OS INTELECTUAIS DE ESQUERDA
NA BATALHA DA COMUNICAÇÃO
Miguel Urbano Rodrigues
Escritores, pensadores, cientistas sociais, historiadores, jornalistas gastamos
pelo mundo afora milhares de horas na crítica e na análise do
sistema de perversão mediática hegemonizado pelo imperialismo.
Sabemos que essa engrenagem é muito mais do que um instrumento.
Transformou-se hoje numa componente decisiva do próprio poder. Sem ela
a globalização neoliberal não poderia funcionar e o
desenvolvimento da estratégia de dominação mundial dos EUA
seria inviável.
Não encontramos o mesmo interesse absorvente quando avaliamos o que faz
e não faz a esquerda no mesmo campo. Temos reflectido muito pouco sobre
o desempenho das forças progressistas nesse terreno de
confrontação.
A sua posição é de ostensiva inferioridade. Mas como
aproveita ela o seu reduzido espaço de intervenção num
sistema mediático rigidamente controlado pelo inimigo?
Mal. O que se passa na Imprensa escrita, na Televisão e na Radio
é conhecido.
Mas porventura utiliza plenamente a esquerda as imensas possibilidades que lhe
são abertas pela Internet, um terreno onde a sua
intervenção não pode ser impedida como nos outros,
controlados pelos gigantes transnacionais?
A resposta é negativa. Um balanço dessa
intervenção insuficiente está por fazer. Quando nos
reunimos em eventos com a dimensão do Foro Social Mundial e em
Conferencias menos ambiciosas como o Foro de São Paulo procedemos a
inventários de grandes problemas, elaboramos diagnósticos sobre
situações criadas pelo funcionamento da maquina da
globalização neoliberal (crises asiática, russa e
brasileira, Argentina, etc) e crimes praticados pelo sistema de poder imperial
(Bósnia, Kosovo, Afeganistão, Palestina, etc). Debatemos formas
de luta contra ameaças tão perigosas como a ALCA. Trocamos
ideias sobre a alternativa ao sistema responsável pela desigualdade
crescente entre os povos e os homens.
Entretanto, no que se refere à Comunicação ficamos na
denuncia. Chomsky e
Ignacio Ramonet, por exemplo, têm realizado um trabalho notável na
iluminação do cenário e no desmascaramento dos
métodos utilizados por aqueles que controlam os jornais e o audiovisual.
Mas quase não olhamos para nós. Não submetemos a uma
apreciação critica o positivo e o negativo da presença da
esquerda na Rede.
DOIS EXEMPLOS
Neste artigo não me ocuparei daquilo que de positivo (e muito é)
tem sido empreendido com fracos recursos e quase sempre a partir de
iniciativas modestas de partidos, movimentos sociais e
organizações culturais e sindicais e também de
esforços individuais.
Limito-me hoje aqui a chamar a atenção para um fenómeno,
se assim lhe posso chamar, que tem passado senão despercebido pelo menos
sem o comentário que merece. Refiro-me à tendência de
alguns intelectuais académicos para aquilo que traduz uma postura
arrogante e personalista. Eles acabam por aparecer como mais importantes do
que aquilo que comentam ou analisam .
Em primeiro lugar surgem como enciclopédicos. Sentem a necessidade de
se pronunciar sobre qualquer acontecimento importante ocorrido no mundo.
Actuam em todos os azimutes, como dizia o falecido general de Gaulle. Nas
áreas da ideologia, da economia, da sociologia, das ciências
exactas. Ao escreverem sobre aspectos da crise de civilização
que vivemos não conhecem limites. Onde quer que irrompa uma crise que
pelo seu significado ocupa as manchetes da televisão e da imprensa
logo aparecem a comentá-la. Na Rede, na TV, nos jornais. Seja ela na
América Latina, na África, na Europa, num remoto pais
asiático. Os efeitos negativos desse enciclopedismo são
agravados com frequência pela estrutura do texto produzido. Porque ele
é simultaneamente analítico, informativo e prospectivo. Os
académicos que assim procedem fundem o trabalho do cientista social com
o do jornalista. É um facto que a informação hoje
é instantânea. Mas, por óptimas que sejam as
condições de trabalho dos que assim procedem torna-se obvio que a
pressa em escrever sobre acontecimentos muito complexos e recentíssimos
impede que a mensagem transmitida tenha uma elevada qualidade e credibilidade.
A profundidade e a lucidez da reflexão, como síntese criadora,
é decisivamente prejudicada pela insuficiência da
informação e pela tendência do autor a misturar ambas a
cada momento num labirinto onde o leitor se perde.
