por Miguel Urbano Rodrigues
Quando o homem no Neolítico criou as primeiras
civilizações na Mesopotâmia, no Egipto, na China, ocorreram
crises cujo desfecho foi a destruição de quase todas.
A única grande civilização que, transformando-se,
sobreviveu até à actualidade foi a que surgiu e se desenvolveu na
China.
Todas as outras desapareceram, mas muitas deixaram sementes que floresceram
numa multiplicidade de povos.
As causas da morte das civilizações, na acepção
ampla e restrita da palavra suscitam polémicas entre os historiadores. A
decadência de algumas prolongou-se ao longo de séculos, marcada
por crises devastadoras.
Assim aconteceu com Roma e com outras cujas elites dirigentes foram incapazes
de compreender que as suas crises endémicas se agravavam menos em
consequência de ameaças exteriores do que pela própria
dinâmica de rupturas sociais internas.
Obviamente, as generalizações são perigosas. Diferiram
muito os processos de ruptura civilizacional na Pérsia
Aqueménida, o primeiro estado a aspirar ao domínio do mundo
conhecido, no subcontinente indiano, e na Europa Ocidental após a
desagregação do Império Romano do Ocidente.
Também na Ásia, morto o macedónio Alexandre, o seu
império esfacelou-se quase imediatamente. Mas a
civilização helenística implantou-se numa área
vastíssima, do Mediterrâneo Oriental às fronteiras da China
e da Índia, deixando marcas profundas no caminhar dos povos.
Na Europa Ocidental, a tomada de Roma pelos Hérulos, em meados do
século V, não significou o fim de uma civilização
ao contrário do que afirmam muitos historiadores. Na Itália, nas
Gálias, na Península Ibérica, a herança de Roma,
golpeada, não desapareceu numa época de grande desordem. A Alta
Idade Media, como afirmam Henri Pirenne e Marc Block, não foi um tempo
de escuridão, uma fase de regressão absoluta. Aliás, no
Mediterrâneo Oriental, na área onde se falava grego,
Bizâncio continuou por mil anos a ser pólo de uma grande
civilização.
A noção de civilização confunde-se por vezes com a
de cultura. Uma cultura nem sempre coincide com a existência de uma
civilização. Os Mongóis que, na sua aventura
irrepetível dominaram o mundo por um tempo breve do Pacifico ao
Adriático, saíram das estepes com uma cultura própria, mas
não criaram uma civilização. Nenhum outro povo cometeu, no
espaço de décadas, um genocídio de
proporções comparáveis. Na fase da conquista
destruíram tudo o que encontraram no mundo dos sedentários. Mas
durou pouco a violência dos gengiskanidas. Na China sinizaram-se, no
Irão islamizaram-se e foram absorvidos pela cultura persa. Em ambos os
casos, o nómada, assimilado pela cultura dos vencidos, tornou-se o seu
maior defensor.
UM FLAGELO CULTURAL
As grandes crises europeias não desencadearam, desde o fim do
Império Romano do Ocidente, crises de civilização.
A grande peste do século XIV e a Guerra dos 30 Anos, que despovoou a
Alemanha, a as hecatombes da I e II Guerras Mundiais, foram acontecimentos
trágicos com consequências políticas, sociais e
económicas que alteraram profundamente a vida na Europa. O mesmo se pode
afirmar da Revolução Francesa de 1789 e da
Revolução Russa de Outubro de 1917. De ambas resultaram rupturas
que destruíram estruturas seculares, modificando drasticamente as
relações sociais.
Mas aquilo a que se pode chamar o "modelo" civilizacional permaneceu,
no essencial. O próprio Lenine sublinhou mais de uma vez que a
Rússia revolucionária não podia abdicar da herança
cultural acumulada ao longo dos séculos, incluindo a da burguesia. Para
ele era fundamental a incorporação na nova cultura desse legado
da História da humanidade.
No último quartel do século XX ocorreu um fenómeno com
implicações, pouco estudadas, que passam ainda despercebidas a
historiadores e sociólogos. A vida na Terra, em muitos aspectos, mudou
mais em trinta anos do que nos duzentos anteriores.
