Globalizar a luta
contra a barbárie imperialista
por Miguel Urbano Rodrigues
Comunicação apresentada em Santiago do Chile,
no seminário
«Allende Vive»,
em 10 de Setembro de 2003
No Fórum Social Mundial e nos Fóruns Sociais Europeus, algumas
personalidades transmitiram a ideia de um suposto antagonismo entre movimentos
sociais e partidos políticos.
Essas manobras representam um serviço prestado ao imperialismo.
A complementaridade do papel que os movimentos sociais e as
organizações partidárias revolucionárias
desempenham nas grandes lutas actuais no âmbito da crise de
civilização que a humanidade vive é cada vez mais
necessária. O debate sobre o tema da relação
movimentos-partidos perde todo o significado quando resvala para o terreno da
pequena política.
Sendo ficcional a antinomia movimentos-partidos, a nossa reflexão deve
ser orientada para os objectivos e o tipo de intervenção das
forças empenhadas no combate à globalização
neoliberal. Gerada pelo capitalismo , a globalização como
reconhecem Kissinger e Thomas Friedman não poderia sobreviver
hoje sem o «punho invisível» (o poder militar) que a sustenta.
O imperialismo, fase ultima do capitalismo, garante agora a continuidade do
sistema que o criou.
Partidos e movimentos não são enteléquias, forças
abstractas e uniformes. Para se avaliar a sua participação na
história, o que importa é saber o que pretendem e como actuam.
Uma linha divisória cada vez más nítida é a que
separa os movimentos e partidos que encaram a transformação da
historia sob uma perspectiva revolucionária e os partidos e movimentos
que adoptam uma posição muito diferente .
Clivagens hoje existentes entre forças sociais que rejeitam o projecto
desumanizante da globalização neoliberal encontram a sua
expressão prática em comportamentos que ao longo dos
séculos, em crises de grande complexidade, traduziram
concepções divergentes sobre a evolução da
humanidade.
Nem todos os que condenam a globalização neoliberal identificam
no desaparecimento do capitalismo uma necessidade histórica.
ENTRE O TUDO E O NADA
Marx atribuiu sempre uma grande importância à
relação entre a luta quotidiana e o objectivo final, entre o
factor objectivo das contradições sociais e o subjectivo do
desejo de revolução. A vontade de revolução
é dialéctica, nunca mecânica.
Mas a impossibilidade da revolução a curto prazo não
implica o abandono da meta final.
Neste inicio do século XXI a hegemonia militar, económica e
política do sistema de poder imperial dos EUA empurra muitos dos que a
condenam para um pessimismo que os leva a considerar a
transformação radical da sociedade uma impossibilidade absoluta.
Admitem que, sendo inviável em data previsível o socialismo, o
mal menor será o convívio com um capitalismo menos agressivo e
perigoso do que o imposto pela globalização neoliberal.
Essa atitude não é original. O conhecimento das polémicas
travadas na esquerda europeia, no inicio do século XX, em torno de
temas fundamentais de estratégia e táctica é, creio,
muito útil para as actuais gerações.
Sabemos que a história nunca se repete da mesma maneira. Mas o choque
de ideias então ocorrido foi definidor de opções
decisivas no posicionamento perante o capitalismo. Ajuda, portanto, a
clarificar o debate sobre a luta contra o monstruoso sistema de poder que
hoje ameaça a humanidade.
Desde o final do século XIX, e mais acentuadamente após a
derrota da revolução russa de 1905, a Social Democracia
Alemã ao tempo marxista e com grandes tradições
revolucionarias começou a revelar a sua tendência
reformista. As bases do partido, o mais respeitado da Europa como
organização de esquerda, mantinham uma perspectiva
revolucionaria. Mas a direcção, progressivamente, distanciou-se
do Programa e da praxis que o concretizava.
Porquê? Porque acreditou que a revolução era
inatingível.
Edward Bernstein foi o teórico da mutação
ideológica, condensada na teoria segundo a qual o movimento é
tudo e o resto nada.
