A trinta anos do 11 de Setembro chileno
por Miguel Urbano Rodrigues
Transcorridos 30 anos sobre o golpe do 11 de Setembro de 73, não
é sem emoção e dor que evoco os acontecimentos do Chile.
Acompanhei quase dia a dia o processo revolucionário chileno.
Estava em Santiago quando Salvador Allende tomou posse. Participei na grande
festa da vitória.
Voltei ao Chile um ano depois, em Dezembro de 71. Nos primeiros dias caminhei
de surpresa em surpresa. Na aparência das coisas o projecto de
mudança social corria sobre rodas. Nas lojas havia ainda
abundância de quase tudo. Para responder a um acréscimo da
demanda a indústria estabelecia recordes de produção. O
boom das vendas impressionava.
Nas eleições municipais de Abril a Unidade Popular passara de
minoritária a majoritária. O Partido Socialista obtivera 22,3%
dos votos; o Partido Comunista 16,9%.
Na Conferencia de El Arrayan a UP procedeu a um balanço optimista. O
Governo Popular cumprira grande parte da plataforma que levara Allende ao
Palácio de la Moneda. O desemprego caíra de 8,3% para 4,8%; a
produção industrial aumentara 11%. O sistema bancário
fora quase totalmente estatizado (90%) e setenta grandes empresas haviam sido
nacionalizadas, expropriadas ou achavam-se sob intervenção. O
cobre, o salitre, o ferro, o aço, toda a industria pesada tinham passado
à área da propriedade social. O número de casas
construídas pela CORVI estatal excedera vinte vezes o de 1970. No
campo, a Reforma Agrária expropriara em 14 meses 1315 propriedades com
uma área de 2,4 milhões de hectares. A
distribuição do rendimento nacional apresentava um panorama novo:
em 1971 os assalariados aumentaram a sua percentagem de 50 para 59%. O PIB
que durante o mandato de Frei crescera a uma média de 2,7% aumentou 7%.
Entretanto, o grande aumento do consumo gerou uma crise de abastecimento. O
país não estava preparado para responder à
«fúria» de compras resultante do acréscimo do poder
aquisitivo dos trabalhadores.
A carne de vaca quase desapareceu. Os frangos passaram a ser uma raridade,
embora a produção avícola tivesse aumentado 16%. Somente
mais tarde, o povo tomou conhecimento de que muitos latifundiários,
atingidos pela reforma agrária, tinham abatido milhares de vacas e
ovelhas em matanças de significado político.
A prosperidade do primeiro ano da UP era ilusória. No sector privado os
investimentos estavam quase paralisados. O governo tentava tranquilizar os
empresários, alegando que no país havia 35 mil indústrias
e que somente pretendia estatizar menos de 150. Mas as garantias oficiais
não impediram que muitos empresários sabotassem as suas
próprias empresas.
O dólar era transaccionado no câmbio negro pelo quádruplo
da sua cotação oficial.
Na sua mensagem ao congresso, em Março de 71, Salvador Allende fora
enfático na defesa da política de alianças.
«Devemos ajudar afirmou então os pequenos e
médios industriais, comerciantes e agricultores que foram durante
muitos anos um extracto explorado pelos grandes monopólios. A nossa
política económica garante-lhes um tratamento equitativo (...)
As indústrias pequenas e médias terão um papel activo na
construção da nova economia».
Entretanto, os esforços para conquistar esses estamentos sociais
fracassaram.
As dificuldades da UP aumentavam pelo facto de o discurso oficial de respeito
estrito pela legalidade institucional ser mal recebido pelos sectores mais
combativos da classe operária. Muitos dos valores e objectivos que o
governo se via forçado a preservar na defesa da constitucionalidade do
regime eram rejeitados por esses sectores, empenhados em acelerar a
transição para uma sociedade socialista. A
contradição nunca foi resolvida. O MIR, que não integrava
a UP, agravou tensões com o seu comportamento esquerdista.
O que teria acontecido se o Presidente Allende, após as
eleições municipais de Abril de 71, tivesse convocado um
plebiscito para que o povo se pronunciasse sobre propostas que implicavam a
dissolução do congresso? Este obstruía a
realização do Programa da UP. Se a resposta fosse
favorável e a esquerda obtivesse maioria numa eleição
extraordinária, o caminho para a transição ao socialismo
ficaria aberto. Mas no quadro na Constituição vigente, com a
Câmara e o Senado controlados pela direita, a via pacifica esbarrava com
obstáculos insuperáveis.
