O REGRESSO DE BOLÍVAR
Miguel Urbano Rodrigues
Bolivar morreu há 172 anos. Não foi possível apagar-lhe
da historia o nome. Mas pouco sabem os contemporâneos da sua vida e
obra. Daí a surpresa provocada na Europa pela
reivindicação do projecto bolivariano pelo venezuelano Hugo
Chavez.
É um facto que revolucionários como José Marti e Fidel
Castro proclamaram sempre a sua identificação com o
ideário do Libertador. Para ambos foi ele o grande pioneiro do combate
pela unidade dos povos da América Latina .
Mas só muito recentemente o pensamento político de Bolivar
principiou no continente a ser novamente tema de debate entre as novas
gerações
Esse prolongado
esquecimento
do Bolivar pensador e estadista tem uma explicação simples.
Bolivar foi um reformador social revolucionário e um antimperialista
consequente, o que incomodava na Colômbia e em toda a América as
forças retrogradas que ele, sobretudo nos últimos anos, combateu
com coerência e tenacidade.
É esclarecedor que nenhum governo colombiano tenha tomado até
hoje a iniciativa de promover a edição e divulgação
da obra (completa) do herói máximo das lutas pela
independência na América latina.
Liberais e conservadores, ao longo de mais de século e meio,
entenderam-se tacitamente em torno de um objectivo comum: incutir no povo a
ideia da existência de dois Bolivares. Um, o militar, merecedor do
respeito e da gratidão de todos os americanos; o outro, o
político, um governante incapaz, incompatível com a democracia,
com vocação de tirano. Glorificam o primeiro; satanizam o
segundo.
Para a oligarquia da Grande Colômbia (que englobava a Venezuela, o
Equador e o Panamá, alem da antiga Nova Granada) Bolivar deveria ter ido
para casa quando o ultimo exército espanhol capitulou nos Andes
peruanos.
Segundo a historiografia oficial o herói esgotou a sua missão
após Ayacucho. Teria morrido para a história. Depois, na
visão da oligarquia, nasceu um vilão.
Esse retrato, pintado com as cores do ódio, é fantasista e
perverso. A tese dos dois Bolivares não tem pés nem
cabeça. Foi forjada para denegrir o reformador social que de 1826 a
1829 se tornou o pesadelo da oligarquia: o libertador dos escravos e dos
índios, o defensor dos direitos do povo como sujeito da historia, o
pedagogo, o internacionalista, o líder da unidade continental contra a
prepotência imperialista.
Todos os detractores de Bolivar antigos e actuais coincidem em
condená-lo por haver assumido a ditadura em 1828.
É suficiente ler os textos da época para se perceber o conceito
de democracia dos legisladores que então invectivaram e combateram
Bolívar.
Chamaram-lhe «caudilho dos descamisados», «líder dos
debaixo», «chefe da negrada e indiada».
O general Santander, ex-vice-presidente de Bolivar, que se tornou o seu mais
implacável adversário, deixou cair a máscara ao acusar o
Libertador de desencadear «uma guerra interior na qual ganhem os que nada
têm, que sempre são muitos, e que percamos nós, os que
temos, que somos poucos».
Essas palavras acabam por funcionar como um
boomerang
, servindo para justificar a decisão e a política de
Bolívar.
Ao regressar a cavalo do Perú a Bogotá, pelos vales e mesetas da
cordilheira, Bolivar sofre com o espectáculo da miséria dos povos
que havia libertado. Percebe que após anos de uma luta heróica
pela independência esses povos viviam ainda pior do que na época
da opressão espanhola. Ao transmitir a Santander as
reivindicações das populações escreve:
«não sei como não se levantaram ainda todos estes povos e
soldados ao concluírem que os seus males não vêm da guerra
mas de leis absurdas».(1)
Os cinco anos de ausência do Libertador, absorvido no Sul pela guerra
contra os espanhóis, foram aproveitados pela nova classe dominante para
modelar as estruturas de um Estado cujas instituições haviam sido
concebidas para perpetuar e aprofundar a desigualdade social em vez de a
reduzir.