No tocante ao trabalho político, essa opção levou o
Partido a adoptar posições conciliadoras no diálogo com
a burguesia, tanto no Parlamento como na área sindical. O Partido
Social Democrata Alemão foi o precursor das estratégias que
preconizam a transformação da sociedade exclusivamente pela via
institucional.
Marx e depois Lenine atribuíam uma grande importância às
lutas reivindicativas da classe operária. Elas surgiam-lhes como um
complemento indispensável da acção revolucionária.
Muito diferente era a perspectiva dos reformistas alemães e
austríacos. O imediato, ou seja as lutas por novas conquistas na
área social e a consolidação das existentes, aparecia a
Bernstein e aos seus seguidores como um resultado inelutável do
movimento da historia. O complemento passou a fim estratégico e a ideia
de revolução, adiada para as calendas gregas, foi arquivada.
Na pratica ruíram as pontes entre o programa revolucionário e o
objectivo final, contemplado como utopia.
Da história do Partido Social Democrata Alemão, que até
à Revolução Russa apareceu aos trabalhadores europeus
como a mais prestigiosa das organizações marxistas do mundo,
fala-se hoje pouco. É uma história incomoda para os seus actuais
dirigentes porque ilumina o percurso de um partido que, tendo surgido de um
projecto revolucionário, desembocou na adesão final ao
capitalismo que se propunha destruir.
A caminhada foi lenta. O divórcio entre a teoria marxista e a
prática que a negou não se tornou durante muitos anos
transparente para a maioria dos militantes.
Por isso mesmo os textos de Rosa Luxemburgo sobre o tema não
perderam actualidade pela riqueza dos ensinamentos neles contidos.
[1]
Criticando os economicistas, G. Lukács lembrava que «a categoria da
totalidade, o predomínio universal e determinante do todo sobre as
partes é a essência do método que Marx tomou de Hegel e
colocou de modo original na base de uma ciência totalmente nova (...) O
que há de fundamentalmente revolucionário na ciência
proletária não consiste somente no facto de contrapor os
conteúdos revolucionários à ciência burguesa, mas
principalmente na essência revolucionaria do próprio
método. O predomínio da categoria da totalidade é o
portador do principio revolucionário na ciência».
Um dos maiores méritos de Rosa Luxemburgo é precisamente o
recurso ao método dialéctico de Marx para
interpretação da história e análise da sociedade da
sua época. Introduzindo-o no centro da luta de classes, ela fazia dele
um instrumento de construção do futuro.
Nos quadrantes da esquerda, muitos intelectuais temem hoje empregar a palavra
revisionismo na critica a personalidades e forças políticas que
apresentando-se como renovadoras do marxismo, participam activamente na
satanização do comunismo.
Esse medo das palavras não se justifica. O marxismo ortodoxo não
significa uma adesão acrítica à obra de Marx. É,
como sublinhou Lukács, a convicção cientifica de que o seu
método de investigação «pode ser elaborado,
desenvolvido e aprofundado somente no sentido dos fundadores e que todas as
tentativas para o superar ou «melhorar» conduziram, e não
poderia acontecer outra coisa, a achatá-lo, trivializá-lo e
converte-lo em ecléctico».
A que propósito vem isso, perguntarão vocês?
Creio que a defesa do método de Marx é mais do que nunca
indispensável num momento em que o debate em torno da questão
do Poder se torna muito polémico sobretudo na América Latina.
Envernizadas, as velhas teses bernsteinianas são assumidas noutro
contexto e com outra linguagem por movimentos que combatem a
globalização neoliberal e sobretudo por intelectuais com
prestigio internacional.
São conhecidas as posições do sub comandante zapatista
Marcos sobre a diferença entre o revolucionário e o rebelde,
categoria que assume por se identificar com a sua concepção
transformadora do mundo. Na perspectiva por ele esboçada também
o movimento seria quase tudo. A questão da luta pelo poder é
subalternizada tal como a importância do Estado como instrumento de
dominação de classe.