O homem realizou prodigiosas conquistas. Mas a revolução
técnico-científica, hegemonizada por um sistema de poder
desumanizado, foi colocada a serviço de um projecto imperialista que,
para sobreviver, exige, na prática, a transformação do
homem num ser passivo, robotizado.
Esse objectivo é uma consequência da crise estrutural do
capitalismo. A resistência dos povos às guerras e crimes das
ultimas décadas dela inseparáveis foi atenuada, quase
neutralizada, pela imposição, em escala planetária, de uma
cultura na realidade contra-cultura que é componente
importante da crise de civilização.
O pólo de tal cultura localiza-se nos Estados Unidos onde ela foi gerada
e donde irradiou, contaminando o Canadá, a Europa, a América
Latina, o Japão, a Ásia Oriental, a Austrália e hoje a
quase totalidade dos povos.
A interacção entre os mecanismos do capitalismo e esse
fenómeno cultural, epidémico, é subtil, sendo
difícil de identificar em muitas das suas manifestações. O
objectivo do capital é a sua multiplicação ininterrupta; o
acesso do homem à felicidade possível não lhe interessa.
A presença e os efeitos da contra-cultura estadounidense
qualificada de mc world culture por alguns sociólogos são
identificáveis em áreas muito diferenciadas, abrangendo, pode-se
afirmar, a totalidade da vida.
A ofensiva por vezes quase invisível, mas com frequência
avassaladora, manifesta-se nas frentes política, social,
económica, militar e, evidentemente, na cultural.
Sem o controlo quase absoluto dos meios de comunicação social e
dos audiovisuais pelo sistema de poder a disseminação
epidémica da contra-cultura exportada pelos EUA, país onde,
registe-se, coexiste em conflito com a cultura autêntica, seria
impossível.
A televisão, o cinema, a rádio, a imprensa escrita e, agora,
sobretudo a internet cumprem um papel fundamental, imprescindível, no
avanço de uma contracultura que nos países industrializados
alterou profundamente nos últimos anos o quefazer dos povos e a sua
atitude perante a existência. A mudança é transparente
actuando como um vendaval sobre adultos, adolescentes e crianças.
A construção do homem formatado principia na infância e
exige uma ruptura com o emprego tradicional dos tempos livres. O
convívio tradicional, incluindo o do ambiente familiar, é
substituído por ocupações lúdicas frente à
televisão e ao computador, com prioridade para jogos violentos e filmes
que difundem a contracultura.
As horas dedicadas à leitura de obras que transformam o conhecimento em
cultura passaram a ser escassas ou inexistentes. Com a peculiaridade de os
escritores de qualidade, que formam, serem trocados por romancistas
light,
alguns apresentadores de televisão, e pelas revistas de fofocas.
No projecto de vida, a maioria dos jovens tem hoje como meta o sucesso
mediático, ser colunável, ganhar uma celebridade efémera
mesmo que para tal abdiquem da dignidade.
As novelas da TV desempenham neste panorama um papel importante como factor de
embrutecimento do espírito.
A contracultura actua intensamente no terreno da música, da
canção, das artes plásticas. Apreciar uma sinfonia de
Beethoven, um concerto de Bach tornou-se atitude rara. A contra-música
que empolga hoje multidões juvenis é a de estranhas personagens
que gritam e gesticulam exibindo roupas exóticas em gigantescos palcos,
numa atmosfera ensurdecedora, em rebeldia abstracta contra o vácuo.
O jornalismo degradou-se. Transmite-se a mensagem de uma falsa objectividade
para ocultar que os media, ao serviço da engrenagem do poder,
são, com raras excepções, instrumentos de difusão
da ideologia dominante. A mediocridade dos jornalistas reflecte aliás a
queda do nível cultural.
No caso português, o 25 de Abril abriu as portas do ensino
secundário e universitário a centenas de milhares de jovens. Mas
a instrução não gera automaticamente cultura. Ao sistema
somente interessa formar quadros que sirvam com docilidade o capital. Das
universidades saem anualmente fornadas de moços que em matéria de
saber são analfabetos com diploma.
Obviamente, o homem formatado que traz à memória os
robotizados das utopias de Huxley e Orwell não tem
consciência da sua condição de indivíduo manipulado.