O RESCALDO DA INSURREIÇÃO BURGUESA DE 72
Somente voltei ao Chile um ano depois, nos últimos dias de Janeiro de
73.
A atmosfera em Santiago não saí então da capital
era de grande tensão. A luta de classes exacerbara-se a tal
ponto que a sensação de quem chegava era a de encontrar uma
sociedade envolvida numa guerra civil atípica, sem tiros.
A abundância do ano anterior cedera o lugar a uma escassez dolorosa.
Faltava nas lojas não somente o supérfluo como quase todos os
produtos de primeira necessidade.
Percebi que a pequena burguesia se deslocara maciçamente para a direita.
As conversas mantidas em estabelecimentos comerciais, nos restaurantes, nos
transportes públicos foram para mim esclarecedoras de que os
esforços da UP para conquistar o apoio das camadas médias tinham
fracassado. Mais grave do que isso, uma parcela considerável da pequena
burguesia exibia sem disfarce uma atitude agressiva contra o governo, assumindo
as criticas do Partido Nacional e da Democracia Cristã, que haviam
radicalizado o combate à UP.
Faltavam já quase totalmente produtos como o papel higiénico, os
fósforos, os detergentes, a pasta de dentes, os sabonetes, as gorduras
animais e vegetais, o açúcar, o leite, o arroz, a carne.
O que ouvi e li durante essa visita a Santiago reforçou a minha
convicção de que a insurreição patronal de Outubro
de 72 fora fundamentalmente derrotada pelo proletariado urbano numa luta
épica.
O objectivo da grande burguesia ao tentar a paralisação do
país com o
lock out
das empresas de camionistas e a tentativa de encerramento das fábricas
era a criação de uma situação caótica que
levasse as Forças Armadas a intervir. Mas o golpe não se
produziu.
A resistência do proletariado chileno foi determinante. O governo,
através da requisição dos camiões, conseguiu que os
transportes funcionassem, embora de modo precário. E os
empresários verificaram, alarmados, que a cada dia perdiam
fábricas e que elas, dirigidas pelos trabalhadores, continuavam a
funcionar.
No final de Outubro, o grande patronato compreendeu que o movimento não
atingira o objectivo e se tornava a cada dia mais impopular. Tratou
então de chegar a um acordo com o Governo que lhe permitisse recuperar
a maioria das fábricas cujo controle fora assumido pelos
operários.
A insurreição burguesa fora derrotada. As Forças Armadas,
nesse momento ainda respeitadoras da «doutrina Schneider», de
fidelidade à Constituição, assumida pelo general Carlos
Pratts, não intervieram na crise. Somente muitos meses depois, a
relação de forças, alterada em beneficio da direita,
favoreceu o avanço da conspiração orientada para o golpe
de Estado.
A derrota da tentativa de paralisação do país fortaleceu
momentaneamente a posição do Governo. O Parlamento e o Poder
Judicial tinham retirado a máscara ao apoiarem ostensivamente um
movimento patronal com caracter de intentona, que visava a queda do Executivo
por meios inconstitucionais.
Mas na UP, mais uma vez, não se chegou a um consenso. A tendência
que defendeu novamente o plebiscito não se impôs.
Segundo os seus defensores, a derrota da direita oferecia uma oportunidade
única para que o povo fosse chamado a pronunciar-se num plebiscito sobre
a dissolução do Congresso, a criação de um regime
unicameral, a democratização do Supremo Tribunal e a
estruturação da área da Propriedade Social,
sistematicamente sabotada pelo Legislativo e pelo Poder Judicial.
UMA REVOLUÇÃO DESARMADA
Os mil dias da Unidade Popular, transcorridas três décadas,
continuam a ser tema de polémicas. Qualquer que seja a perspectiva,
constituem para os comunistas um legado de grande valor.
Para os epígonos do neoliberalismo, o malogro da experiência da
UP confirmou a irremediável superação do marxismo como
ideologia inspiradora de transformações sociais de caracter
revolucionário.
Difundida pelo planeta por um sistema mediático perverso e
hegemónico, essa tese e a sua conclusão categórica partem
de uma grosseira deformação da história. Carecem de
fundamento cientifico.
A história do Chile durante o governo de Salvador Allende foi
como escreveu Gabriel Smirnov «a história de uma luta de
classes levada a um novo nível no qual se questiona não apenas a
apropriação pelos capitalistas da mais valia produzida pelo
proletariado, mas também o que é muito mais importante, e
constitui uma etapa qualitativamente diferente o lugar que ocupam as
classes sociais e o direito da burguesia a dirigir o conjunto das
relações económicas e políticas».