A adesão de personalidades como Ignacio Ramonet, Pablo Gonzalez Casanova
e escritores de prestígio mundial às teses humanistas, mas
não marxistas de Marcos, traduz a inegável receptividade que
elas encontram em sectores intelectuais progressistas. Seria um erro
subestimar o peso dessa tendência reformadora, que apresenta matizes
diferentes.
Quando alguns dirigentes de movimentos de esquerda, criticando os males do
capitalismo, afirmam que a questão do Poder se tornou
secundária, essa atitude significa na prática que, sem disso
tomarem consciência, pretendem reformar o capitalismo e não lutar
pela sua destruição.
Não estamos perante uma questão académica. Para aqueles
que se mantêm fiéis ao legado de Marx o objectivo final é
uma questão pratica e não um tema para especulação.
A luta, no âmbito das instituições, pela conquista de
parcelas do Estado capitalista e pela sua democratização, tal
como a luta reivindicativa em todas as frentes, deve ser encarada como tarefa
permanente. É absolutamente indispensável. Mas esse
esforço, longe de ser incompatível com o combate pelo objectivo
final a transformação revolucionária da sociedade
deve estar subordinado a ele.
Parafraseando Bernstein, Rosa dizia que «o movimento como fim, em si
mesmo, não é nada para a classe operária; o objectivo
final é tudo».
Transcorridos 150 anos, a advertência continua a ser válida.
OS FALSOS RENOVADORES
A linha divisória que separa revolucionários e reformadores
nem sempre é fácil de traçar.
No campo daqueles que, rejeitando o neoliberalismo e o imperialismo,
não se definem claramente pela destruição do capitalismo
coexistem tendências muito heterogéneas.
Um importante sector admite que através da conquista das
instituições criadas pela própria burguesia será
possível transformar gradualmente a sociedade. A experiência
fracassou no Chile da Unidade Popular. Num contexto muito diferente é
retomada hoje na Venezuela bolivariana e, no âmbito de uma aliança
ampla, mas frágil, de forças contraditórias, no Brasil de
Lula. No Equador, Lucio Gutierrez já renunciou ao seu projecto
progressista, atraiçoando aqueles que o elegeram. Na Argentina e no
Paraguai desenvolvem-se duas novas experiências. Neste ultimo
país Nicanor Duarte anuncia reformas de conteúdo
revolucionário. Mas o seu passado, como ministro de governos
reaccionários, foi o de um político do sistema, o que
desaconselha esperanças prematuras.
Nas Universidades e com implantação em meios intelectuais,
conquistou adeptos outra tendência que, a partir de um discurso
aparentemente revolucionário, acaba por negar a própria
possibilidade de revolução, na medida em que desconhece ou
subalterniza a luta de massas, e apresenta como alternativa à luta pelo
poder e contra o imperialismo, projectos de contornos messiânicos de
matizes neoanarquistas.
Citarei como exemplos a doutrina desmobilizadora do italiano Toni Negri
sobre
«O Império»
, e o livro
«Mudar o Mundo sem tomar o Poder»
, do escocês John Holloway, actualmente professor da Universidade de
Puebla, no México.
Ambos se apresentam como marxistas, mas ambos dele se distanciam pela
concepção do mundo e das formas de luta contra o capitalismo.
Na realidade o dualismo de Marx não é outra coisa senão o
dualismo do futuro socialismo e do presente capitalista, do capital e do
trabalho, da burguesia e do proletariado.
Obviamente o marxismo é, por definição, uma ciência
em permanente renovação. Quando os dirigentes comunistas optam
pelo imobilismo, excluem o povo da participação, transformam, o
partido numa maquina burocrática, e o dogma substitui a criatividade, o
resultado é uma caricatura do marxismo. Na implosão da URSS e no
regresso do capitalismo à Rússia temos um exemplo
terrível das consequências de políticas que, negando Marx
e Lenine, transformaram o marxismo numa doutrina estática, fazendo
dela dogma do Estado.