Os académicos que não resistem ao apelo para intervirem de
maneira fulminante no debate mediático sobre qualquer acontecimento
polarizador da atenção mundial actuam, talvez sem disso tomarem
consciência, movidos por um sentimento de vaidade, por uma
insopitável fome de presença mediática.
Pierre Bourdieu afirmou ha tempos que o cientista social de esquerda tem o
dever de comunicar a um publico tão amplo quanto possível o
conhecimento adquirido no seu esforço laboratorial de muitos anos para
compreender e interpretar a realidade que o cerca. Fica implícito que
eticamente lhe está vedado transmitir como opinião aparentemente
sedimentada aquilo que só conhece superficialmente. Mais graves ainda
podem ser as consequências da tendência para a
especulação dos autores que a ela se entregam a partir de
conclusões assentes em informações duvidosas. O
prestigio dos seus nomes, inspirando confiança aos leitores, empresta
então credibilidade a exercícios de futurologia que a não
merecem.
Citarei hoje apenas dois casos que, a meu ver, tipificam bem essas atitudes.
O do norte-americano James Petras e o do germano-mexicano Heinz Dieterich, aliás
diferentes.
Petras, professor de sociologia na Universidade do Estado de Nova York,
é autor de duas dezenas de livros alguns dos quais representam uma
contribuição válida para o debate de grandes problemas do
nosso tempo. Conquistou como escritor marxista o respeito da juventude do seu
pais e também o de amplos sectores da esquerda na Europa, e no Terceiro
Mundo, nomeadamente na América Latina.
Identifico nele um intelectual a quem a audiência crescente, sobretudo
após a revolução informática, prejudicou em vez
de funcionar como estímulo positivo.
Escreve e fala num ritmo incompatível com a qualidade. Traz à
memória aqueles intelectuais que Arthur Koestler retractou numa
sátira famosa, scholars que peregrinam de Congresso em Congresso, de
Conferencia em Conferencia para, afinal, escutarem o seu próprio e
iluminado discurso sobre o presente e o futuro da humanidade. Nos
últimos anos caíram as suas defesas contra a futurologia e
entrou progressivamente no terreno movediço da
especulação, aventura que, ele sabe, se desenvolve à
margem de uma concepção marxista da historia. Resiste mal
à tentação de responder com exercícios prospectivos
à eterna pergunta «Que fazer?» que nos quadrantes da
esquerda nasce, torrencial, da busca da alternativa ao capitalismo
globalizado. Petras parece esquecer que o papel do intelectual no combate ao
imperialismo não pode alastrar ao terreno das previsões guindadas
a complemento rotineiro das analises.
Simultaneamente, ampliou o leque de temas e o compromisso com a actualidade
factual leva-o com frequência a subalternizar a analise, privilegiando
uma visão jornalística das situações
históricas.
Esse estilo de intervenção é acompanhado de uma
agressividade antes não identificável nos seus textos. Dela
é exemplo a diatribe que visou Perry Anderson, inspirada por um ensaio
do professor britânico propondo uma nova linha para a «New Left
Review».
Petras não somente deturpou trechos do trabalho de Perry Anderson como
emitiu na sua critica opiniões ofensivas, negando-lhe inclusive
capacidade para aplicar o marxismo à realidade histórica.
A Revista
Herramienta
reproduziu então os dois textos (1).
Não conheço pessoalmente Petras, mas a própria
projecção que os seus trabalhos alcançaram explica que
chame neste artigo a atenção para as consequências do seu
afastamento da anterior linha de intervenção política,
descomprometida com o vedetismo mediático.
Diferente, como referi acima, é o caso de Heinz Dieterich. De comum a
ambos existe apenas a tendência para uma intervenção
constante sobre temas extremamente diversificados. Mas Dieterich, actualmente
professor da Universidade Metropolitana do México, é mais
omnisciente do que Petras e fala e escreve mais.
Sem ter uma obra académica com aceitação comparável
à do norte-americano, Dieterich tornou-se nos últimos anos uma
presença desejada na América Latina pelos organizadores de
Encontros Internacionais sobre a problemática das ideias e temas
económicos e sociais de actualidade. Múltiplos sítios da
Internet divulgam artigos seus sobre uma enorme quantidade de temas.