Quase se orgulha de ser muito diferente das gerações que o
precederam
REESCREVER A HISTÓRIA
A contra-cultura estadounidense, dominadora, não poderia ter-se
implantado em escala mundial sem uma campanha, paralela, desenvolvida
simultaneamente. Em Washington os ideólogos do sistema perceberam que
era indispensável reescrever a História. Por outras palavras,
falsificá-la. Uma máquina mediática gigantesca empreendeu
essa tarefa. O cinema, a televisão, a imprensa, a internet, com a
cumplicidade de intelectuais das grandes universidades, das Forças
Armadas, de uma legião de jornalistas, de membros do Congresso e de
destacadas personalidades da Finança, foram os instrumentos utilizados
para ocultar ou deformar a História profunda de que nos fala Lucien
Fèbvre, e substitui-la por uma História inventada, ficcional, que
corresponda ao interesse e fins do capital.
A falsificação é a palavra adequada
principia pelas antigas civilizações mediterrânicas. Em
filmes famosos, Hollywood apresentou da Grécia de Péricles, da
Pérsia de Dário, da Roma de César, heróis que
transmitem sobre a democracia, a liberdade, a violência, o progresso
económico, até o amor, conceitos e ideias supostamente
progressistas, usando o discurso do americano "ideal" do
século XX.
Essa agressão à História é particularmente nociva e
perigosa para as massas quando incide sobre temas e personagens
contemporâneos. A versão estadounidense da II Guerra Mundial, por
exemplo, é uma grosseira deturpação da História. E
o objectivo foi em grande parte atingido. Mundo afora centenas de
milhões de pessoas crêem que foram os Estados Unidos, em defesa da
liberdade e da civilização, quem, em batalhas épicas,
enfrentou e destruiu o poder militar da Alemanha nazi. O papel desempenhado
pela União Soviética teria sido secundaríssimo. A mentira
é tamanha que episódios irrelevantes nos combates da
Sicília ou numa ofensiva do general Patton são guindados a
epopeias da humanidade, enquanto as batalhas de Stalinegrado e Kursk merecem
atenção mínima.
O anticomunismo primário tem sido ao longo de décadas uma
prioridade nessa permanente ofensiva do sistema do capital para reescrever a
História.
A satanização do socialismo e a apologia do capitalismo como
sistema supostamente democrático, e até progressista, são
ingredientes básicos no massacre mediático orientado para a
formatação de um tipo de homem alienado, inofensivo para a
engrenagem do poder.
Em Portugal a classe dominante tem-se comportado como discípula aplicada
dos mestres do imperialismo estadounidense e europeu.
Diariamente os canais de televisão promovem mesas redondas que
falsificam grosseiramente a História. Uma corte de
"analistas", apresentados como especialistas em matérias que,
afinal, ignoram, palram sobre a totalidade do conhecimento humano, desde a
actual rebelião do mundo árabe às cruzadas pela
"democratização" do Afeganistão e do Iraque,
passando pelo buraco do ozono e a poluição dos oceanos.
Seria um erro subestimar os efeitos negativos dessa torrente de disparates e
mentiras. Ela contribui para confundir, e enganar uma parcela significativa do
povo português.
Sem a anestesia da consciência social seria impensável que no pais
do 25 de Abril a memória do general Vasco Gonçalves seja
rotineiramente insultada por colunistas de lugar cativo dos grandes
diários, enquanto aventureiros da politica e cavalheiros da
extrema-direita receberam a Grã Cruz da Ordem da Liberdade de sucessivos
Presidentes da República.
Que fazer, então, perante um panorama desolador, numa época de
crise quando uma criatura como o Primeiro-ministro, porta-voz oficial da
contra-cultura, ofende a palavra democracia exibindo-se como seu defensor e
intérprete?
Lutar, lutar, lutar, em Portugal e no vasto mundo, sem sermos condicionados
pelo calendário da vitória distante.
A humanidade resistirá à contra-cultura que a ameaça. No
caminhar da História, o capitalismo contém as sementes da sua
própria destruição.
Vila Nova de Gaia, Março/2011
O original encontra-se em
http://www.odiario.info/?p=2002
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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