Mas a tragédia da URSS não pode servir de
justificação às tentativas de grupos que, invocando a
necessidade de renovar o marxismo, têm contribuído na pratica para
o enfraquecimento do movimento comunista internacional.
Na Itália o Partido Comunista Italiano foi, em poucos anos, transformado
pelos falsos renovadores num partido social democrata que se aliou à
burguesia. A renovação significou a renúncia ao marxismo,
a aceitação do neoliberalismo e a cumplicidade com o imperialismo.
Na França o Partido Comunista, sob a bandeira da
«mudança», participou de um governo socialista, o de Jospin,
que privatizou em três anos mais empresas do que os dois governos de
direita anteriores e deu o seu apoio a agressão imperialista contra a
Jugoslávia.
Não é por acaso que a direita, na América como na Europa,
oferece a mais ampla cobertura a grupos e personalidades que, declarando-se
marxistas, iniciam campanhas contra partidos revolucionários,
proclamando a necessidade de os renovar. O capitalismo alinha logo com os
«bons comunistas» contra «os maus comunistas». Isso
aconteceu recentemente em El Salvador e em Portugal. Mas em ambos os casos a
máscara dos falsos renovadores caiu; ocultava o rosto de aspirantes a
alianças com a burguesia.
A juventude, desinformada por um sistema mediático perverso, é
levada a crer que estes sismos que atingem partidos marxistas são
um fenómeno novo, inseparável da «falência do
comunismo» como projecto. Mas tal conclusão carece de fundamento
histórico.
As polémicas de Lenine e Rosa Luxemburgo com Bernstein e Kautsky
[2]
conservam actualidade permanente precisamente porque se repetiram desde
então ciclicamente os movimentos que partiam da
convicção de que a sociedade pode ser radicalmente transformada
a partir de reformas graduais introduzidas no capitalismo. O revisionismo e o
reformismo não desapareceram com a vitória da
Revolução Russa de Outubro. Mudou o estilo, mas não o
objectivo. Naturalmente, a implosão da URSS e a incapacidade do PCUS
para edificar uma sociedade socialista que respondesse ao projecto de
Marx contribuíram muito para estimular na esquerda o discurso
reformista. Mas como tendência ele foi um fenómeno geracional.
Repetiu-se de geração em geração.
UMA CRISE DIFERENTE
Existe consenso entre as forças que combatem a
globalização neoliberal de que a humanidade enfrenta hoje uma
crise de civilização que, pelas suas características,
não tem precedentes.
Mas o reconhecimento dessa evidência coincide com a consciência de
que as vítimas da crise não se encontram ainda preparadas para
combater organizadamente os responsáveis por ela.
A ausência de uma Declaração Final nas três
reuniões do Fórum Social Mundial confirma a dificuldade no
aproveitamento para o combate do imenso potencial que o protesto dos povos
contra as consequências do neoliberalismo expressa.
Faz mais de um século que o imperialismo, na sua luta contra
trabalhadores, quando confrontado com questões fundamentais, supera
contradições económicas que opõem os diferentes
centros de poder e actua globalmente.
O mesmo não ocorre no campo das forças que combatem a
globalização neoliberal. São numerosos os movimentos e
organizações progressistas que ainda acreditam na possibilidade
de um capitalismo humanizado através de reformas concretizáveis
pela via institucional. Essa atitude manifesta-se sobretudo na timidez das
posições assumidas perante o imperialismo e sobretudo o sistema
de poder dos EUA. Teorias como a de Toni Negri, negam hoje a própria
existência do imperialismo. Segundo o autor de
«O Império»
, o imperialismo, transformado-se e diluindo-se, não poderia já
contar com um centro de poder hegemónico, porque os EUA não
estariam mais em situação de cumprir essa função.
A confusão gerada por doutrinas desmobilizadoras como essa beneficia
obviamente a estratégia de dominação mundial de um
sistema de poder que, mediante uma política de
militarização da Terra, começa a adquirir contornos
fascizantes.