Dieterich é um incansável divulgador de uma teoria-sistema cuja
apologia faz nas conferencias internacionais em que participa: o socialismo do
século XXI. O Novo Projecto Histórico, concebido e formulado
pelo sueco Arno Peters, que teria sido o Marx do Século XX, abre
à humanidade, segundo ele, a porta da democracia participativa. Esta
é uma ambição compartilhada por todas as forças
progressistas do mundo, mas Dieterich exprime-se como se ela estivesse ao
alcance da mão. Ignora a questão crucial do Poder. Não
perde tempo a explicar como, na busca da alternativa, será atingido o
objectivo prévio à construção do futuro: a derrota
do inimigo, a destruição futura do capitalismo.
Em duas ou três conferencias que lhe ouvi, Dieterich, para alem da
apologia de Arno Peters, cultivou um estilo de intervenção
polemico-futurista incompatível com os princípios mais
elementares do
marxismo .
Recordarei apenas um episódio. Em Março pp. no México, a
abrir a Conferencia Internacional de Solidariedade com a Colômbia e pela
Paz na América Latina, HD expressou um pessimismo total sobre o futuro
da luta das FARC-EP, pouco faltando para convida-las a depor as armas. Quanto
à Venezuela bolivariana sugeriu a renuncia de Hugo Chavez e o
recomeço da luta a partir da base. Não cabe desenrolar aqui o
novelo kafkiano exibido na tentativa de justificar as abstrusas
sugestões, mas é útil registar que a
intervenção de Dieterich provocou protestos muito generalizados,
quase um sentimento de indignação entre os participantes,
presentes para aprofundar a solidariedade a luta dos povos da Colômbia e
da Venezuela.
Essa atitude de Dietrich não pode ser negada. As suas palavras foram
gravadas como as dos demais oradores.
Entretanto, semanas depois, HD dizia já e escrevia o contrario,
voltando, após o golpe, à apologia de Chavez e à defesa do
combate travado pela heróica guerrilha de Marulanda.
A IMPORTÂNCIA DA COERÊNCIA
Dieterich emerge, com o seu vedetismo mediático, como um exemplo da
incoerência em política e do confusionismo que ela pode gerar
entre os sectores da esquerda que são influenciados por discursos como o
seu e similares.
Seria uma conclusão falsa inferir do que escrevi que a minha
posição é pessimista quanto ao comportamento global dos
intelectuais de esquerda na batalha da comunicação.
Admito pelo contrario que ela tem melhorado à medida que se aprofunda a
consciência de que a estratégia do sistema de poder imperial dos
EUA -- na qual a globalização neoliberal cumpre um papel
instrumental importantíssimo -- configura uma ameaça à
própria sobrevivência da humanidade .
Mas precisamente porque a batalha das ideias me aparece como fundamental no
âmbito da batalha global contra o capitalismo imperial, creio que aqueles
que nela intervêm directa ou indirectamente têm o dever de imprimir
o máximo de autenticidade à sua reflexão sobre a
intervenção dos intelectuais progressistas, sobretudo quando se
assumem como revolucionários.
O charlatanismo e o exibicionismo dificultam muito a nossa luta. Já a
vaidade é mais fácil de corrigir nos formadores de opinião
demasiado sensíveis à sua própria popularidade.
São felizmente muito numerosos os exemplos de académicos e
pensadores que na esquerda, antes da Era Internet, deixaram memória
não apenas pela criatividade no campo das ideias mas pela sua capacidade
de transmitir o conhecimento acumulado com modéstia permanente.
Recordo entre outros como inesquecíveis produtores-transmissores de
saber os franceses Fernand Braudel, Charles Betelheim e André Gorz, o
inglês Eric Hobsbawm e os norte-americanos Paul Sweezy e Leo Huberman e
quase todo o grupo dirigente da
Monthly Review
.
Hoje, quando a Rede começa a pesar decisivamente na
formação de opinião e, portanto, no rumo da Historia,
sinto a tentação de apontar como exemplar o que nela aparece de
criadores-comunicadores com o nível do português José
Saramago, do uruguaio Eduardo Galeano, do canadiano Michel Chossudovsky e do
norte-americano Noam Chomsky. São diferentíssimos. Os que os
lêem ou escutam podem não perfilhar muitas vezes opiniões
suas. Mas na esquerda inspiram todos um respeito e uma admiração
irrestritos. Nas suas mensagens o talento e o saber são fecundados pelo
eticismo e pelo humanismo.
Tentemos senão imita-los, porque não são imitáveis,
pelo menos extrair lições da forma como intervêm na grande
batalha em que os intelectuais de esquerda se acham envolvidos.
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(1) Revista
Herramienta
, Buenos Aires, Argentina, Fevereiro de 2001.
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