Os crioulos ricos e grande parte dos generais, toda uma casta de descendentes
dos antigos
terratenientes
e
encomenderos
peninsulares, exploradores dos índios e comerciantes mobilizaram
esforços para defender e ampliar privilégios e acrescentar
àquilo que já tinham o poder político que antes era
exercido pelos representantes da Coroa. Claro que ao longo da guerra houve
clivagens entre essa gente. Mas quando as armas silenciaram, a máscara
dos republicanos e monárquicos caiu em pedaços. Convergiram num
objectivo: colocar o poder do Estado ao serviço dos seus interesses
pessoais. Os legisladores usavam uma fraseologia inspirada em grandes textos
da Revolução Francesa e da Revolução Americana.
Mas usaram grandes palavras para criar uma «republica aérea»,
como dizia Bolivar, porque queriam um Estado amorfo e passivo que lhes
permitisse ampliar os seus privilégios senhoriais. Não concebiam
a Constituição como algo criado para servir o corpo social; era
este que deveria funcionar como emanação da lei magna. Bolivar,
como Kant, achava que a política deve «dobrar os joelhos perante a
moral». E na Colômbia os legisladores pretendiam o
contrário. Pensavam e agiam como se a «vontade do povo fosse a
opinião deles».
Noutras cartas a Santander, Bolívar escreveu: «Tenho mil vezes
mais fé no povo do que nos deputados(...) Jamais um Congresso salvou uma
republica»(...) Não conheço outra opção
saudável que não seja a de devolver ao povo a sua soberania
primitiva, para que refaça o pacto social».
Para agravar a situação o Estado oligárquico havia criado
uma administração corrompida e corruptora que Bolivar comparou a
sanguessugas que se alimentam com o sangue humano.
O pacote de medidas que se seguiram ao Decreto Orgânico de Agosto de 1828
foi apresentado nos EUA e nas monarquias europeias como espelho da
política autocrática de um caudilho tirânico. A imprensa
norte-americana intensificou a campanha contra o Libertador, pintando-o como um
ditador vingativo e sanguinário. A correspondência trocada
então entre o Departamento de Estado e o representante dos EUA em Santa
Fé de Bogotá lembra pelo reacionarismo e o cinismo a dos modernos
embaixadores norte-americanos na Venezuela ou Cuba no seu dialogo com a sra.
Albright.
O que inquietava os governos da Santa Aliança e o nascente imperialismo
americano era o conteúdo profundamente democrático e
revolucionário das medidas de Bolivar. Elas golpeavam duramente os
interesses da oligarquia.
Bolivar utilizou os poderes extraordinários do mandato que assumiu para
virar o Estado do avesso. Este deixou de ser o instrumento de defesa e
reforço dos privilégios da classe senhorial para ser colocado a
serviço dos direitos, liberdades e exigências sociais do povo.
O saneamento da justiça e a punição dos
funcionários corruptos foi uma preocupação
prioritária. Bolivar começou por reduzir para metade os altos
vencimentos dos membros do Congresso e aboliu todos os privilégios que o
Estado concedia à Igreja Católica.
A lei que obrigava os índios a prestar serviço militar
obrigatório num regime de semi-escravidão foi revogada. De todas
as suas medidas revolucionarias a que mais indignou os grandes
latifundiários foi aquela que ordenou a devolução aos
índios, como seus «legítimos proprietários», das
terras de que os seus antepassados haviam sido expulsos pela coroa espanhola,
independentemente dos títulos de posse apresentados pelos actuais
senhores.
Leis promulgadas para o efeito incentivaram a indústria e o
comércio e a elevação das taxas aduaneiras protegeu a
produção nacional da livre concorrência com as mercadorias
importadas. O monopólio da navegação no rio Magdalena (a
grande artéria fluvial do pais) concedido por Santander a um
empresário dos EUA foi revogado. A milenária indústria
textil dos índios equatorianos foi protegida de forma a poder vestir, se
necessário, «toda a América do Sul».
As minas particulares foram nacionalizadas e o Estado concentrou nas suas
mãos o monopólio de todas as riquezas do subsolo.
Decretos especiais visaram a protecção da natureza, nomeadamente
as florestas e as águas dos grandes rios.