O imperialismo é na pratica o modo de ser do capitalismo. A
esperança de que este possa evoluir, humanizando-se, e pretenda reduzir
o fosso existente entre os exploradores e os explorados revela desconhecimento
da lógica do sistema. Mas o discurso sobre a paz entre o capital e o
trabalho continua a enganar milhões de pessoas. Quando Lula em Davos
é abraçado por Soros e pelos dirigentes do FMI, e quando Tony
Blair o chama a Londres com Kirchner e faz para ambos a apologia da Terceira
Via gera a confusão, e cria no Terceiro Mundo ilusões sobre a
possibilidade concreta de reformar o mundo mediante políticas como a
do actual governo brasileiro aplaudidas pelo imperialismo.
A burguesia, como classe, não pode assumir prolongadamente uma
posição progressista, porque ela é vocacionalmente
contra-revolucionária. Daí a impossibilidade de uma reforma do
sistema que, exclusivamente pela acção dos movimentos, possa
conduzir à negação do capitalismo.
O discurso de matizes messiânicos que sataniza os partidos
revolucionários atribuindo a um mítico Movimento dos Movimentos
a tarefa de libertar a humanidade das forças que a oprimem não
incentiva á luta organizada. Desmobiliza.
A consciência de que o imperialismo é o grande inimigo e tem de
ser combatido globalmente avança, mas muito lentamente. Por isso mesmo
a releitura dos clássicos do marxismo é utilíssima.
Em congressos e seminários, nos debates sobre a obra de Marx e o seu
pensamento não se valoriza suficientemente um aspecto da sua
herança: a exigência da compreensão da historia à
luz de um método que exige a colocação dos problemas em
situações temporais concretas.
Com frequência a atenção concentra-se em grandes temas
abstractos, desvinculados de desafios contemporâneos.
Um dos maiores méritos do húngaro István Meszaros, um
marxista criador, terá sido o de, aplicando o método do autor de
«O Capital»
, nos alertar para uma faceta pouco estudada da actual crise do
capitalismo. Diferentemente das anteriores, ela não é
conjuntural, tornou-se estrutural.
O sistema do capital funciona através de uma rede labiríntica de
contradições que não consegue já superar. Atingiu
o auge do poderio. Mas o equilíbrio do binómio antinómico
consumo-destruição, imprescindível à
reprodução do capital rompeu-se. A globalização
capitalista como sublinha Mészaros accionou forças
que colocam em causa não somente a incontrolabilidade do sistema por
qualquer processo racional, mas também e simultaneamente a sua
própria incapacidade para cumprir as funções de controle
que se definem como a sua condição de existência e
legitimidade».
Como a teoria da acumulação, alavanca do capitalismo, não
funciona como antes, as forças mais retrógradas do sistema de
poder dos EUA idearam e tentam executar um projecto de dominação
e controle perpétuo do planeta, que configura ameaça à
humanidade. O novo imperialismo planetário, prisioneiro de um circuito
infernal produção-destruição, não pode
subsistir sem as chamadas «guerras preventivas» que alimentam as
caldeiras do capitalismo senil.
Sendo global a crise económica, política, militar, social,
cultural e ambiental a resposta à estratégia neofascista
que, através do controle dos recursos naturais e portanto das guerras
preventivas, está a empurrar a humanidade para o abismo
terá de ser também global.
Esse o grande desafio, pois não se encontram ainda reunidas as
condições imprescindíveis à
mobilização dos povos para a luta organizada e permanente
contra um inimigo muito mais vulnerável do que parece.
Merece reflexão o facto de durante o breve período de algumas
semanas, antes da agressão ao Iraque e durante a primeira quinzena de
Abril, dezenas de milhões de homens e mulheres terem saído
às ruas em cidades de todos os Continentes para condenar a guerra. A
indignação dos povos francês, alemão e russo,
tornou possível que governos aliados do imperialismo estadunidense e
seus cúmplices dele se demarcassem na ONU, movidos também por
contradições de interesses económicos.
