas não é previsível como e em que circunstancias tal
mudança ocorrerá. Ela dependerá fundamentalmente da
amplitude da luta de massas e não das urnas. As gigantescas
manifestações de protesto contra a política calamitosa do
governo do PS confirmaram que o movimento popular está em rápida
ascensão e que a consciência política dos trabalhadores
aumenta, forjada na luta em defesa de direitos e conquistas ameaçados
pelo Poder.
As massas não alimentam hoje a ilusão de que as coisas vão
mudar pela via eleitoral. Nada esperam do Parlamento, controlado pela direita,
embora neste a presença de uma forte bancada comunista seja muito
importante desde que funcione como alavanca da luta de massas.
A campanha eleitoral de Francisco Lopes terá, creio, contribuído
para clarificar a consciência, ainda difusa, de que a ruptura com a
política que empurra o país para a bancarrota não pode,
dentro do sistema, atingir o objectivo; exige, a prazo, uma ruptura com o
próprio sistema, isto é, o capitalismo.
Mas, acreditar numa revolução social em Portugal em prazo
previsível seria uma atitude romântica. Não existem para
isso condições subjectivas mínimas num país
semi-colonizado pelos grandes da União Europeia.
Essa realidade não justifica posturas pessimistas. As
revoluções não têm data no calendário.
São o desfecho de processos moleculares; amadurecem lentamente,
distanciadas de modelos importados, inseparáveis de factores que
são diferentes em cada sociedade.
Aliás, com poucas excepções, as grandes
revoluções irromperam e venceram impondo-se contra a
lógica aparente da História.
Os acontecimentos da Tunísia e do Egipto, o despertar repentino,
inesperado, do mundo árabe convida a uma reflexão profunda. Um
rebelde não se transforma de um dia para outro num
revolucionário, sobretudo quando nas sociedades a
contestação frontal do Poder tem um carácter
espontaneísta, pela ausência de partidos revolucionários
com forte implantação popular.
Qualquer paralelo com Portugal seria não apenas descabido, mas
ridículo. Nem por isso são menos importantes para os portugueses
progressistas as lições que essas explosões sociais
transmitem.
A mais importante é a de que as massas, quando se mobilizam e actuam
como sujeito da História contra aqueles que as oprimem, são
irresistíveis.
Vila Nova de Gaia, 7/Fevereiro/2011
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=1969
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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