Na área da Educação as faculdades de Medicina de
Bogotá, Caracas e Quito foram incumbidas de zelar, em
cooperação com as autoridades do Estado, pela
preservação das plantas medicinais úteis. Bolivar chegara
à conclusão de que o primeiro dever de um governo consistia em
proporcionar ao povo uma boa Educaçao, gratuita. O seu mestre e amigo
Simon Rodriguez recebeu autoridade e meios para reformar os estabelecimentos
escolares existentes e criar outros «nos melhores edifícios»,
para «todas as crianças de ambos os sexos que em cada departamento
estejam em estado de instruir-se em ciências e artes»
(gramática, literatura, historia, etc).
O Governo decidiu adoptar os muitos milhares de crianças que haviam
ficado órfãs em consequência da guerra .
A Constituição de Cucuta (redigida e imposta pela oligarquia
tomando como modelo a norte-americana e as ideias de Jefferson) estabelecia que
um cidadão para ser eleitor e elegível tinha de ser
proprietário ou possuir um determinado rendimento. O Libertador
não aceitou essa discriminação que ampliava a
desigualdade. Aboliu-a. Decretou que «Todos os cidadãos
são iguais perante a lei e igualmente admissíveis para servir em
todos os empregos civis, eclesiásticos e militares».
Dispositivos legais como esse intensificaram as criticas ao «ditador»
que promovia «o despotismo da maioria». Bolivar respondeu-lhes com
estas palavras:
«O povo é mais sábio que todos os sábios(...) A
vontade nacional será o meu guia e nada poderá impedir que me
consagre ao seu serviço e de conduzir este povo onde ele quiser».
Seria infindável o rol da legislação bolivariana de
caracter progressista promulgada durante os dois breves anos da ditadura que,
segundo a direita colombiana, constituiu uma tresloucada agressão
à democracia.
Bolívar tinha pressa. Sabia que era curto o seu tempo de vida
útil. Sentia a proximidade da morte na ruína de um corpo marcado
pelos estigmas de uma vida que pela dureza lembra a dos heróis da
mitologia grega. Gastara duas décadas da existência cavalgando e
combatendo pelos
llanos
tropicais, por florestas e pantanais e pelas e altas
punas
andinas, transpondo com o seu exercito, cada vez mais internacionalista,
píncaros de neves eternas que trespassavam o céu.
Viveu o suficiente para assistir, angustiado e já moribundo, afastado do
poder, ao desmoronar da sua obra, odiada pelos abutres da oligarquia .
Mas as sementes dela não secaram. Não puderam o medo e a inveja
dos inimigos destrui-las. Voltaram a germinar .
Não é por acaso que o venezuelano Chavez submeteu ao seu povo uma
Constituição bolivariana e ela foi plebiscitada por uma
esmagadora maioria.
Não é por acaso que Fidel Castro desfralda desde a juventude as
bandeiras de Bolívar.
Marx era uma criança quando Bolivar se batia pela unidade da
América hispânica e índia e antecipava que os Estados
Unidos iriam, em nome da liberdade, semear misérias no corpo das jovens
republicas. Lenine nasceu quatro décadas após a sua morte.
Era outra no tempo do Libertador a linguagem política. Mas de alguma
maneira, a ditadura revolucionaria de Bolivar foi inspirada pelo mesmo espirito
humanista e democrático, pelo mesmo amor do povo que levou a
Revolução de Outubro de 17 a proclamar a ditadura do
proletariado, hoje tão caluniada .
Nunca esqueço que nos regimentos do exército bolivariano que sob
o comando de Sucre destruiu em Aycacucho o que restava no Continente do poder
imperial da Espanha lutaram, ombro a ombro, colombianos, venezuelanos,
equatorianos, peruanos, bolivianos, chilenos e argentinos. Era um exercito
internacionalista e revolucionário, como o Libertador.
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(1) Todas as citações deste artigo foram extraídas do
livro «Bolivar, el Hombre de América - Presencia y Camino»,
Juvenal Herrera Torres, Ediciones Convivencias, Medellín,
Colômbia, 2000.
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