Mas, ocupado o Iraque, logo que a grande maré do protesto dos povos
baixou, as fissuras abertas na frente do capital desapareceram e dirigentes
como Chirac e Schroeder submeteram-se à vontade de Washington. Ambos
deram o seu aval à situação criada pela agressão
norte-americana. O mesmo aconteceu com Putin.
No Iraque o povo não aceita a recolonização. Quase
diariamente militares do exército de ocupação são
abatidos pela resistência. O alto comando norte-americano acabou por
reconhecer que no país se formou uma guerrilha de tipo clássico
que conta com o apoio de amplas camadas da população. No
Afeganistão a luta popular contra as tropas estrangeiras também
se intensificou. Para enfrentar os desafios das guerrilhas que contam agora
com o apoio de quadros do antigo Partido Democrático Popular que esteve
no poder durante a Revolução Afegã, Washington transferiu
o comando, em Kabul, para a OTAN. Mas com excepção da capital,
os invasores não controlam o país.
A crescente resistência que o plano do sistema de poder estadunidense de
controle do Médio Oriente e da Ásia Central cria, portanto,
condições muito favoráveis ao desenvolvimento da luta dos
povos.
Entretanto, por falta de condições subjectivas, a resposta
à estratégia imperialista é débil e
desarticulada.
Reflectir sobre as causas do refluxo do movimento de massas e extrair dos
acontecimentos lições que permitam a
intensificação das lutas contra a estratégia
imperialista, imprimindo-lhe caracter permanente e elevando-a a uma fase
superior é, portanto, um desafio para os partidos e
organizações revolucionarias.
GLOBALIZAR A LUTA
Não ha precedente histórico para um protesto comparável
ao que precedeu a agressão ao Iraque. Aquilo que aconteceu confirmou o
imenso potencial dos povos para transformar a vida.
E, contudo, transcorridos cinco meses, o Iraque é administrado por um
procônsul dos EUA, assessorado por um conselho de governo fantoche. E
os povos não saem mais às ruas em protestos maciços. O
apoio à luta de iraquianos e afegãos (e palestinos) caiu para
um nível muito baixo.
O contraste entre as duas situações envolve um convite ao debate
sereno sobre temas que tem sido discutidos nos Fóruns Sociais.
É óbvio que os movimentos sociais tem desenvolvido um
esforço magnífico cujos resultados ultrapassaram as expectativas
mais optimistas. A humanidade deve-lhes muitíssimo. Partiu deles a
arrancada para a luta. Mas a sua capacidade de intervenção tem
limites insuperáveis se não visar objectivos estratégicos
permanentes e bem definidos. Dai a necessidade da uma acção
complementar, convergente e harmoniosa de movimentos e partidos.
A revolta popular por mais ampla que seja, quando não ultrapassa o
quadro de uma resposta espontaneísta, perde o impulso, dilui-se e
não atinge a fase que culmina com a confrontação frontal
com o inimigo no caso o poder imperial hegemónico. A
disponibilidade das massas para a luta é sempre condicionada por
factores subjectivos complexos, inseparáveis de situações
conjunturais. O rechaço às guerra «preventivas»
exemplifica essa realidade.
Pode argumentar-se, com razão, que escasseiam hoje no mundo os
partidos revolucionários em condições de desempenhar
adequadamente o papel insubstituível que lhes cabe nas grandes lutas
do nosso tempo.
Mas é precisamente em crises como aquela que a humanidade vive que o
partido revolucionário, num processo de interacção muito
complexo, cresce, se transforma, assume como organizador e formador o papel
que os movimentos, isoladamente, não podem desempenhar. Num processo
dialéctico, o partido, contribui decisivamente para o aprofundamento da
consciência de classe, mas é também, ele próprio
subtilmente influenciado pelas transformações criadoras que as
massas vão forjando durante a luta.
É transparente que a actual crise não nos coloca perante a
possibilidade uma insurreição no estilo antigo.