[*]
É um disparate evocar o golpe chileno do 11 de Setembro como prova da
falência do socialismo. O que ele veio reactualizar no campo da teoria
foi a temática da chamada via pacifica para o socialismo na
América Latina.
Desconhecem ou deturpam o pensamento de Marx aqueles que lhe atribuem
afirmações que não constam da sua obra. Ao
contrário do que sugerem os seus adversários, ele chama a
atenção para o facto de o controle do aparelho de Estado por um
governo progressista não ser suficiente para a
concretização de objectivos incompatíveis com o
funcionamento e a lógica do capitalismo.
O desastre ocorrido nos países ditos socialistas da Europa Oriental veio
lembrar que a estatização dos meios de produção
não basta, por si só, para erradicar as raízes do
capitalismo, porque as superestruturas culturais resistem por longo tempo a
esse processo de transição, permitindo a sobrevivência da
ideologia do antigo sistema.
No caso do Chile, não somente o poder económico permaneceu
até ao fim maioritariamente nas mãos da burguesia como escaparam
ao controle do governo sectores do Estado que desempenharam um papel
importantíssimo na criação de condições
materiais e psicológicas para a preparação do golpe,
nomeadamente o Congresso e o Poder Judicial.
O general Carlos Pratts, num livro póstumo, editado por iniciativa da
filha após a CIA o ter assassinado em Buenos Aires, analisa com lucidez
o processo de debilitamento da resistência de militares formados nas
academias da burguesia, à insidiosa propaganda que lhes apresentava o
golpe como única saída para a salvação da
pátria.
As teses defendidas pelo MIR, segundo as quais o povo organizado teria
condições para resistir a um levantamento das Forças
Armadas eram inconsistentes.
Foi esquecido o ensinamento de Lenine segundo o qual «é
impossível lutar vitoriosamente contra um exército moderno, a
menos que «ele se torne revolucionário». Contrariamente ao
que ocorreu em Petrogrado em Fevereiro e Outubro de 1917, a coluna vertebral da
disciplina não se rompeu nunca no exército chileno. Como afirmou
Pratts, contra armas pesadas não há resistência popular que
possa impor-se. Pode argumentar-se que o Vietname derrotou os EUA e a FLN, na
Argélia, obrigou a França a reconhecer a independência do
pais. Mas em ambos os casos, no quadro de guerras de
libertação, insurreições de âmbito nacional
permitiram a formação de autênticos exércitos
capazes de enfrentar as forças militares da potência imperial.
No Chile a intervenção do imperialismo na
preparação e financiamento do golpe desempenhou um papel
importantíssimo. Tão evidente que Kissinger nas suas
Memórias e em artigos e entrevistas reconhece que a CIA, cumprindo
instruções da administração Nixon desenvolveu uma
intensa actividade no país, apoiando as forças que conspiravam
contra o Governo de Allende. Posteriormente, documentos secretos
desclassificados pelo Departamento de Estado, confirmaram a profundidade do
envolvimento estadunidense na montagem do golpe do 11 de Setembro.
O processo chileno justifica o qualificativo de revolução
desarmada.
O seu desfecho trágico não trouxe uma resposta definitiva a
questões que continuam a ser tema de fascinantes debates.
A até agora vitoriosa defesa da revolução bolivariana na
Venezuela (apoiada pelas Forças Armadas), e a eleição de
Lula no Brasil com um programa progressista (do qual se vem, aliás,
desviando) conferem actualidade a uma pergunta fundamental:
Pode um governo com forte apoio popular, comprometido com um programa
avançado de transformação da sociedade, levar adiante
com êxito esse projecto usando como instrumento de mudança as
próprias instituições criadas pela burguesia para servir
os seus objectivos de classe?
A resposta que a historia dará à questão é tanto
mais importante quanto as tentativas em curso na América Latina
coincidem com o desenvolvimento da estratégia planetária de um
sistema de poder imperial que visa a militarização da Terra e
constitui ameaça à própria sobrevivência da
humanidade.
_____________
[*]
Gabriel Smirnov,
La revolución desarmada, Chile, 1970-73,
Ediciones Era, Mexico, 1977, pag 122.
Clique aqui para ouvir o
o derradeiro discurso do Presidente Salvador Allende
, no dia 11 de Setembro de 1973, quando o Palácio de La Moneda principiava a
ser bombardeado pela aviação fascista.
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O original deste artigo encontra-se na revista
O Militante
, do PCP, nº 266, Setembro de 2003.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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