Mas a repetição de protestos cíclicos, grandiosos, mas
com fluxo e refluxo, não aponta o caminho a seguir.
Precisamente porque a crise do sistema, e sobretudo a do seu bastião e
motor, é estrutural, abrem-se ao combate dos povos perspectivas de uma
resposta global repito que não tem sido devidamente
exploradas pelos partidos e organizações revolucionários.
Intelectuais revolucionários como Samir Amin e Istvan Mészaros
prestam uma contribuição importante ao debate em curso
através de diagnósticos sobre a crise do capitalismo senil. A
radiografia de um sistema que não encontrando solução para
os seus problemas, opta pela irracionalidade, adverte a humanidade para o
enorme perigo que a ameaça.
A implosão da URSS deve funcionar como vacina contra os sonhos
deterministas. O socialismo que ali se implantou não foi o imaginado
por Marx e Lenine, mas o regresso do capitalismo significou uma
tragédia para a humanidade.
O futuro próximo é uma incógnita.
Poucas vezes como hoje terá sido tão necessária a
humildade revolucionária.
Georges Gastaud, o lúcido pensador comunista francês, lembra-nos
que «os militantes da paz têm antes de mais de associar-se aos
movimentos sindical e operário, às forças republicanas
partidárias da soberania nacional, às forças
antifascistas opostas às leis liberticidas, porque a
instalação do exército americano em Bagdad, depois de
Belgrado, Kabul e Samarcanda é também um retrocesso tremendo
imposto aos trabalhadores que lutam em cada país, incluindo o nosso,
pela democracia e o progresso social».
Apenas sugestões para um programa de luta no seu pais, a França?
Não, Gastaud, tem uma concepção global da luta. Na
convergência e simultaneidade de muitas e diversificadas
acções contra o imperialismo e as políticas neoliberais
identifica a única estratégia eficaz, susceptível de
minar as bases do seu poder, de introduzir fissuras nas suas engrenagens, de
criar condições para a sua derrota final.
«Associar a luta contra a guerra declarou numa Conferencia na
cidade de Lens às lutas em defesa dos salários da reforma,
do poder aquisitivo, dos serviços públicos, à recusa
conjunta do superarmamento, dos porta-aviões e demais
«forças de projecção europeias».
As lutas nacionais, especialmente mobilizadoras, não devem, porem, ser
dissociadas das acções internacionais. Caminhar para uma
estratégia globalizada das acções de massas deve ser um
objectivo permanente. Em primeiro lugar da classe operária.
A esta e aos partidos revolucionários a ela ligados cabe
em cada país a tarefa de criar uma atmosfera de luta que mobilize
as massas de modo permanente insisto sempre na palavra para o
combate, em múltiplas frentes, contra a ameaça mortal que a
estratégia do sistema de poder fascizante passou a representar para a
humanidade. No esforço tendente a evitar o refluxo das
mobilizações populares, é importantíssimo
desenvolver um trabalho de esclarecimento com características
inéditas. O mundo não está em vésperas de uma
revolução planetária. Mas a irracionalidade fascizante do
imperialismo estadunidense pode levar ao holocausto, à
extinção da humanidade. Daí a necessidade de
explicar
ao cidadão comum, a todas as pessoas que a invasão e
recolonização do Iraque é, no projecto imperial
estadunidense, «somente um degrau como diz Gastaud na guerra
de classe ilimitada contra as nações soberanas, contra a paz
mundial, contra as avançadas do mundo do trabalho».
Paradoxalmente, a mobilização contra a escalada da
dominação imperialista é, entretanto pluriclassista, o que
lhe confere um caracter praticamente inédito. Transcende as fronteiras
da classe mais combativa, porque a ameaça se tornou
planetária.
Quando a evolução do capitalismo, nas vésperas do primeiro
conflito mundial, empurrava a humanidade para uma guerra imperialista, Rosa
Luxemburgo advertiu que a alternativa colocada aos povos se condensava na
opção entre Socialismo e Barbárie. Como evitar a
tragédia iminente? «Quando a maioria do povo chega ao
convencimento essa a sua resposta de que as guerras são um
fenómeno bárbaro, profundamente imoral, reaccionário e
contrário ao povo, então as guerras tornam-se
impossíveis».
Os povos, como sabemos, não lutaram para evitar a Primeira Guerra. Nem
a Segunda.
Transcorreram quase noventa anos. O panorama agravou-se. Mészaros
retomou a advertência de Rosa num contexto dramático. Não
estamos em condições de esboçar sequer o perfil de um
Socialismo futuro, mas conhecemos já o prólogo de uma
Barbárie, que pode, aliás, levar ao fim da aventura humana.
Mas, pela primeira vez, os povos, este ano, em movimento mundial condenaram a
guerra, uma guerra imperialista inseparável de um projecto de
dominação mundial. O protesto não foi suficiente para a
conter, mas apontou um caminho. Se aquilo que foi espontâneo e teve
duração breve se transformar em desafio e combate organizado,
permanente, a guerra será cada vez mais difícil e fecha-se a
porta à barbárie.
Rosa inseria a política, a vida, a teoria e a prática da
revolução numa totalidade, aplicando com lucidez e rigor o
método de Marx.
É esse conceito da totalidade, a convicção de que a
fidelidade intransigente ao objectivo final deve primar sobre a
circunstância, sobre tudo o que é transitório
é essa atitude perante a história que hoje impressiona, porque
ajuda a compreender e a lutar.
O lema do Fórum Social Mundial tem corrido pela Terra, repetido
milhões de vezes. Mas não basta proclamar que «Outro mundo
é possível». Quando se avança na procura do
caminho, a maioria perde-se num labirinto de veredas secundárias. O
objectivo é esquecido.
E porquê?
Porque ele exige uma disponibilidade total, constante, para uma batalha de
duração imprevisível, contra um adversário
formidável que, sem o ser, parece invencível.
O sujeito dessa batalha, inevitável, são os povos. Mas porque
ela é total, abrangente, planetária, pluriclassista, porque na
realidade coloca exigências próprias de uma guerra, os
movimentos que a fortalecem e desafiam o imperialismo, mas actuam como as
mares, em fluxo e refluxo, não podem prescindir da
cooperação com as vanguardas, na tarefa estratégica de
imprimir ao confronto com o imperialismo a organização que
é fonte da consciência social.
É um facto que os revolucionários, mesmo nas fases de grandes
rupturas históricas, são sempre uma minoria. É
também uma evidência que o Socialismo, como alternativa à
Barbárie, não tem nem rosto nem data no calendário. O fim
do capitalismo, a derrota do imperialismo não se esboça no
horizonte.
Mas os revolucionários, para o serem autenticamente, para justificarem
essa opção, não lutam para assistirem à vitoria
das revoluções que transformam o mundo. Batem-se, pela palavra
e pela acção para que elas sejam possíveis, mesmo para
além das suas existências transitórias
____________
NOTAS
(1) Para facilitar eventuais consultas de textos, todas as
citações desta Comunicação foram extraídas
da edição mexicana de
«Rosa Luxemburgo»
, de Lelio Basso, Ed. Nuestro Tiempo, México DF, 1977
(2) Lenine também polemizou muito com Rosa Luxemburgo, distanciando-se
das suas posições (anteriores à Revolução
Alemã) sobre temas como o funcionamento do Partido, a
relação com os sindicatos, a democracia, etc. Mas as
discordâncias não abalaram a admiração que Rosa lhe
inspirava como revolucionária e ideóloga. Em artigo que
escreveu em Fevereiro de 1922 e foi publicado pela
«Pravda»
em 1924, Lenine sintetizou esse apreço numa sugestão:
«a publicação das suas obras completas servirá como
lição útil no treino de muitas gerações de
comunistas em todo o mundo».
Esta comunicação encontra-se em
http://resistir.info
.
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